Thelma Kai em seu Facebook –
Hoje eu acordei e a primeira coisa que percebi é que estava um dia lindo, de sol. Um sol magnífico, quente, acolhedor. “Forte demais para mim, pensei”. Sentia muito frio, então resolvi sair para ficar no sol.
Andei pelos quarteirões em volta da minha casa, parando em alguns pontos que me traziam lembranças que nesse momento eu preciso expurgar. Parei em um deles. “Então, sente alguma coisa?”- iniciei o diálogo na minha cabeça. “Sim, ainda sinto. Mas um dia eu vou passar por aqui e não vou sentir nada. Nem dor, nem raiva, nem saudade, nada. Será apenas indiferente, um trecho de rua como outro qualquer”, respondi a mim mesma.
Fechei os olhos e me virei para o sol. Fiquei sentindo seu calor e fazendo associações que apenas me machucaram. “Preciso delas agora, preciso deixar que venham, que devastem tudo. É como na floresta: é preciso um incêndio que acaba com tudo, para que o novo renasça”, refleti. E tristemente constatei que, apesar de toda a força do sol, eu jamais senti tanto frio na minha vida. “O verão acabou. Estamos no inverno” – o pensamento óbvio chamou-me de volta à realidade.
Fui à padaria e pedi um capuccino médio. Quente, acolhedor, com aroma de boas lembranças. Fiquei observando as pessoas à minha volta. Famílias. Alguns homens juntos. Todos conversando, todos envolvidos em suas rotinas. Dois casais entram de mãos dadas, separadamente, um em seguida do outro. O primeiro pensamento que me veio à mente foi um questionamento de como as pessoas conseguem viver a ilusão e qual a finalidade disso. Constatei que já havia pensado isso há muito tempo, há exatos 20 anos e que nessa noite, quando expressei essa ideia, o amigo que me acompanhava disse: “Nossa, mas você está amarga. O que aconteceu?”. E eu nem perdi tempo em responder. “Estou assim de novo”. Mas lembrei-me também de que naquela época eu consegui construir algo novo, que é na verdade algo até meio monstruoso, mas que no fundo é forte e, o mais importante: é algo que me preserva, que cuida de mim. Verdadeiramente a única pessoa que faz isso, que cuida de mim, sem nunca sequer ter prometido isso. “Preciso recuperar essa pessoa”, decidi.
Voltei pra casa e a primeira coisa que vi foram os vasos secos. Vários deles. Flores que comprei porque faziam sentido; era verão. Três vasos de celósias vermelhas, um de azaléas vermelhas. Duas plantinhas de flores miúdas brancas, para o banheiro. E um vaso de rosas que havia ganhado. Todas acabaram secando e morrendo. Por quê? Eu sabia que elas precisavam de apenas duas coisas para viver: água e luz. E eu fui incapaz de prover. E todos os dias, mesmo me sentindo culpada, olhava para os vasos antes de sair de casa e pensava em aguá-los. Ato contínuo, fechava a porta, girava a chave e me ia, decidida a fazer isso na volta. “Isso se chama irresponsabilidade. Você saber do que um ser vivente precisa, saber que você é o responsável por prover e decidir – sim, intencionalmente – não dar isso”.
Peguei um saco grande e joguei todos os vasos. Há alguns dias, inclusive, li um artigo que discorria muito seriamente sobre o dano de se manter plantas mortas em casa, aquela teoria sobre energia e sobre como isso afeta nossa vida, emperra as coisas, faz tudo dar errado. “Pronto, o incêndio veio. Mas já terminou. Agora é hora de limpar a terra para que os brotos da primavera venham e exista a possibilidade de um novo verão”.
Levei as flores mortas para o lixo e vou começar a faxina da minha vida. Como no livro da japonesa louca, que não li mas me explicaram, você organiza as coisas à sua volta e isso automaticamente organiza as coisas por dentro.
Para que eu escrevi isso? Para partilhar com vocês a principal constatação de toda essa manhã, sobre responsabilidade. Meio clichê, meio piegas, mas é o que está no Pequeno Príncipe: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”. Sejam responsáveis. Eu pretendo comprar novos vasos, mas só quando tiver certeza de que serei absolutamente e eternamente responsável para que não morram enquanto estiverem sob meus cuidados. Quando for verão novamente, algum dia.