Aqui tem história: Estação Ferroviária Leopoldina, dos trilhos às ruínas

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Senhores passageiros, embarque no trem para percorrer a história do ramal ferroviário que ligava Niterói a Itaboraí até os primeiros anos deste século

Por Sofia Miranda, compartilhado de O São Gonçalo




Estação de Porto das Caixas, em Itaboraí, a esquerda no final do século XIX e a direita, em 2023

Assim como todo fim de um era abre espaço para novas descobertas, às vezes, algumas descobertas não aguardam pelo fim de outras. É o caso do declínio dos transportes navegáveis e das vilas-porto, atravessado pela criação dos transportes ferroviários. Neste episódio de ‘’Aqui tem história’’, eu convido você, leitor, a percorrer o ramal ferroviário que ligou Niterói e Visconde de Itaboraí até os primeiros anos da década de 2000. Hoje, as ruínas em meio aos centros urbanos, são mais um fragmento da memória e do abandono da estação ferroviária. 

A criação de vários trechos ferroviários no leste fluminense, no fim do século XIX, acabou agrupada pela E.F Leopoldina na Linha Litoral. Essa linha passava por Niterói, e ia até Espírito Santo, com extensão estimada de 638 km. 

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Mapa ferroviário da linha litoral

Mapa ferroviário da linha litoral|  Foto: Reprodução

Primeira estação: Os municípios ligados pelo trecho 

Em 23 de abril de 1860, foi inaugurado em Itaboraí, o primeiro trecho da E.F Leopoldina, com início na Estrada de Ferro Cantagalo, entre Porto das Caixas, e final em Raiz da Serra, nas Cachoeiras de Macacu. O trecho foi feito pelo barão de Nova Friburgo e seu sócio, Cândido José Rodrigues Torres, futuro barão de Itamby. Segundo o historiador e presidente do Instituto Histórico e Geográfico Itaborahynse, Deivid Antunes da Silva Pacheco , a inauguração contou com a presença dos imperadores D. Pedro II e D. Thereza Cristina, além de autoridades imperiais, Câmara Municipal de Itaboraí e membros da aristocracia carioca e fluminense. 

Trem da linha do Cantagalo na Estação de Niterói

Trem da linha do Cantagalo na Estação de Niterói|  Foto: Reprodução

‘’Construíram um arco do triunfo para receber o Imperador e toda a corte do Rio de Janeiro, os principais ministros. E foi um ato muito simbólico porque o Imperador iria vir ao Rio de Janeiro’’, contou. 

‘’Em 1860, ele chega até o Porto das Caixas para fazer a inauguração junto com essa comitiva, traz a Coroa Imperial, a de Estado e que está no Museu Imperial hoje (Petrópolis). Ao longo dos anos, a ferrovia tinha a função de escoar a produção, principalmente de café das fazendas do Barão de Nova Friburgo, na região de Cantagalo, até a cidade do Rio de Janeiro. Então existe esse eixo ferroviário da Raiz da Serra no primeiro momento até Porto das Caixas e depois aconteceu um prolongamento da ferrovia no final do século XIX, até Niterói.’’ 

É este prolongamento citado pelo historiador é o protagonista deste episódio. O ramal entre a estação de Porto das Caixas, em Visconde de Itaboraí até Niterói. 

Contudo, antes é preciso entender o contexto dos municípios que foram ligados pelo trecho, até ele ser ativado. 

Com a criação da Estação Ferroviária Leopoldina em 1860 e a construção da estação de Porto das Caixas, o transporte anterior, feito pelo modal hidroviário se viu ameaçado. Quando a linha férrea passa a pertencer a ferrovia Leopoldina Railway, a estação Visconde de Itaboraí, construída em 1874 é incorporada. Com a ativação do trecho Visconde de Itaboraí- Niterói, e das demais extensões incluídas a Estação Leopoldina por todo o Leste Fluminense, o transporte hidroviário na região sofreu decadência. 

