Série para o #Colabora chega ao fim com as dúvidas dos especialistas se o mundo terá o terceiro ano da emergência sanitária ou haverá redução constante do número de casos e de óbitos
Por José Eustáquio Diniz Alves, compartilhado de Projeto Colabora
Mural do artista Eduardo Kobra retratando crianças com máscaras em São Paulo: dois anos de pandemia e as dúvidas sobre o futuro da covid-19 (Foto: Nelson Almeida / AFP – 16/02/2022)
A Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou que o mundo enfrentava uma emergência sanitária e elevou a classificação da “COrona VIrus Disease” (COVID) para o nível de pandemia no dia 11 de março de 2020, embora as primeiras infecções do novo coronavírus tenham sido identificadas no final de 2019. Após 2 anos, o mundo contabilizou, oficialmente, 455 milhões de pessoas infectadas (cerca de 6% da população mundial) e mais de 6 milhões de vidas perdidas (quase uma morte para cada 1 mil habitantes). Certamente, o número real é bem maior do que o oficial, embora seja difícil avaliar toda a subenumeração dos registros.
Não existe consenso entre os epidemiologistas sobre os desdobramentos futuros da doença e nem sobre o momento de definição do fim da pandemia. De fato, havia um arrefecimento da pandemia em outubro de 2021, mas o surgimento da variante Ômicron gerou o maior surto pandêmico em janeiro de 2022. Embora os números tenham diminuído em fevereiro e março, ainda permanecem em patamar elevado e novas variantes podem surgir, especialmente em um cenário de guerra, como acontece atualmente no leste europeu, já que o movimento de tropas e uma emigração em massa podem contribuir para a difusão de novas cepas do vírus.
O gráfico abaixo do site Our World in Data, com dados da Universidade Johns Hopkins, mostra que o número de pessoas infectadas no mundo continua acima de 1,5 milhão de casos diários (200 indivíduos infectados por milhão) e o número de vítimas fatais da covid-19 está na casa de 7 mil óbitos diários (0,8 óbito por milhão). Todo mundo quer o fim da pandemia, mas não será ignorando os números que isto ocorrerá e sim com o reforço das medidas de prevenção.
Sem dúvida, existe uma tendência de queda, especialmente, das mortes globais, mas o quadro internacional da pandemia é heterogêneo. O gráfico abaixo mostra que o número de casos está caindo nas Américas e na África, mas está subindo na Oceania, Europa e Ásia. As curvas de mortalidade estão caindo em todos os continentes. Mas existem países que estão passando por dificuldades. A Coreia do Sul, por exemplo, que conseguiu controlar a pandemia em 2020 e 2021 assiste atualmente a um grande surto de casos e, inclusive, um aumento das mortes, embora o coeficiente de mortalidade do país seja bastante baixo.
Uma doença pode ser endêmica e, ao mesmo tempo, mortal. A malária matou mais de 600.000 pessoas em 2020. Dez milhões de pessoas adoeceram com tuberculose no mesmo ano e 1,5 milhão morreram. Endêmico certamente não significa que a evolução de alguma forma domou um patógeno para que a vida simplesmente retorne ao normal
Aris KatzourakisEpidemiologista
Há uma diferença expressiva entre o número de óbitos registrados da covid-19 e o cálculo do excesso de mortes, que pode ser considerado uma estimativa mais realista do verdadeiro número de vítimas fatais da pandemia. O gráfico abaixo mostra o excesso de mortes no mundo e nos 10 países mais populosos até o dia 06 de março de 2022, segundo metodologia da revista britânica The Economist. Nota-se que o excesso de mortes no mundo foi estimado em 19,9 milhões de óbitos (contra 6,04 milhões registrados). Na Índia, o excesso de mortes ficou em 5,64 milhões (contra 516 mil registradas). Na Rússia 1,19 milhão de mortes (contra 352 mil registradas). Nos Estados Unidos 1,17 milhão de mortes (contra 967 mil registradas). No Paquistão 843 mil mortes (contra 31 mil registradas). Na Indonésia 826 mil mortes (contra 152 mil registradas). No Brasil 778 mil mortes (contra 656 mil registradas). No México 711 mil mortes (contra 321 mil registradas). Em Bangladesh 534 mil mortes (contra 29 mil registradas). Na China 284 mil mortes (contra 4,6 mil registradas) e na Nigéria 220 mil mortes (contra 3 mil registradas).
