No dia seguinte à eleição presidencial, bolsonaristas derrotados deram início ao “Capitólio brasileiro” parando as estradas do país, com a colaboração ativa da Polícia Rodoviária Federal. Em seguida, as massas se aglutinaram em frente aos quartéis, demandando intervenção militar para a manutenção de Jair Bolsonaro (PL) no poder.
Por Joel Birman na Folha de S. Paulo, compartilhado de Construir Resistência
A característica e o estilo uniforme das ocupações ilegais do espaço público, nos dois cenários, evidenciam de forma eloquente que são ações programadas e financiadas por empresários da extrema direita, já que a massa reunida não pode parar de trabalhar e tem sido alimentada pelos organizadores dos atos.
Além disso, o fervor religioso permeia os discursos registrados em ambos os cenários, marca saliente da extrema direita do país que não se encontra em nenhum outro lugar do mundo, pois a eleição brasileira foi transformada numa luta do bem contra o mal.
Destacam-se, assim, certas cenas de “Apocalypse Now”, com pneus transformados em altares para o exorcismo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), imagens evocando o Muro das Lamentações como santuário e mulheres em roda, cobertas com a bandeira brasileira, orando como um corifeu grego que o “diabólico STF” não vai calá-las. A retórica religiosa se espalha, portanto, como a litania dos fiéis, com a “defesa” grotesca da liberdade de expressão, apesar das palavras de ordem antidemocráticas. Enfim, entra definitivamente em cena a atmosfera lúgubre do delírio (místico), marcado pelo transe e pela possessão entre os arruaceiros operísticos.
A questão que se impõe de forma inequívoca, contudo, é como chegamos a esse ponto teológico-político após quatro anos de Bolsonaro no poder. O que ocorreu conosco nesse tempo nefasto foi a tortura diária por meio das falas do presidente nas redes sociais e na televisão, numa pregação antidemocrática contra o Poder Judiciário, com a cumplicidade remunerada do Congresso Nacional (orçamento secreto), do Ministério Público e da Polícia Federal, buscando tornar viável o mito do presidente “imbrochável” e as práticas sistemáticas da necropolítica nos menores detalhes, indo da destruição da Amazônia à política armamentista da população, sem esquecer o genocídio perpetrado na pandemia de Covid-19.
É claro que os laços sociais fundantes da política passaram decididamente a se inscrever nas redes sociais, num país campeão de consumo de smartphones, de forma que a realidade virtual passou a se impor de forma clandestina, incidindo sobre corações e mentes de maneira maligna.
Com isso, as informações apuradas pela grande imprensa não foram mais ouvidas. A massa bolsonarista passou a alimentar as suas convicções e crenças num sistema perverso de informação que bloqueava e não queria saber de nada que colocasse em questão as versões propaladas pelos seus redutos, disseminando a céu aberto a dissonância cognitiva (Festinger), que promoveu estragos consideráveis no espírito dos brasileiros.
Além disso, dois outros mecanismos psíquicos nos acometeram de forma devastadora: a dupla mensagem (Bateson) —quando alguém fala algo e tem ao mesmo tempo uma atitude oposta, como ocorre com as mães esquizofrenogênicas— e o desmentido (Ferenczi) —quando alguém é abusado por um Outro que não reconhece e não admite o que faz.
Pela conjunção de todas essas operações manipulatórias, as populações brasileiras foram levadas à divisão psíquica e à fragmentação mental, num estado confusional de ordem mística, afastando-nos do reconhecimento da palavra do Outro e dos laços sociais. Com isso, a confiança em que se baseava a democracia foi desconstruída, incidindo destrutivamente sobre as nossas convicções fundamentais como humanos. Foi por esse viés que o ódio se disseminou, de forma ampla, impondo assim o princípio nazista de Carl Schmitt de que a política é a linha estabelecida entre os amigos e os inimigos, numa forma de dissolução da cordialidade brasileira (Sérgio Buarque de Holanda).
Joel Birman é médico, psicanalista, professor da UFRJ, membro do Espaço Brasileiro de Psicanálise. Tem vários livros publicados no Brasil e no exterior. Foi vencedor de três prêmios Jabuti.