São Gonçalo, personagem secundário mas de grande importância nessa história, fazia parte do trecho, sendo o entre-meio entre Visconde de Itaboraí e Niterói. No século XIX, hoje o que é o maior município do Estado do Rio de Janeiro, antes era dominado por terras de cultivos, engenhos e canaviais. Foi gradualmente substituído por policulturas, que abastecia o consumo crescente da região. Em razão do grande porte agrícola da cidade, havia um fluxo comercial de navegação intenso nos portos gonçalenses.

Posteriormente, mesmo sendo uma cidade semi-rural, com algumas linhas férreas e algumas indústrias, o município passou a atrair indústrias de base, sobretudo pelo seu baixo consumo de energia elétrica, diante da população que ainda era escassa, mas que iria crescer exponencialmente a partir da década de 50, como reflexo da produção industrial que estava gerando. 

Niterói, por sua vez, não possuía terras propícias para cultivo, por isso focou no setor industrial. A cidade multiplicou suas indústrias têxtil, fumo, fósforos e usinas de açúcar, apresentando um parque industrial voltado para o setor de consumo. Havia também indústrias metalúrgicas, química, da construção civil e naval. 

Niterói, em 1955

Niterói, em 1955|  Foto: IBGE – Enciclopédia dos Municípios Brasileiros

Niterói, São Gonçalo e Itaboraí foram fundadas próximas do Distrito Federal, na época, ocupado pelo Rio de Janeiro, ou seja,  rodeavam o centro político e econômico brasileiro. Do mesmo modo, quando o Rio de Janeiro deixou de ser capital federal e perdeu seu poder administrativo, não perdeu sua influência político-econômica na formação da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, que já estava trilhando (literalmente) sua consolidação. 

Próxima estação: As viagens 

No entanto, apesar de bonita e um tanto ideal a proposta trazida pela E.F, a realidade para os passageiros que precisavam utilizar o transporte, era um tanto difícil. O ramal Niterói-Visconde de Itaboraí passava por onze estações, são elas: Niterói, Maruí, Barreto, Vila Lage, Porto da Madama, São Gonçalo, Alcântara, Guaxindiba, Itambi, Amaral e Visconde de Itaboraí. O ponto de partida (ou final, dependendo do ponto de vista) ficava no Barreto, em Niterói. No lugar, algumas pessoas embarcavam com destino para São Gonçalo ou Itaboraí, outras desembarcavam e iam trabalhar. 

Vera Lucia Miranda, que hoje mora em uma das casas onde antes davam lugar aos ferroviários, lembra com gosto da época em que a estação não passava apenas de ruínas. ‘’Aqui era o ponto final. As pessoas desciam, iam trabalhar, e quando era por volta de umas seis horas da tarde, as pessoas voltavam para pegar o último trem e voltar para casa. Tinha um cafezinho aqui, e elas tomavam enquanto o trem não chegava. Muitas emissoras também faziam muitas festas nesse espaço aqui.’’, lembrou a moradora. 

Estação do Maruí, localizada no Barreto

Estação do Maruí, localizada no Barreto|  Foto: Reprodução

Apesar da atividade ferroviária, o funcionamento não era sinônimo de qualidade. Os passageiros sofriam com problemas nas locomotivas e nos próprios trilhos. Acostumavam-se com atrasos e cancelamentos e quando conseguiam pegar o transporte, os problemas eram outros: portas defeituosas seguiam abertas pelos trajetos, janelas quebradas e outras opacas pela sujeira. As vias tortuosas e irregulares também ofereciam perigos, os passageiros, além de tudo, deviam tomar cuidado para não cair, já que algumas portas nem existiam mais e os acidentes eram frequentes, mesmo que as locomotivas operassem em baixa velocidade. 

