Aragão: “Toda vez que se deposita alguma esperança no STF, a gente só pode rir no cantinho da boca”

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Por Celso Vicenzi em  Diario do Centro do Mundo – 

O ex-ministro da Justiça no governo Dilma e ex-procurador do Ministério Público Federal, Eugênio Aragão, proferiu palestra no Seminário estadual sobre “A conjuntura nacional, a reforma política e os possíveis conflitos de jurisprudência”, promovido pela CUT/SC no dia 26 de outubro, na Federação dos Comerciários de Santa Catarina (Fecesc), em Florianópolis.

 

Uma aula sobre quem são e como atuam os agentes e os órgãos do Ministério Público e do Judiciário, e sobre as ilusões dos governos populares de Lula e Dilma, que esqueceram a luta de classes.

Minutos antes de iniciar a palestra, Aragão respondeu, rapidamente, a três perguntas do jornalista Celso Vicenzi, especialmente para o DCM.




DCM – O Congresso Nacional não permitiu, pela segunda vez, que o presidente Michel Temer fosse investigado pelos crimes em que é acusado. O que isto significa para o golpe e o futuro do país?

Eugênio Aragão – Isto já era esperado. A composição da Câmara Federal, hoje, é muito mais próxima de uma feira, em que tudo é vendido, tudo é negociado, do que propriamente um Parlamento. Isto, portanto, não chega a estranhar. O golpe não foi um ato de destituição da presidenta da República. O golpe é um processo de desconstrução de direitos, é um processo de desempoderamento da população, da sociedade. É a volta ao antigo status quo, quando essa elite governava sem ter que dar satisfação a ninguém. Eles estão pouco se lixando sobre o impacto disso nas eleições do ano que vem, até porque a reputação do Temer já está tão baixa que isso não muda nada nos índices de sua (im)popularidade.

Uma parte da esquerda aposta nas eleições de 2018 como a melhor possibilidade de reverter o golpe e todo o estrago que ele tem feito até aqui. Todo esse otimismo, porém, não pode se transformar em miragem?

Não podemos ter a ilusão de que em 2018 vamos ter o príncipe encantado, que vai dar um beijo na Bela Adormecida e ela vai acordar. Não podemos esperar este príncipe encantado. O ano de 2018 é mais uma etapa na luta. Mas a história não acabou, as contradições estão aí. E nós vamos continuar lutando porque 2018 é só mais uma etapa nessa luta. É assim que a gente tem que ver, não pode trabalhar com prazos. Política não se faz na base do prazo. Política se faz com luta permanente e se pudermos ter uma situação melhor em 2018 para a nossa luta, ótimo! Se não for possível, a luta continua do mesmo jeito.

DCM – Como explicar que setores majoritários, nos Três Poderes e em ampla parcela da sociedade, chegaram a esse acordo para desferir ou permitir o golpe?

Toda essa situação de 2002 pra cá era muito estranha pra essa gente. Eles nunca absorveram isso com naturalidade. Eles toleraram, mas nunca absorveram. Na primeira oportunidade, todos os preconceitos dessa turma, afloraram. E um dos maiores preconceitos que essa turma tem é para com os desprovidos da sociedade. Eles não se sentem parte disso. Então é claro que eles têm muito mais afinidade com Aécio, com Temer, do que com Lula, que pra eles representa uma contracultura.

A seguir, destaques da palestra do ex-ministro em Florianópolis.

O golpe continua

Um golpe não se dá em apenas um ato. O ato que ocorreu no dia 17 de abril de 2016, quando a Câmara votou o infame pedido de impeachment contra a presidenta Dilma, aquilo foi apenas o ponto de partida numa escala de tempo. O golpe é um continuum. Nós estamos sofrendo o golpe. O golpe veio com objetivos claros, de restituir o poder à elite que sempre tomou conta desse país e que tolerou, durante um certo período de tempo, dado que ela não tinha alternativa, por várias razões, os governos populares. Mas o golpe prossegue com força total. Por isso a gente não tem que ficar, a cada espasmo desse golpe, exasperando, porque senão a gente vai morrer do coração. O golpe ainda vai trazer muita coisa ruim, mas não vamos esquecer que o processo histórico continua. A história não parou por causa do golpe. Isso significa que a gente precisa retomar a nossa luta e reconhecer onde nós nos iludimos, também.

