Apenas uma foto da caixa de sapatos, mas como me deleita

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Mais um instantâneo da coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Neste cenário, César conta sobre uma foto de família. Como todas as fotos de família de quando nós crianças, de dar muito prazer.

“Beija-flor, 6 de outubro de 2022.




Prezado Washington, mal posso esperar pela chegada do dia 30. Venceremos, meus amigos.

Antes, todavia, há duas datas em outubro que nos convidam à reflexão: o 12 e o 15. Comecemos pela primeira data, que junta a celebração da padroeira do Brasil à festa das crianças.  A do dia 15, Dia da/o Professor/a, fica para próxima rodada.

Nossa Senhora Aparecida, rogue por nós!

Deus, proteja as crianças.

Lula Lá!

Bem, resolvi escrever sobre uma foto de família que, a julgar pelas roupas e qualidade do filme, são dos idos dos anos 1970. É uma das fotos mais bonitas de família que tenho, a despeito da ausência da minha mãe.

Ela ainda não sabe, mas, para compensar, dedicarei a ela um longo conto, talvez uma novela, em todo caso ponto central de um livro que venho preparando há algum tempo sobre as idas e vindas de pessoas que se deslocaram de sua terra natal. 

Se o livro sair no ano que vem, será ótimo. Se não sair, é porque estarei muito ocupado a ajudar a reconstruir o país, o que é bom. Eu sou forte e vingativo feito um jabuti.

Vamos ao texto!

Registre-se, esta foto foi tirada para ser um mero registro de férias em Alagoas na década de 1970. É em preto e branco e apresenta meu pai, à esquerda; meu irmão, no centro; e eu, fazendo pose – aliás, muita pose, estava até estiloso, apesar da franja estilo “Bala Juquinha” que muito provavelmente foi feita a tesouradas de fazenda por minha mãe.

Eu, confesso, só corto cabelo regularmente por ser professor. Afinal de contas, trata-se de uma profissão em que se deve estar minimamente bem apresentado.

Falando em apresentação, os três estão posando. E talvez estejam rindo por terem embarcado neste faz-de-conta em que são os tais, modelos de fotografia. Em termos de elegância, é difícil superar papai, com sua camisa xadrez por dentro das calças mesmo a passeio, sua capanga, sua barba, seus óculos semiescuros, sua calvície elegante.

Meu irmão exibe o sorriso infantil que não perdeu, a despeito dos perigos inerentes à vida. E eu, bem, estou tão exibido quanto filho de Mick Jagger com brasileira.

“I can´t get no / Satisfaction!”

Não é que a década de 1970 tenha sido a das mais felizes para os brasileiros. Há bastante verdade na afirmação segundo a qual as raízes do Brasil estão no fundo do poço, de onde temos que sair urgentemente, se não quisermos regredir ainda mais.

Todavia, como a letra de “Anos Dourados” diz ou imagino que tenha dito, “na fotografia somos felizes”.

Boa parte de tal felicidade no ar, creio, se deva ao fato do registro ser em preto e branco. Para mim, é muito difícil gostar de fotos coloridas, realistas, bem-feitinhas. Para mim, repito, a foto em preto em branco é capaz de provocar as palpitações do vaivém entre o passado e o presente muito mais que as coloridas. A lógica é de duração em vez de qualidade fidedigna.

Mas quem quer saber de fotos se hoje em dia a gente é capaz registrar tudo nas nuvens. Registrar, sim; mas não de dar tempo ao tempo. Estamos nos saturando de imagens, que são tantas que mal conseguimos delas dar conta e importância.

Continuemos. A despeito da elegância dos modelos, o fundo da foto também chama muito a atenção. É estranho escolher como cenário justamente a frente de uma casa praticamente em ruínas, como parecem atestar os vidros quebrados da janela o basculante através dos quais pode se enxergar parte dos interiores desta aqui sob foco.

É provável que originalmente a porta tinha sido de madeira e não de ferro e vidro, o que em si já é uma tentativa de modernização que se frustrou ali, que apenas a descaracterizou.

Não sei por que se escolheu justamente esta casa de filme de terror para ser o cenário de nossa foto. Também não creio que devemos dar alguma importância histórica a esta casa, ao contrário de outra foto da mesma série que tenho em minha posse: uma foto da fachada da casa de Marechal Deodoro. Nesta, há um desejo mínimo de preservação da história cujo indício é a placa com informações a respeito do primeiro presidente do país; naquela outra, nada, nada, nada.

Também não sei quem tirou a foto. Creio que não tenha sido minha mãe. O enquadramento sugere um tipo de racionalidade espacial que não é propriamente um dos atributos dela (minha mãe é de outras esferas, é outro papo, é outra onda).

Também não creio que tenha sido tirada pelo meu tio Paulo, talvez o único membro da família que conhecia de perto as técnicas da fotografia.

A despeito disso tudo, a foto é bonita e sensível, esteticamente falando.

Sortes e sortes. Que esse registro tenha vindo à luz é uma benção. Pois, nesta época, quem a viveu sabe, um descuido e iam para o Beleléu todas as fotos do filme. Era o tal do filme queimado. É muito provável que a expressão “Queimar o filme”, como sinônimo de cometer um equívoco fatal, se refira à época em que era necessário revelar as fotos.

Dizem que quando a gente morre passa um cineminha com os nossos melhores momentos, espécie de retrospectiva pessoal e aí vem a luz no túnel e tal. Quanto a mim, até aceito o tal cineminha, com ou sem pipoca, mas com bala Boneco e com lanterninha, se possível.

E se não for exigir demais, gostaria que tal suposta retrospectiva também contivesse fotos como essa, em preto e branco, tiradas por mãos inábeis, golpe de sorte de fotógrafos amadores ou ainda menos que amadores, bissextos, inexperientes. 

O meu filme da vida não se queima.

P.S. A foto é de arquivo da família. Pedi permissão a meu irmão para retirá-la da caixa de sapatos onde ela estava cuidadosamente guardada com outras fotos. O Dia das Crianças é um pouco uma data para aqueles que, por inúmeros motivos, mal tiveram tempo para viver a infância em plenitude.

Quando sonho com meu pai, o que raramente acontece, reparo que ele não ri. Ter morrido deve ter o deixado mal-humorado. Contudo, nesta foto, ele, meu irmão e eu estamos sorrindo como se não houvesse amanhã. Ou melhor, como se amanhã houvesse.

E amanhã houve e haverá.”

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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