Locomotivas circulavam sem manutenção

Locomotivas circulavam sem manutenção|  Foto: Reprodução

Outro problema recorrente surgia durante o trajeto, como o trem passava a cada três horas,  muitos motoristas deixavam os veículos sobre a linha e iam fazer compras ou entregas. Diante do abandono da linha, alguns achavam até que o ramal estava desativado. Para evitar isso, os maquinistas iam apitando para que as pessoas saíssem do trilho. 

Nota de 16 de abril de 1952, sobre um acidente com um trem noturno que vinha de Barão de Mauá na estação de Visconde de Itaboraí, que resultou na morte por esmagamento de um tripulante. O trem seguiu viagem

Nota de 16 de abril de 1952, sobre um acidente com um trem noturno que vinha de Barão de Mauá na estação de Visconde de Itaboraí, que resultou na morte por esmagamento de um tripulante. O trem seguiu viagem|  Foto: Reprodução

As paradas iam se sucedendo e o panorama não mudava: Amaral, Itambi, Guaxindiba, Laranjal, Jardim Catarina. Em alguns pontos, pedras serviam de apoio para que os passageiros subissem aos vagões. Bancadas, escadas de madeira, aterros e até plataformas também serviam de degraus. E assim seguia o trem: Alcântara, Melado, Estrela do Norte, Rodo de São Gonçalo, São Gonçalo, Madama… e por aí vai. 

Próxima estação: A atuação do governo JK e regime militar para o declínio do ramal 

O sucateamento do modal ferroviário iniciou ainda no governo de Juscelino Kubitschek, nos anos 1956 e foi consolidado pela Ditadura Militar, em 1964, conforme conta Deivid 

‘’O Juscelino quando muda o modal de transporte público no Brasil, privilegiando a rodovia para incentivar as montadoras de carro, especialmente a Volkswagen, começa esse programa de precarização das ferrovias no país que é acentuado no regime militar.’’ 

Os resultados dessas ações foram vistos na extensão das linhas ferroviárias. Segundo um estudo da Revista Brasileira de Geografia Econômica, em 1957, a linha que alcançou 37,967 km caiu para 33.864 km em 1965, e em 1985 restavam 29.777 km. 

O rápido desmonte foi incentivado pelo poder centralizado do comando militar, que desativou parte dos ramais ferroviários. Em 1966,  o Ministério dos Transportes criou o Grupo Executivo para Substituição de Ferrovias e Ramais, que juntamente com o Departamento Nacional de Estradas de Ferro e a Rede Ferroviária Federal (RFFSA), retomaram a administração das ferrovias. Neste momento, é promovida a erradicação de ramais que não obtinham lucros, a partir do programa de ferrovias ditas como ‘’antieconômicas’’. 

Nesta leva, a estrada de ferro de Cantagalo foi desativada, com seus trilhos removidos e seu túnel soterrado. Em 1996, este túnel ferroviário foi tombado como patrimônio cultural de Itaboraí. 

Já os protagonistas deste capítulo, o trecho Niterói-Visconde de Itaboraí seguiu operando, junto com a falta de manutenção e renovação da linha, que não demorou muito tempo para resultar na precarização dos trilhos e dos trens. 

Estação de Porto das Caixas em 1970

Estação de Porto das Caixas em 1970|  Foto: Reprodução

Em 1960, o distrito federal é transferido para Brasília e tira do Rio de Janeiro a centralidade do poder administrativo. A cidade do Rio de Janeiro passa a ser capital fluminense, e as 14 cidades do seu entorno formam a região Metropolitana.

Durante a década de 1970, ainda de acordo com dados da Revista Brasileira de Geografia Econômica, cerca de 80% dos recursos públicos para o setor dos transportes foram destinados ao transporte rodoviário, os outros 20% eram divididos entre as ferrovias e demais modais. O governo militar, após executar o Plano Nacional de Desenvolvimento, conseguiu elevar o PIB nos primeiros anos, sendo resultado dos empréstimos feitos no FMI e as concessões privadas. Neste momento, ampliou-se o número de multinacionais, principalmente as automobilísticas, empresas de transporte, causando aumento de consumo de carros particulares e ônibus. Essa foi a base do chamado ‘milagre econômico’, que tem como símbolos as construções da Transamazônica e Ponte Rio-Niterói.