A amarga ilusão

Uma das questões mais graves da falta de avaliação política que tivermos, é termos esquecido do conceito de luta de classes. Não é porque setores dessa elite, por oportunismo, nos abraçaram enquanto estávamos no governo, que a luta de classes havia acabado, que a gente podia sair com eles, seguro na sela, e que a gente não iria cair do cavalo, porque eles estavam conosco, bebendo na mesma mesa, conversando com uísque na mão… Eles nunca pretenderam que ficássemos muito tempo no poder. Isto era para eles uma situação passageira. E não é exatamente um grupo que preza a democracia formal. A democracia serve, para eles, para legitimar o seu poder. Mas na hora em que essa democracia traz contradições que os enfraqueçam, eles jogam essa democracia no lixo, na mesma hora, porque não têm nenhum apego às regras democráticas. Essa é uma ducha de água fria que recebemos e que deve servir para nos mobilizar.

Fortalecendo o inimigo

Um dos atores mais decisivos e talvez mais descarados nesse processo foi o complexo judiciário-policial, composto pelo Judiciário, pelo Ministério Público Federal e pela Polícia Federal. E a gente precisa fazer um esforço para procurar entender como é que esse complexo judiciário-policial se voltou contra o projeto de Estado que havia. Porque estes setores foram muito beneficiados pela Constituição de 1988, com significativo apoio de forças progressistas. José Genoíno, na época da Constituinte, era das pessoas que mais apoiaram o fortalecimento do Ministério Público. O mesmo se pode dizer de José Dirceu. Ambos queriam fortalecer o Ministério Público como um contraponto a um Judiciário que historicamente é atrasado no Brasil. Eles pensaram: bota esses garotos do lado do Judiciário e isso vai fazer com que o Judiciário tenha que rebolar pra continuar a ser o que sempre foi. Essa foi a estratégia de fortalecimento do Ministério Público. Era muito difícil, na relação de forças da época, querer fazer uma revolução no Judiciário.

Gilmar em ação

Da Monarquia à República

É preciso lembrar que o Supremo Tribunal Federal, que era Supremo Tribunal de Justiça na época do Império, sobreviveu à derrocada do Império. Depois de 15 de novembro de 1889, os seus membros, que eram fidalgos, que eram nobres, barões e tudo mais, se mantiveram na cadeira com a República. Não aconteceu nada. Não teve um único membro daquela Corte que tenha sido prejudicado com a implantação da República. Um tribunal que não mudou da Monarquia para a República, também não mudaria com os ventos da nova República de 1985.

Os meninos intocáveis

Quando saiu a Constituição de 1988 havia uma paridade presumida, mas não expressa entre o Judiciário e o Ministério Público. A ideia era não repetir o que os portugueses fazem, de chamar o Ministério Público de magistrados e jogar tudo no mesmo saco. Não, o Ministério Público, no Brasil, era para ser uma carreira nova, diferenciada. O que acontece? Esse modelo deu certo nos primeiros anos após a Constituinte, quando o Ministério Público exerceu muito o seu papel em conflitos de direitos das questões indígenas e ambientais, até o advento do impeachment do Collor. É nesse momento, pela primeira vez, que o Ministério Público mostra a sua musculatura política. Com a liderança de Aristides Junqueira, os meninos representados na capa da Veja como “Os Intocáveis”, resolvem ser protagonistas.

Não interessa aí se Collor merecia ou não o destino que teve, o problema é esse protagonismo político do Ministério Público que nasce a partir do impeachment do Collor, não foi uma boa coisa. Porque o MP público, como órgão de defesa de direitos, de garantias fundamentais da democracia, deveria ter tido um papel mais moderado, de interlocutor, do que ele mesmo querer ser um ator. E com isso perder a interlocução, porque no momento em que ele assume o protagonismo, ele passa a querer dar as cartas. E a ação do MP no caso Collor foi um desastre total. Collor foi absolvido na Justiça. Não sobrou pedra sobre pedra daquela atuação. A única coisa que aquela ação facilitou para os atores políticos, foi o processo político de derrubada do Collor, mas não serviu para absolutamente nada no que se refere a pôr as coisas em seu devido lugar. A tal da cleptocracia, que já grassava entre nós, não mudou em nada. E na verdade aquilo foi o ovo da serpente, que foi reforçado depois, com o uso dos recursos públicos pra fazer política. A mesma coisa que nós vimos hoje.

