Após cem dias, intervenção militar no Rio é uma unanimidade: foi um fracasso.

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Publicado em Nocaute – 

Samira Bueno: Por que o Rio de Janeiro e não Rio Grande do Norte? Por que não Alagoas? Sergipe? Que são estados com taxas de homicídio muito superiores. A intervenção, ela não só não vem surtindo efeitos, como você cria uma crise republicana e federativa, porque você tem vários estados com indicador de criminalidade superiores ao do Rio de Janeiro, então como é que você justifica, não só a intervenção pelo ponto de vista da mobilização dos quadros do exército, mas também o recurso que está indo pra lá.

Reginaldo Nasser: Recentemente, com a questão da intervenção no Rio, o general Augusto Heleno, que um dos que mais tem falado nisso, foi um dos primeiros comandantes de tropas na “missão de Paz no Haiti, e ele tem dado muita entrevista agora, ele está na Reserva, mas é uma pessoa de referência, e ele diz isto claramente; “Nós vamos fazer no Rio de Janeiro o que nós fizemos no Haiti”. O general tem aparecido na televisão, na Globo, como especialista em segurança pública, que é uma coisa muito interessante, porque se você  voltar um pouco, é tradicional, os militares não admitem que são de segurança pública, no primeiro momento, no sentido clássico: a função do militares é defender o país, o combate externo e eventualmente nós entramos nas questões internas. Hoje eles estão admitindo explicitamente isso.

Bueno: Eu não gosto dessa expressão “guerra”, porque eu acho que quando a gente fala que o Brasil está em guerra, é uma justificativa para a gente usar o exército, e é um pouco o que está acontecendo no Rio de Janeiro, uma justificativa de que o Rio de Janeiro está em guerra e por isso uma necessidade de usar a intervenção das Forças Armadas, então não deixa de ser, a gente não deixa de conviver com indicadores de guerra, mas isso tem maios a ver com a incompetência do poder público no desenvolvimento de políticas de segurança, do que efetivamente, um quadro de descontrole ou de uma guerra entre etnias.

Nasser – Ele trocou o comando de segurança pública que está alocado no governo, podemos discordar, mas eleito democraticamente etc. e colocou sobre o comando militar, isso é inédito nesse período pós ditatura civil militar, então a mudança é essa. Eu diria que ao acontecer isso eles estão querendo ir mais além. Eu me lembro que uma vez eu fui perguntar a um dos generais e eu vi minha ingenuidade e inocência apesar de estudar política. Eu perguntei:  Quando essas tropas vão para esse campos e tudo mais, eles são regidos pelo que? Direito nacional humanitário, direitos humanos? Ele falou: nenhum dos dois, regra de engajamento.

O que é essa regra de engajamento? Cada tropa de uma regra que é dada pelo comandante, e ele da a liberdade para aquele que está em ação resolver o que ele deve fazer. Então, esse cara ali no terreno, ele tem o poder de decidir, se aquele que está ali tem intenção hostil, não tem intenção hostil.

Ao lado disso, o que aconteceu? Os militares passam a ser julgados nesses atos pela Justiça Militar. Veio coroar esse processo de intervenção. Eles estão atuando dentro do país, dentro das comunidades como se fosse um teatro de guerra. Isso é guerra. Então são militares atuando como polícia, fazendo operações policiais, mas ao mesmo tempo trazem esse ethos da guerra.

Bueno: Eu não consigo ver uma forma do Brasil sair dessa crise que não seja o investimento em política pública. E colocar as Forças Armadas para fazer isso é exatamente o que nós não deveríamos fazer. Estamos adotando o modelo mexicano e temos todos os exemplos de que a “mexicanização” da segurança pública não só não vai funcionar no Brasil como não funcionou no México. Então a minha única preocupação de trabalhar com essa concepção de guerra é que a gente reforça o modelo belicista, militarizado, que a gente vem fazendo até agora e não funcionou.

A gente tem que enfrentar isso de maneira séria e entender que isso é uma responsabilidade do poder público nas suas três esferas. Segurança pública não é só um problema de polícia. Se fosse, já teríamos resolvido.

Nocaute: Você acha que isso abre um precedente para uma intervenção maior?

Nasser: Abre o precedente, não tenha dúvida nenhuma. Porque pôs um pé ali dentro do governo, governo do estado eleito, e numa área fundamental que é segurança. Não é de se estranhar que numa sequência de eventos eles venham interpretar também que o governador está inabilitado para isso. São princípios de estado de direito, democráticos, que vêm sendo corroídos progressivamente e gradativamente. Hoje no mundo não temos mais aquele modelo de 60 e 70, toma de uma vez, golpe militar. Você tem a corrosão sistemática, progressiva de várias coisas que atingem as pessoas no seu cotidiano. É uma outra forma. Mas não tenho dúvida nenhuma de que é um precedente muito perigoso.

Bueno: A redemocratização do Brasil não mudou nada na arquitetura institucional da segurança pública. A gente vem de um período de ditadura militar e manteve as mesmas pessoas, nas mesmas posições, dizendo para elas que tinham que fazer política de segurança. Um pouco do que a gente vive hoje é reflexo das escolhas que fizemos ou não fizemos nos anos 80, dos fantasmas que a gente não enfrentou. E o pior: estamos flertando com o autorismo num momento em que Jair Bolsonaro aparece como um dos principais candidatos à Presidência.

A esquerda historicamente no Brasil não se preocupou com políticas de segurança pública porque apostava que com a redução da desigualdade a gente ia resolver os dilemas cruciais da violência e vários outros. E isso não se converteu. Ao passo que a direita o tempo todo nesses últimos 30 anos ficou discutindo política de segurança pública e conseguiu impor um modelo hegemônico.

O que a gente vem reproduzindo é um modelo que a direita idealizou. Mas a esquerda nunca teve nada para colocar como contraponto. Então veio com um projeto de direitos humanos muito forte, mas esqueceu que tinha que ter política de segurança junto. Se essas duas coisas não andam de forma conjunto, acontece o que aconteceu no Brasil: uma desmoralização completa dos direitos humanos. As pessoas acreditam que direito humano é coisa de bandido, não entendem que isso é uma efetivação de direitos para toda a população e no fundo até hoje a esquerda não tem um plano real e concreto para a redução da violência. Acho que essa é a maldição da esquerda hoje no Brasil.

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