Por Nirton Venancio, Cineasta, roteirista, poeta, professor de literatura e cinema
O ótimo filme “Comédia Divina”, de Toni Venturi, lançado em 2017, livremente adaptado do curtíssimo conto de Machado de Assis, “A igreja do diabo”, traça uma bem-humorada crítica à eterna discussão entre o bem e o mal, entre céu e inferno, entre o que aceitamos como Deus e o que negamos como diabo. Ou vice-versa. Ou de uma forma mais machadiana mesmo, o que é fé enquanto pensamos que é religião.
Protagonizado por Murilo Rosa, fazendo um capeta garboso, sedutor, ardiloso, como compete a essa entidade do imaginário (ou do real) popular, ameaçado pelos humanos muito chegados à bondade e outras virtudes, o diabo resolve subir à Terra com sua equipe e fundar sua própria igreja para derrubar a “concorrência” divina, e assim aumentar sua legião de infiéis. Qualquer semelhança não é mera coincidência.
Toni Venturi ambienta seu filme nos tempos atuais, insere elementos contemporâneos na narrativa, cenários high tech, trilha sonora pauleira, gírias. Mesmo correndo o risco de se distanciar do texto original, consegue manter a essência que o grande escritor questiona: a contradição humana.
Assisti ao filme em 25 de agosto de 2015, na CAIXA Cultural Brasília, numa sessão do excelente projeto criado pelos cineastas brasilienses Márcio Curi (1947-2016) e Renato Barbieri, Teste de Audiência. As exibições, também programadas na Caixa Belas Artes São Paulo, testavam produções em fase de finalização.
Esse saudável e estimulante tipo de aferição, com a apresentação dos filmes e a presença do diretor, tanto oferece aos cineastas questionar pontos importantes em seus trabalhos, visando falhas e acertos, eficácia na divulgação e na estratégia de lançamento, quanto uma formação de plateia que reflete a partir dessa primeira visão privilegiada. A metodologia torna-se uma parceria entre público e diretores.
Muitos filmes quando foram lançados tinham as impressões dessas experiências, de forma positiva, desde cortes de cenas à escolha de modelos de cartazes, depois da votação da plateia em questionários após as sessões. Lamentavelmente o projeto está parado desde 2018.
Naquela noite Toni Venturi encantou a plateia pela delicadeza, humildade e atenção a todas pontuações feitas, no debate após a exibição. Postura proporcional ao seu vasto conhecimento, talento e dedicação ao cinema, manifestados no curioso caso de amor de “Latitude zero” (2002); “Cabra cega” (2005), um contundente recorte sobre jovens militantes na Ditadura Militar; os precisos documentários “O velho – A história de Luiz Carlos Prestes” (1997) e “Rita Cadillac – A lady do povo” (2010), para citar alguns exemplares de sua rica filmografia.
Acordei neste domingo com a notícia da morte de Toni Venturi, ontem, aos 68 anos, depois de sentir-se mal enquanto nadava numa praia do litoral paulista, onde passava o fim de semana com a família. Dos poucos, mas intensos encontros que tive com ele, o da exibição de “Comédia Divina” foi o que mais me marcou, justamente pelas qualidades de artista, amigo e ser humano que vi naquela noite, sua generosidade em ouvir todos os apontamentos ao filme, sua disponibilidade e sorrisos nas conversas nos corredores da Caixa Cultural.
Venturi disse-me que cada filme que realizava o fazia confessadamente direcionado às grandes plateias. Todos que têm seus filmes na memória afetiva o aplaudem, como fez a sala lotada naquela noite em Brasília. O cinema brasileiro o aplaude.
Foto: acervo Teste de Audiência