Por Vítor Nuzzi, Revista do Brasil, reproduzido no Opera Mundi –
Personagem mais famosa do cartunista argentino Quino foi desenhada entre 1964 e 1973 e continua atual; mundo da pequena contestadora é tema de exposição na Praça das Artes, em São Paulo, a partir desta quarta-feira (17/12)
Barrilete, Museo de los Niños / Facebook
Quino na inauguração da exposição El Mundo de Mafalda no Barrilete, Museu das Crianças, em Buenos Aires; exposição estreia em São Paulo, na Praça das Artes, nesta quarta-feira (17/12)
Nas palavras de seu criador, Mafalda ama os Beatles, a democracia, os direitos das crianças e a paz – nesta ordem. Odeia sopa (alusão ao autoritarismo), armas, guerra e James Bond. A mais conhecida personagem de Joaquín Salvador Lavado, o Quino, completou 50 anos em 29 de setembro. Os desenhos da menina de seis anos duraram apenas nove, de 1964 a 1973, mas são comentados até hoje, para espanto do autor. Foi uma heroína de seu tempo, conforme definiu o escritor Umberto Eco, primeiro editor de Mafalda na Itália. Aqui, onde chegou apenas em 1982, teve como editor o cartunista Henfil.
Anos atrás, Eco chegou a comparar a personagem de Quino com o universo de Charlie Brown, do norte-americano Charles M. Schulz. Ele está num país próspero, ela pertence a um país de contrastes sociais. Ele habita um universo que exclui os adultos, enquanto ela vive a confrontar os mais velhos.
Charlie Brown pode ter lido os revisionistas freudianos, à procura de uma harmonia perdida. Mafalda provavelmente leu Che. “Na realidade, a Mafalda, em matéria de política, tem ideias muito confusas, não consegue entender o que acontece no Vietnã, não sabe por que existem os pobres, não confia no Estado e a presença dos chineses a preocupa. Só uma coisa sabe claramente: ela não se conforma.”
O próprio Quino, em entrevista, comparou sua criação com a de Schulz. Segundo ele, Charlie Brown vive em um universo infantil próprio, do qual estão rigorosamente excluídos os adultos, “com a diferença de que as crianças querem virar adultos” enquanto Mafalda “vive em um contínuo diálogo com o mundo adulto, mas o rejeita, reivindicando o direito de continuar sendo uma criança.”
O professor Waldomiro Vergueiro, um dos coordenadores do Observatório de Histórias em Quadrinhos, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), inclui outro personagem: Calvin, do norte-americano Bill Watterson, um garoto também de seis anos com seu inseparável tigre de brinquedo, Hobbes (Haroldo no Brasil), que se torna “real” quando ele não está na presença de adultos. “O que encanta é essa dupla leitura, para a criança e para o adulto”, observa. Calvin, avalia Vergueiro, se destaca pela imaginação – que nas tiras de Mafalda estaria representada por Felipe, um de seus amigos, e na obra de Schulz pelo beagle Snoopy.
Mafalda pode estar de certa forma “datada”, mas não perdeu o encanto, e o professor tem nela uma de suas preferências. “É um personagem totalmente irrequieto, contestador, representa bem a minha geração. E é um dos quadrinhos mais usados em vestibular, em livros didáticos. Ela continua falando de temas atuais.”
Com a personagem, Quino valorizou os quadrinhos, especialmente o latino-americano, mas sua obra acabou perdendo visibilidade. “Eu diria que as pessoas da área de cultura conhecem o Quino cartunista, mas a sociedade conhece a Mafalda”, diz Vergueiro. “E o Quino é um dos maiores cartunistas do mundo. Ele vai viver eternamente, porque os cartuns são atemporais.”
A obra de Quino ultrapassou os limites de Mafalda, que foi desenhada durante apenas de 1964 a 1973. Anos atrás, o pesquisador brasileiro Alvaro de Moya – especialista no assunto e um dos criadores, em 1990, do Observatório de Histórias em Quadrinhos – classificou o argentino de “o melhor cartunista do mundo”.
Em texto de 2004, o escritor e jornalista argentino Juan Sasturain, diretor da revista Fierro (publicação argentina referência em quadrinhos) destaca que a personagem escapou do “confinamento” em revistas de humor e das páginas finais dos jornais. “Quino ocupou com Mafalda um espaço original em um novo meio: Primeira Plana, o moderno semanário de informação e análise política. Ali, como depois no jornal argentino El Mundo e mais tarde no semanário Siete Días durante uma década, a pequena e seus amigos estabeleceram uma cumplicidade inédita com leitores avisados, cúmplices em um jogo com código próprio: a historinha com crianças que não é para crianças porque fala (também) de outra coisa.” Posteriormente, ao longo de sua obra, continuou a “destilar um humor conceitual, sutil e elaborado”.
A cartunista Laerte Coutinho tem o brasileiro Fortuna e o argentino Quino como referências profissionais. “São dois mestres. Com o Fortuna, tive a sorte de conviver bastante. Acho que o que me cativou de cara no Quino foram os roteiros, o ritmo das histórias, o ‘tempo’ do humor”, conta. “E os personagens, todos – não só a Mafalda. Aliás, os secundários – Felipe, Manolito, Susanita, Miguelito etc. – são melhores.” Laerte avalia que, ao insistir nos problemas do mundo, Mafalda “frequentemente entrava no terreno da pentelhice – coisa apontada por seus amigos e amigas, aliás”.
