Aprendizados do silêncio

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Admitir nossos medos, fragilidades e dores tem sido particularmente desafiador para mulheres negras, porque não temos direito à dor, ao medo e à fragilidade. A propósito, mulheres negras não têm direito ao erro

Compartilhado de Projeto Colabora




Curar nossas dores, feridas, as doenças das nossas almas, requer muitas vezes uma certa contemplação que encontramos no silêncio. Foto Nicolas Economou/NurPhotoAFP
Curar nossas dores, feridas, as doenças das nossas almas, requer muitas vezes uma certa contemplação que encontramos no silêncio. Foto Nicolas Economou/NurPhotoAFP

Nos longos anos em que estudo o feminismo negro, aprendi um pouco sobre silêncio e silenciamento. Embora possam parecer muito próximas e semelhantes, às vezes essas duas coisas se distanciam bastante. Nas estratégias de resistência, sobretudo aquelas que se dão em perspectiva mais subjetiva, o silêncio pode ser uma forma de potencializar nossas lutas e um caminho de aprendizado. Nas tradições religiosas de matriz africana, agosto é relacionado a Obalúayé que é associado à cura, ao espírito da terra e ao silêncio. Eu aprendi sobre o silêncio enquanto potência a partir do terreiro.

Leu essa? As lutas de Mãe Beata de Iemanjá

A cura demanda silêncio. Curar nossas dores, feridas, as doenças das nossas almas, requer muitas vezes uma certa contemplação que encontramos no silêncio. Ouvir o silêncio demanda muito de nós, exige respirar profundo e entrega. Estabelece também que sejamos capazes de olhar nossas fragilidades, nossos medos e dores com o objetivo de acolhê-los. Admitir nossos medos, fragilidades e dores tem sido particularmente desafiador para mulheres negras, porque não temos direito à dor, ao medo e à fragilidade. A propósito, mulheres negras não têm direito ao erro.

Errar, sentir dor e ter medo são coisas humanas. A célebre frase “errar é humano” diz algo importante sobre quem pode errar. Podem errar aqueles considerados humanos – logo, criminalizar e vilanizar todo e qualquer erro de pessoas negras é uma forma de desumanização. Mais uma.

Você já deve ter percebido como pessoas negras não têm direito ao erro, a gente inclusive reforça essa ideia com frases como “um homem negro não pode errar”. O que a gente não percebe é que a partir da repetição de afirmações como estas acabamos por cristalizar ideais que desumanizam pessoas negras. Que impedem que elas tenham direito ao erro, ao medo, ao silêncio e à cura.

Nossos erros podem ferir pessoas e nos ferir também. Aceitar nossos erros e nos permitir errar e reconhecer que erramos é também conferir humanidade aos nossos atos. Contemplar em silêncio nossos erros com disposição à reflexão implica em olhar para dentro de nós mesmas e reconhecer quando silenciamos e quando estamos sendo silenciadas. Esse processo não é estanque, assim como nossas vivências são atravessadas por múltiplas experiências, o silêncio não é uma coisa só. Demorei muito tempo para acolher minha necessidade de conhecer a outra face do silêncio porque fui educada para manifestar todas as minhas indignações. E as minhas indignações são muitas e demandam esforços para serem expressadas, esses empenhos me geraram cansaços e fragilidades também difíceis de acolher.

Assim como eu, outras mulheres negras se recusam a manifestar fragilidades e vulnerabilidades, para não interromper processos de cura. A depender da cura que precisamos e buscamos, teremos que acolher a necessidade do silêncio como processo de fortalecimento e autoconhecimento. É no silêncio, na intimidade dele, que me deparo com a existência daquilo que aprendi a refutar na minha personalidade: o quanto eu sou vulnerável.

De alguma maneira, associei o meu desejo radical por justiça social à ideia de força. Preciso ser forte para conseguir me manter atuando na defesa daquilo que acredito. Apesar de na teoria saber os impactos do pensamento binário na desumanização de pessoas negras, na prática eu me neguei a acolher minha vulnerabilidade porque ela não cabia no meu entendimento de força.

O tempo e a contemplação do silêncio me fizeram perceber aos poucos que o problema era a minha insistência em me colocar na terceira pessoa, como se pudesse isolar meus sentimentos da minha estratégia política ou mesmo da minha produção intelectual. Como se existisse uma Winnie que ficava guardada em um espaço isolado longe dos olhos da sociedade; essa Winnie que se magoa, comete erros, é frágil e vulnerável não podia jamais ser vista. Ela me constrangia e ainda constrange.

Assim como eu, sei que existem muitas outras mulheres negras lidando com essa consciência dupla. Com esse lugar estranho da vulnerabilidade e da força, da necessidade de colo e da negação da fragilidade. Para elas, desejo a sabedoria do silêncio, das formas de cura que exigem olhar para dentro de nós mesmas e acolher o que não é esperado de nós. Desejo o direito ao erro e a possibilidade de atravessar as dores causadas pelos erros que cometemos, porque assim aprendemos, A permissão de errar como exercício da nossa humanidade cotidianamente negada.

Acima de tudo, que sejamos capazes de olhar com maior afetuosidade umas para as outras em momentos como estes. Afinal, quando pessoas brancas erram a gente geralmente corre para uma segunda chance, quando pessoas negras cometem erros a gente costuma condenar a subjetividade dessas pessoas ao erro cometido. E essas formas diferentes de lidar com o erro do outro também são resultados das armadilhas que o racismo tão habilmente desenvolveu para minar nossa sobrevivência. Contemplo em silêncio meus erros no desejo de curar as feridas que causei em mim, mas especialmente no anseio que aquelas que causei em outras pessoas possam ser também curadas para podermos seguir de braços dados.

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