Essas políticas-administrativas causam a perda do poder político de Niterói e consequentemente, um esvaziamento industrial. 

Próxima estação: Se aproximando do ponto final 

Com a falta de manutenção que se seguiu, as locomotivas do ramal Niterói-Visconde de Itaboraí continuaram circulando com muitas dificuldades. Já no século XXI, em 2004, em razão de um roubo de tubulação entre Guaxindiba e Itambi, a linha foi destruída, o que ocasionou a parada do trem e a consequente invasão do leito por posseiros. 

Em agosto de 2005, depois de sete meses, ele voltou a circular e trouxe para os passageiros a esperança de locomotivas revigoradas, no entanto, tamanha foi a decepção. Em uma edição da época veiculada pelo jornal Extra, moradores se mostraram frustrados com os serviços prestados. 

Um dos últimos trens em funcionamento, em 2006

Um dos últimos trens em funcionamento, em 2006|  Foto: Diego Raymundo

O ramal continuou funcionando até meados de 2005, quando foi desativado definitivamente. Numa edição do jornal O DIA de 2003, o diretor de produção da CENTRAL informou que havia um único trem circulando, a 20 km por hora e que foi construído em 1950. O trem apresentava problemas diariamente, os funcionários já estavam habituados a fazer remendos na máquina. Não havia verba para manutenção nos trilhos, que já estavam obstruídos por lixo e pela vegetação, assim como não havia reparo nos vagões. A CENTRAL estimava que 180 pessoas utilizam o ramal diariamente e a tarifa era de R$0,60. Com o mau estado de conservação e com poucos passageiros, a linha não atraia concessionárias.

No passado, interior da estação do Maruí, localizada no Barreto

No passado, interior da estação do Maruí, localizada no Barreto|  Foto: Reprodução

Segundo o historiador, em 2006 o ex-governador Sergio Cabral tentou reativar a linha através do projeto ‘Linha 3’, que não foi para frente. Além disso, a Petrobrás fez um acordo com a Central Logística, de uso do leito ferroviário, que também culminou na retirada dos trilhos para a construção de uma nova estrada de ferro com objetivo de transportar peças que não poderiam passar pela BR-101. 

Última estação: O que sobrou do trecho Niterói-Visconde de Itaboraí 

Gostaria de dizer que as histórias da estação e das locomotivas ficaram registradas sobre os trilhos, se eles não tivessem sido removidos também. Aliás, foi o que aconteceu em todas as estações após a desativação definitiva. Os espaços foram tomados por pessoas em situação de rua e posseiros, que levaram os trilhos e o que sobrou das locomotivas. 

Hoje, na estação de Visconde de Itaboraí, as ruínas são as únicas responsáveis pelo lembrete de que um dia algo esteve ali. Nas demais estações até Niterói, a configuração é a mesma, em algumas, foram grafitadas desenhos de trens como uma memória das estações. 

Ruínas da estação de Porto das Caixas, em Visconde do Itaboraí

Ruínas da estação de Porto das Caixas, em Visconde do Itaboraí|  Foto: Filipe Aguiar

Na estação de destino final do trecho, onde eram descarregadas as cargas, hoje fica localizada uma carpintaria.

Ruínas da estação do Maruí, no Barreto

Ruínas da estação do Maruí, no Barreto|  Foto: Filipe Aguiar

 Em parte das estações, o chão que antes comportava trabalhadores e famílias que esperavam pelos trens, hoje serve de moradia para pessoas em situação de rua e dependentes químicos. 

Sob supervisão de Marcela Freitas 

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