Engordando os “porquinhos”

Brindeiro e FHC engordaram os “porquinhos”. Eles agora queriam comer muito. E não se contentavam mais em ser meros agentes do Estado. Não, agora eles eram “príncipes da República”. E isso já atraiu, ainda no período do Brindeiro, um perfil completamente diferente de membros do MP. Aquele que viu o MP não como uma missão, dentro da democracia, do Estado brasileiro, mas aquele que o viu como uma oportunidade de garantir uma vida confortável, com prestígio e poder. Muitos daqueles meninos que entraram já no concurso de 2002, miraram-se naqueles “intocáveis” de 1992/93 (“quando eu for grande eu quero ser como eles!”) e entraram na carreira depois de estudarem, porque eram meninos que vinham das melhores escolas, das melhores faculdades, com papais que sustentavam seu ócio para se prepararem para um concurso público. Este tipo de candidato é hors concours, porque aquele funcionário que quer também disputar essa vaga não tem nenhuma chance com esses meninos. Ele trabalha, não tem dinheiro para pagar cursinhos caros, já se formou há algum tempo, logo, não tem a matéria fresca na cabeça como os meninos. Não tem como, não concorrem com essa clientela.

Os meninos do MP

O Ministério Público passou a atrair esse perfil de gente: os meninos “gordos” da classe média. Estudiosos, porque tinham tempo pra isso. E determinados a se darem bem. Depois de estudarem três anos, passavam no concurso, chegavam na carreira e diziam: “o que tem agora aqui pra mim? Eu estudei três anos, agora quero ‘comer’”. E claro que não se conformavam, de jeito nenhum, de ter que iniciar a sua carreira em Parintins, em Boa Vista ou Macapá. Eles queriam ficar no centro. E começam a pressionar a administração central do MP, em Brasília, para a realização sistemática de novos concursos, como mecanismo de mobilidade, para que pudessem sair da periferia e vir para o centro. A partir daí começa a se multiplicar esse perfil. Isso passou a ser um círculo vicioso dentro do MP. Chegou a ter concurso duas vezes por ano. Simplesmente para atender a pressão da base, afinal, a partir de 1988 tudo é eletivo, como o cargo do Conselho Nacional do Ministério Público.

Essa base, que é majoritária, faz pressão em cima dos órgãos de governo do MP para acelerar esses recrutamentos. E passaram a dominar o MP. Este é o perfil atual do MP. São os meninos “gordinhos”, bem estudados, mas que querem se dar bem. E você percorre esse Brasil afora e não vê esse pessoal cedo no trabalho. Estão na academia, fazendo pilates, ajeitando o cabelo, as unhas, fazendo Cooper. Sentado no local de trabalho só lá pelas 11 horas da manhã. E pra isso recebem R$ 29 mil de salário inicial. Então com essa distorção não podia dar certo. A gente tem chamado a atenção sobre isso há muito tempo: “Gente, olha o monstrinho que está sendo criado dentro do Ministério Público Federal”.

O perfil da magistratura

A magistratura também acolheu esse perfil. Mas ela tem um outro aspecto que o MP não tem, porque ela é mais verticalizada. Um juiz de primeiro grau, se for substituto, se borra de medo dos desembargadores e os desembargadores se borram de medo dos ministros. Existe uma verticalização que no MP não existe. No MP o ambiente é mais anárquico e isso se explica porque eles não assumem uma posição mais passiva, como o juiz. O juiz tem a sua independência funcional, mas é limitada. A independência do juiz se dá no intervalo da lide, não tem como pular fora disso. Não tem como inventar moda. E olha que esse intervalo é bastante largo, tem várias opções que ele pode ter entre a tese de um e de outro.

Metralhadora giratória

No Ministério Público a independência funcional não tem balizamento nenhum, porque ele tem a iniciativa. E isso faz com que a sua atuação assuma uma condição mais anárquica. E passa a ser uma metralhadora giratória. Não era isso que o Constituinte havia pensado ao dar independência funcional ao Ministério Público. Na verdade, o Artigo 127 da Constituição, parágrafo primeiro, diz o quê? São princípios institucionais do MP a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional. Estes três princípios deveriam ser articulados entre si. Ou seja, a independência funcional não poderia fazer com que o MP agisse sozinho, como free lance. Ele deveria atuar de forma concentrada, de acordo com os órgãos de regulação. Deveria haver coordenação política do órgão. Mas é claro que essa meninada que entrou, centra todo o peso em cima da independência funcional e esquece a unidade e a indivisibilidade. Nem mencionam.