O fato é que a expectativa de vida ao nascer do mundo e da maioria dos países apresentou uma queda nos anos de 2020 e 2021. Porém, ainda não existem cálculos comparativos e sistemáticos para se avaliar o tamanho da queda. Mas essa lacuna será superada até junho de 2022, quando a Divisão de População da ONU divulgar as novas projeções populacionais apresentando os indicadores de mortalidade, natalidade e migração para o mundo, regiões e todos os países da comunidade internacional.
De qualquer forma, mesmo considerando apenas os dados oficiais do número de vidas perdidas para a covid-19, alguns países possuem um coeficiente de mortalidade (óbitos por milhão de habitantes) extremamente alto. O gráfico abaixo mostra o Peru com o maior coeficiente, com 6,3 mil óbitos por milhão, seguido da Bulgária com 5,2 mil óbitos por milhão. Bósnia e Herzegovina, Hungria, Macedônia do Norte e Geórgia possuem coeficientes entre 4 e 5 mil óbitos por milhão. O Brasil está em 13º lugar com um coeficiente de 3,1 mil óbitos por milhão. A média mundial no dia 11 de março de 2022 é de 766,5 óbitos por milhão. Abaixo do coeficiente global aparecem, dentre outros países, Vietnã, Índia, Coreia do Sul, Nova Zelândia e China.
Todos os dados apresentado acima mostram que o impacto da covid-19 tem sido muito grande no mundo, sendo que os países do leste europeu, de clima frio e estrutura etária muito envelhecida, apresentam os maiores coeficientes de mortalidade (além do Peru que lidera o ranking global). Mas também existem países, como a Nova Zelândia, que apresentam coeficientes de mortalidade muito baixos.
Todavia, tudo indica que o pior da pandemia já passou, pois a curva de mortalidade está em declínio na grande maioria dos países do mundo. Há quem diga que é o fim da pandemia. Diversos países já relaxaram as medidas de distanciamento social. No Rio de Janeiro, o secretário de Saúde, Daniel Soranz, disse que “a pandemia virou uma endemia”. Segundo ele, em um cenário de maior normalidade, a covid-19 deixou de ser vista como uma emergência de saúde e muitas das restrições foram revogadas, como o uso de máscaras, a proibição de aglomerações e a exigência do passaporte vacinal.
Mas como mostramos no “Diário da Covid-19: O mundo já tem mais infectados em 2022 do que em todo 2020”, aqui no # Colabora (30/01/22), a transformação da pandemia em endemia não significa que se deve abandonar as medidas de prevenção conhecidas e a universalização das vacinas. Como escreveu o epidemiologista Aris Katzourakis, no artigo “COVID-19: endemic doesn’t mean harmless”, publicado na revista acadêmica, Nature (24/01/2022): “Uma doença pode ser endêmica e, ao mesmo tempo, mortal. A malária matou mais de 600.000 pessoas em 2020. Dez milhões de pessoas adoeceram com tuberculose no mesmo ano e 1,5 milhão morreram. Endêmico certamente não significa que a evolução de alguma forma domou um patógeno para que a vida simplesmente retorne ao normal”.
Portanto, podemos comemorar a redução do número de casos e óbitos da covid, mas não parece estar na hora de ignorar totalmente a presença do SARS-CoV-2. No dia 12 de março de 2022, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) registrou 29,4 milhões de casos e 654,9 mil óbitos da covid-19 no Brasil. A média móvel de 7 dias ficou em 45,3 mil casos diários e 431 óbitos diários. Na virada do ano estes números eram cerca de 5 vezes menores. Portanto, todo cuidado é pouco e, mesmo que a pandemia seja reclassificada para endemia, os cuidados individuais e com a saúde pública precisam continuar fazendo parte do dia a dia das pessoas e das autoridades governamentais.
