Na mesa mais uma coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Nesta sentada, o cronista conta a história, idas e vindas, de uma velha mesa.
Senta que lá vem história!
“A senhora Capelli* não queria mais ver aquela velha mesa nem pintada de ouro. Para ela, não importava nem um pouco que a peça retivesse um pouco da história do país de seus pais. Era feia, pronto. Não dava pra ficar nem no sótão, que já estava lotado de tralhas.
E foi assim que, graças à boa ação desta fada-madrinha, praticamente a execução de uma ordem de despejo, o velho Bucco* apareceu na boca da rua carregando nas costas uma mesa que, segundo seus padrões, tinha personalidade, apenas precisando de uma reforminha básica, de alguns ajustes aqui e acolá, de uma manutenção.
Bem, depois do desembarque do tesouro, o Bucco tratou logo de contatar o primo que era montador de móveis. Foi mais difícil do que fácil entrar em contato porque o primo não atendia às chamadas (temporariamente o primo estava sem celular, como ficou constatado depois da conversa).
O jeito foi o sonhador pegar a bicicleta e se mandar para o outro canto da cidade onde o primo morava. Ficou decidido que o primo iria avaliar a jóia de jogo de mesa o quanto antes. É claro que este tempo, Buccaniano, se estenderia um bom bocado, quase que infinitamente, pois o primo faria o serviço, questão de honra, mas em um dia livre, que é algo difícil de se obter, ainda mais quando se está a todo tempo assoberbado de tarefas.
E assim se passaram uns bons dois meses e a mesa e as quatro cadeirinhas, no meio da sala, à espera do reformador. A demora levou a senhora Bucco às raias do desespero. Tanta coisa pra fazer e o marido em delírio – pra variar. Por ela, cá entre nós, não haveria essa idéia tresloucada de reforma em móvel velho, ainda mais reforma a conta-gotas. Ela não gostava quando o marido dava uma de balão, aquele que só vive nas nuvens, querendo reavivar um passado que muitas vezes nem dele era, de tão inventado.
Se o gosto dela fosse levado em conta, os moveis, planejados, seriam brancos ou de um marrom bem clarinho, daquela cor que o pessoal gente fina chama de marfim. E na sala haveria uma televisão de plasma grande de não sei quantos canais, que o maior divertimento da senhora era a novela, mais até do que os grupos da família.
Não adiantava, em suma. Onde o marido via beleza ela via velharia, traste. Para não perder de vez a paciência, ela evitou passar pela sala o quanto pode. Mas com o tamanho do apartamento, era praticamente impossível que ela, mais dia menos dia, não esbarrasse naquele trambolho. E o marido, como todo bom e velho Bucco, em busca de bicos pra complementar o orçamento, quase não parava em casa.
Foi então que ela teve uma brilhante idéia: cobriu com um lençol velho o jogo de mesa. Entretanto, se de um lado ela resolveu o problema, de outro ela arrumou um novo para o qual ela não tinha se atentado. Não é que as crianças gostaram do trambolho daquele jeito, de lençol por cima? Imaginaram os pimpolhos cortejos de elefantes hindus, tigres brancos, califas, faquires e mulheres azuis de mil braços, pois imaginando em cabeça de criança tudo dá. E não é que os pés da mesa não lembravam, ainda que de leve, trombas de elefantes?
Talvez por isso as crianças da casa tenham sido as que menos gostaram quando em um sábado o primo montador e marceneiro foi recebido às sete da matina com café e pão para a bendita avaliação do móvel.
Ele olhou bem para o conjunto. Condenou o forro de duas cadeiras, disse que consertava fácil-fácil a tampa da mesa, que ficaria como nova. E elogiou as demais pernas das mesas, dizendo-lhes que elas bonitas e firmes como as de misses.
A senhora Bucco não disse nada, mas pensou que aquele primo distante talvez tivesse sob o efeito involuntário de algum verniz tão tóxico quanto cola de sapateiro. Depois de mais dois goles de café, os dois homens da casa colocaram com cuidado a mobília a ser restaurada na caçamba de uma “BuKombi” – que aliás também precisava de uma boa reforma. E a sala ficou vazia. Estranhamente vazia.
Foi coisa de um mês e meio, se tanto. Não é que quando retornou a mesa parecia outra? E o estofado das poltronas não parecia tão reluzente quanto as poltronas dos ônibus da Cometa? Era preciso reconhecer, o resultado ficou bonito. Todos estavam satisfeitos, até as crianças que ganharam dois tacos de beisebol feitos, pasmem, com as pernas de uma cadeira. Quanta felicidade!
A mãe lhes proibiu de continuarem a brincar de hindus debaixo da mesa. Que brincassem de Taco no quintal, tendo o devido cuidado de não quebrarem os vidros das janelas, nem as de casa nem as dos vizinhos. E lá foram os dois DiMaggios pro quintal dos sonhos.
Ainda absorta em pensamentos, a mulher acariciou a barba do marido e nele pregou seus dois olhos claros. Até que ele era tão feio assim, tinha personalidade, mas bem que só precisava de uma reforminha. Depois, meio como quem não quer cada, disse que uma boa televisão de plasma combinaria com o jogo de mesa. E a parede em frente estava ali, bem em frente a eles, não poderia ser marfim? O que um Bucco não faria para agradar a mulher amada?
Antes da bendita pintura, o primo conseguiu um celular velho quase sem memória, mas que, no entanto, funcionava. Era melhor do que nada ou não era? Será que algum parente tinha um carregador velho para lhe emprestar?”
*Personagem da coluna, Bucco é um “Faz tudo”, que vive em busca de bicos. Sempre antenado numa oportunidade, qualquer que pinte, Bucco é um dedicado pai de família.
*Cappelli – família de classe média, personagem da coluna
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.