Disputa intestina pelo poder

O Ministério Público, como é um órgão em que há eleições para certas instâncias, seus membros preferem não mexer nisso, pra não desagradar o eleitorado. Então passou a ser um órgão incoordenável. Tem grupos hegemônicos lá dentro, mas não são grupos ideológicos, apenas disputam o poder, só isso. Não dá para dizer que existem membros do MP de esquerda, membros de direita, de centro. Não, não existe. Existe uma ideologia corporativa, de todo o poder ao MP, que é compartilhada por todos, que brigam entre si. Apenas pelo poder. Pode até ter um ou outro de esquerda, mas a gramática corporativa não dá muito espaço pra ser de esquerda. Então, se consolida, portanto, uma instituição que para ser controlada, precisa ser cevada.

O erro de Lula

Quando vem, em 2003, o governo Lula, alguns atores mais antigos do MP, que tinham acesso à esquerda, claro que tentaram se aproximar do novo governo. Nós tivemos na época um presidente da associação que era um cara progressista, e se procurou esse diálogo sistematicamente. Mas não era assim nos anos anteriores. Com Claudio Lemos Fonteles, deu-se bem essa química. Mas aí o governo Lula viu na associação uma espécie de mimetização de um sindicato. E logo se percebeu, em várias instâncias de decisão do governo Lula, uma simpatia. Faltava só pedir para eles se filiarem à CUT. Então, era claro que as reivindicações, encaminhadas por Fonteles, que tinha proximidade com o Lula, ganharam espaço. Entre elas, a reivindicação de eleição do Procurador Geral da República com base numa lista tríplice, que foi acolhida com a maior simpatia pelo governo. Acharam que era uma forma de fortalecer a democracia, mas foi um ledo engano.

Associação não é sindicato

As associações de classe, do MP, do Judiciário, da Polícia, das carreiras de Estado de forma geral não são sindicatos. Posso até admitir que exista um sindicato de trabalhadores que atuam como terceirizados nesses locais, e que são explorados. Mas servidor público, em princípio, não padece o efeito da mais-valia, porque ele é pago pelo tributo. O que existe entre os servidores públicos é uma luta intestina, de competição entre carreiras, em que aquelas que têm mais força, sufocam as que estão embaixo. Por exemplo: professor sempre se dá mal. Tá sufocado pelo peso da alta burocracia do Estado. Mas isso são deformações que não têm a ver com o processo de formação de riqueza propriamente dito. Não tem como comparar a situação de um servidor com a de um trabalhador da iniciativa privada. Ainda que haja efeitos deletérios muito fortes sobre os servidores que estão nas escalas inferiores. Mas é diferente.

E não se pode falar em termos de sindicato quando se trata dessas associações que protegem os interesses dessas gordas carreiras de Estado. Porque o objetivo dessas carreiras de Estado não é fazer dessas associações um sindicato, fazer campanha salarial. Eles não precisam fazer campanha salarial. O Procurador Geral da República marca um encontro com o ministro do Planejamento e é recebido em tapete vermelho, com ar-condicionado, água geladinha, cafezinho e lá eles negociam o quanto vão ganhar no próximo ano. E ai do governo que não atender porque eles têm formas de convencer. É só apertar o parafuso. Eles não precisam ir pra rua, não precisam fazer greve. Eles são o próprio Estado, com todas as suas contradições. Então, foi uma falsa percepção de achar que essas associações eram sindicatos.

Não eram, eram cartórios. Todas essas associações representam uma corporação, são entes burocráticos que produzem o patrimônio burocrático no Brasil. É o patrimonialismo burocrático de Estado. Todas essas corporações querem um naco do Estado para chamar de seu. É se apropriar das graves atribuições de Estado para se locupletar. Prestígio, poder, dinheiro. É o que eles querem e usam pra isso as suas graves atribuições. Isso não tem nada a ver com sindicato. São cartórios, é muito diferente. E nós nos enganamos com isso. Na hora que o governo Lula cedeu ao apelo de Claudio Fonteles para garantir a lista tríplice para Procurador Geral da República, ele fez uma avaliação completamente errada do sistema, e hoje ele reconhece isso. É uma coisa que jamais o presidente Fernando Henrique Cardoso faria.