O fim do Diário da Covid-19
Assim como a pandemia, o Diário da Covid-19 está completando 2 anos. O primeiro texto publicado aqui no # Colabora foi escrito no final de março de 2020 e fazia uma projeção que o Brasil atingiria, no fim do primeiro semestre (30/06/2020), um total acumulado de no máximo 380 mil pessoas infectadas e 19 mil óbitos do novo coronavírus. A projeção foi considerada irrealista e muito pessimista. As críticas dos negacionistas foram fortes. Contudo, os dados oficiais do Ministério da Saúde, divulgados no dia 30/06, indicaram 1,4 milhão de casos e 59,8 mil óbitos. Ou seja, a realidade foi muito pior do que as hipóteses da projeção.
Mas escrever sobre uma pandemia não é um exercício de tiro ao alvo. O objetivo das projeções não é acertar na mosca, mas sim fornecer parâmetros para a atuação das pessoas e das políticas públicas, visando proteger os indivíduos e salvar vidas. Como a pandemia da covid-19 era um evento novo e, no máximo, podia ser comparado com a pandemia da Influenza de 100 anos atrás, os desafios eram enormes. Existem modelos estatísticos que podem ser aplicados para fazer previsões. Mas a pandemia, embora sendo um evento global, acontecia de forma heterogênea nos vários países e continentes e se desenrolava com certa defasagem temporal nas diversas regiões. Portanto, era preciso conhecer os diferentes padrões nacionais e conhecer as realidades intranacionais.
Para dar conta desta tarefa percebemos que seria necessário análises diárias para acompanhar a abrangência e a rapidez da pandemia. Desta forma, do início de abril até 15 de julho, durante 100 dias o # Colabora disponibilizou todas as manhãs informações gerais e material quantitativo e qualitativo sobre a propagação do novo coronavírus, trazendo os fatos nacionais e internacionais mais relevantes para a compreensão da emergência sanitária. Neste esforço, nos associamos à Associação Latino Americana de População (ALAP) para conhecer a situação regional e entrevistamos demógrafos, com amplo conhecimento de epidemiologia, de todos os países da América do Sul e também da Costa Rica e do México. Adicionalmente também entrevistamos duas moradoras de dois países que tiveram grande sucesso no controle da pandemia no Vietnã e na Nova Zelândia.
Os 100 dias ininterruptos de descrição, reflexão e acompanhamento do avanço da pandemia no Brasil e no mundo envolveram muito trabalho, mas também muito aprendizado e a certeza que, dentro do nosso campo de atuação, fizemos o melhor possível para informar, dialogar e debater soluções para reduzir os casos, os óbitos e o sofrimento das pessoas. Durante algumas semanas, foi um prazer compartilhar a elaboração do Diário com companheiros tão ilustres e gabaritados como Agostinho Vieira, Oscar Valporto e Aydano Motta que ampliaram a análise da complexa situação global e local e apresentaram novos olhares e novos saberes que enriqueceram a abordagem sobre a crise sanitária.
A partir do dia 19 de julho de 2020, após o número 100, o Diário da Covid-19, manteve o nome mas se tornou semanário, com novos textos sendo disponibilizados todos os domingos. No total, foram publicados 185 artigos em dois anos de pandemia. Neste momento, o Diário chega ao fim. Mas enquanto o coronavírus estiver presente, o tema da pandemia continuará na pauta do # Colabora, mesmo a covid-19 sendo classificada como epidemia ou endemia.
O ciclo do Diário se fecha, mas uma nova coluna será criada para tratar de questões demográficas, econômicas e do meio ambiente. Afinal, o mundo está cada vez mais complexo e desigual e precisamos estar sempre usando as bússolas para ajustar a navegação real e virtual. Afinal, “navegar é preciso, viver não é preciso”.