Para ela, o caso da longevidade de Mafalda se difere de outros, como Pato Donald e Popeye, que se ampararam em sistemas comerciais fortes e, a rigor, não desapareceram nunca. “Acho que tem a ver com o tipo de discurso, com mecanismos de memória cultural e com identificações sutis – e talvez com questões de classe social”, reflete. “Penso nisso ao considerar que o Amigo da Onça, que foi o personagem mais conhecido do país em sua época, quase não é mais lembrado.” E é preciso valorizar a obra do cartunista argentino, destaca Laerte. “O trabalho do Quino, o universo sem fim dos seus cartuns – que só começamos a conhecer depois da Mafalda –, se revelou uma produção riquíssima, um dos maiores autores de humor gráfico que já houve.”
Nico Kaiser / Flickr
Estátua de Mafalda no bairro de San Telmo, na capital argentina
E o que faz alguém parar de desenhar uma personagem? No caso de Mafalda, Quino costuma dizer que parou para não ser repetitivo. “Bill Watterson também resumiu assim o encerramento da série do Calvin. Angeli da mesma forma deu fim a Rê Bordosa. Mas nenhum deles deixou de desenhar ou de produzir. Eu não parei de fazer o que fazia, só mudei de direção. O principal é manter o controle sobre o próprio trabalho e não permitir que outras dinâmicas se imponham – senão a coisa perde o sentido, o prazer e a seiva”, diz Laerte.
O filósofo Juan Pablo Feinmann, que nos tempos de estudante se lembra de colegas com tiras de Mafalda para estudar a personagem em aulas, disse ter feito uma descoberta “extraordinária” recentemente, relacionada ao fim do desenho, em 1973 – um momento turbulento que culminaria, em seu país, em uma das mais violentas ditaduras latino-americanas. Contou isso ao próprio Quino, durante evento na Feira Internacional do Livro de Buenos Aires, em maio deste ano. “Em 25 de junho de 1973, Mafalda, a garota pacifista, libertária, de causas progressistas, mas sobretudo inimiga da violência, deixa de aparecer, cinco dias depois de um dos dias mais trágicos da história argentina.”
Era uma referência ao chamado massacre de Ezeiza, na área do aeroporto que leva esse nome, quando grupos políticos se confrontaram no dia do retorno de Juan Domingo Perón à Argentina. Até hoje não há certeza sobre o número de mortos – Feinmann falou em 200. “O regresso de Ezeiza foi tão sombrio e triste que deixei de ser jovem nesse dia. E cinco dias depois, Quino deixa de desenhar a Mafalda. Ela se retira, porque é a paz, a pomba branca, a menina adorável, com seus amiguinhos.”
Quino devolveu brevemente a reflexão. “Deixei de desenhar Mafalda num momento em que na Argentina já corria sangue e havia uma situação muito perigosa. Mafalda não podia ignorar os crimes, nem nada disso, mas se os comentasse talvez quem não poderia comentar mais nada seria eu. Então decidi que a pequena não comentaria mais nada.” Em 1976, após o golpe militar, Quino exilou-se em Milão, no norte da Itália. Em 1990, adotou a nacionalidade espanhola e passou a viver entre Madri e Buenos Aires.
Quino, 82 anos completados no último 17 de julho, tinha 32 quando começou a desenhar Mafalda, publicada pela primeira vez em 29 de setembro de 1964, no semanário Primeira Plana, de Buenos Aires. Mafalda seria usada, inicialmente, em uma campanha publicitária para uma marca de eletrodomésticos, mas não vingou. A fama chegou depois de 9 de março de 1965, quando começaram a sair tiras seis dias por semana no jornal El Mundo, e a partir de 1967 em formato de livros. A personagem chegaria à Itália, por exemplo, em 1969, no livro “Mafalda, A Contestadora”, editado por Umberto Eco.
Quino já comentou que, se voltasse a desenhá-la, Mafalda teria uma família diferente. A mãe, por exemplo, acompanharia a evolução da mulher na sociedade. Mas a pequena, provavelmente, seguiria uma perturbadora de consciências, em um planeta ainda cheio de problemas. Melhor ou pior? Laerte não vê o mundo dessa forma. “É um termômetro que não leva a História em conta…”
No Brasil, Mafalda só desembarcaria em 1982, pelas mãos de Henfil e com a participação do escritor Mouzar Benedito. A editora Global pretendia publicar uma versão brasileira e Quino concordou, desde que Henfil cuidasse do trabalho. Como este tinha pouco tempo disponível, Mouzar o ajudou na tarefa. E lembra até hoje do almoço em São Paulo com o dono da Global, José Carlos Venâncio, e os “ídolos” Henfil e Quino.
Ali, o cartunista brasileiro comentou que as versões “não argentinas” de Mafalda eram sem graça. “Eu tinha visto a versão portuguesa e a italiana e concordei. Perdiam muito do sentido original”, comenta Mouzar. Henfil propôs, então, uma versão “meio para o portunhol”, mantendo palavras originais de fácil compreensão e a pontuação. “Quino relutou um pouco, mas acabou aceitando.” Os 30 mil exemplares da primeira edição acabaram rapidamente. Mas a editora só foi até o número 5 da revista.
Matéria original publicada na Revista do Brasil.