A reforma do Judiciário

Em 1998, começou-se a discutir no âmbito do Legislativo a tal da reforma do Judiciário. E no ano de 2004 desembocou na Emenda Constitucional 45. A relatora foi a deputada Zulaiê Cobra, do PSDB de São Paulo. Uma das grandes demandas que se tinha na sociedade civil naquela época, reverberada pelos meios de comunicação, era a necessidade de controle externo do MP e do Judiciário. No início o Judiciário reagiu de forma histérica: Como controle? E a independência do Judiciário? Foi preciso muita conversa para eles aceitarem que esse controle seria meramente sobre a atividade meio e não sobre a atividade fim. Ou seja, sobre a administração do Judiciário e não sobre a atividade jurisdicional. O Judiciário impôs outra condição, de que os representantes que estivessem nesse órgão de controle externo fossem todos originários do Judiciário ou do MP ou da advocacia. Não haveria pessoas de fora dessa guilda dos juristas para controlar, mesmo que fosse apenas a gestão dos magistrados. E isso acabou sendo engolido pela Zulaiê Cobra.

Foram criados dois órgãos de controle externo, o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público, que são fraquíssimos do ponto de vista daquilo que a sociedade poderia exigir como freios em cima de abusos tradicionais, recorrentes, do Judiciário e do MP. Não tem como, porque aqueles que compõem esses órgãos, no fundo pensam igual. São pessoas, como costumo dizer, que bebem chope do mesmo barril. Então o que aconteceu é que se criou mais uma instância burocrática de controle do Judiciário, além daquelas internas que já existem, que são as Corregedoria, os Conselhos Superiores, os Conselhos Administrativos dos Tribunais, o Conselho da Justiça Federal. Mais uma instância e, portanto, no fundo, os novos Conselhos criados são redundantes. Essa cultura de um Judiciário locupletador, disputando poder com o MP e a Polícia Federal, depois MP e advocacia, MP e defensoria, tudo isso era um ambiente em que grassava uma cultura corporativa.

Dallagnol

Criou-se um monstro

Em 1988, infelizmente, se consolidou o entendimento de que o Judiciário precisava ser mais do que independente, completamente autárquico dentro da estrutura do Estado. Significa ter a sua própria proposta de lei, suas próprias propostas orçamentárias e não se submeter ao poder Executivo em hipótese alguma. Criou-se um monstro. Com este tipo de Judiciário não era mais possível um diálogo entre poderes. Este Judiciário estava blindado, era algo quase estranho dentro do Estado. Sem diálogo nenhum com os outros poderes. Até porque é o único poder plenamente burocrático. Os outros ainda têm uma pitada de poder político, afinal, os parlamentares e os chefes do  Executivo são escolhidos pelo voto. O Judiciário não tem nada disso. Tornou-se um poder com o único objetivo de perpetuar as suas práticas.

Um poder monolítico

Toda vez que há uma crise política e que os outros poderes entram em confronto e fatalmente se enfraquecem diante da opinião pública, quem tem emergido como um poder monolítico é o Judiciário, que não está sujeito a essas intempéries. Os debates internos, normalmente, são revestidos pelo voto de silêncio, ninguém vai sair detonando colega, em público, com exceção do Gilmar Mendes, que às vezes perde a cabeça e sai falando mal de colegas. Mas pega muito mal. No Judiciário há um espírito de corpo que demanda o silêncio de seus membros no âmbito externo. Todos os podres são discutidos para dentro. Isto dá uma estabilidade e uma resiliência ao Judiciário que os outros poderes não têm.

Volúveis, vaidosos e conservadores

Quando a democracia começa a balançar por causa de demandas não atendidas por setores da elite brasileira e seus agentes patrimonialistas, o Judiciário se apresenta, naturalmente, como alternativa de coerência e de estabilidade. E no fundo é o que muitos dentro dessa ilusão acabam almejando na política. Tem um vendaval passando pela política, se agarram na árvore vizinha que é a do Judiciário. E a imprensa reforça isso porque sabe que esses atores do Judiciário são volúveis, vaidosos e extremamente conservadores.

Omissão diante do golpe

Não haveria possibilidade de se dar um golpe num governo popular sem o papel decisivo do Judiciário. A aparente omissão do Judiciário em assumir partido nessa briga visava, sobretudo, a se preservar, mas, ao mesmo tempo, a deixar o golpe correr. Eles perceberam que o golpe se concretizaria se não fosse feito aquilo que era esperado deles, que era defender o mandato popular da presidenta da República. No momento em que o Supremo empurrou isso para as calendas gregas, não preocupado em decidir nada – e nisso o ministro Lewandowski teve um papel triste, como presidente desse tribunal que julgou a presidenta por crime de responsabilidade – deixou o barco correr. Portanto, este golpe só foi possível graças a essa articulação desses atores políticos reacionários, patrimonialistas e caciques de partidos tradicionais, dessa elite tradicional, com o poder Judiciário, que foi fundamental. Dizendo que não queria, mas querendo.

O bode na horta

Toda vez que se deposita algum tipo de esperança no Supremo Tribunal Federal, em relação a alguma iniciativa contra o golpe, a gente só pode rir no cantinho da boca. Você está simplesmente pedindo para o bode cuidar da horta. O bode não vai tomar conta da horta, ele vai comer a horta. É isso o que o Supremo tem feito. Ele, ultimamente, até tem tirado a sua máscara, de uma forma mais clara. Quando se tratou daquela ADIN que tinha interferência direta na situação do Aécio, que permitia que se mantivesse no poder (não estou dizendo, do ponto de vista dogmático, se estava certo ou não, estou falando no passo político do Supremo), o Supremo, naquela sessão, que foi desempatada pela ministra Carmen Lúcia, estava risível de olhar, estava patético. Porque eles estavam profundamente incomodados – claro, com exceção daqueles cinco…

Mas os outros estavam tentando dar um jeito de desfazer a bobagem que haviam feito antes com Delcídio do Amaral. Eles afastaram um senador da República com o falso argumento de que ele tinha praticado um flagrante delito. Coisa nenhuma! Havia uma gravação, da mesma forma que em relação ao Aécio. E isto não é flagrante delito. Gravação é um documento, para todos os efeitos. Prova em flagrante é uma coisa, prova documental é outra. São tipos de provas diferentes. Mas o Supremo agora tinha que dizer “ah, mas o caso do Aécio é diferente daquele do Delcídio”. Como rebolaram! Às vezes dava vontade de rir, de gargalhar. Eles estavam desesperados lá dentro. Como iriam justificar o injustificável? Eles agora precisavam dar a cara a tapa e mostrar que estavam a fim de salvar a cara do Aécio. Alguns disseram que o Supremo sairia desmoralizado com a decisão do Senado em manter o Aécio, que nada! Pra eles foi um alívio enorme. Eles não se sentiram desprestigiados, em momento algum. Eles queriam o que o Senado acabou fazendo.

Eles não queriam a continuidade dessa briga porque agora a elite já não estava aproveitando mais nada disso. Isso só era bom para atrapalhar a governabilidade da gestão Dilma. Agora não fazia mais sentido, por isso devolveram para o Congresso a peteca: “Toma pra vocês, resolvam”. E a gente fica vendo agora, com essa iniciativa do Conselho Nacional de Justiça, de abrir procedimento contra os juízes que se manifestaram contra o golpe, que a máscara caiu definitivamente. O cinismo é total. Eles se manifestam a favor do golpe. Quantas vezes o Gilmar Mendes não fez isso? Quantas vezes a gente não vê a própria Carmen Lúcia se referindo ao governo anterior de forma desairosa? E agora quando uns três juízes falam contra o golpe, são ameaçados de punição. Na cara de pau, mesmo! O CNJ mostra que tem lado.

A lição e a história

Essa é uma lição que temos que aprender em relação àqueles que ainda sonham com a anulação do impeachment. Claro, a pressão tem que continuar, para expor as entranhas desses órgãos, mas a gente tem que ter claro que isso é só parte da luta. A gente tem que expô-los, tem que deixá-los nus. Mas não vamos ter ilusão, como alguns têm, de que eles vão anular o impeachment. Não tem a mínima chance de fazerem isso. Eles são parte disso. Nós não temos um tribunal imparcial, eles são partidários. É importante desmascarar e expor.

Por isso, a organização de manifestações, a coleta de assinaturas, tudo faz sentido dentro de uma forma de atuação política, porque acaba sendo um desgaste para esses atores, na medida em que a história está sendo escrita contra eles. Acredito que a gente conseguiu pelo menos uma coisa: ter uma forte influência sobre a narrativa do golpe. Quando nossos filhos forem ensinar isso para seus netos, lá adiante, quando se estudar isso nas escolas, não tenho dúvida que será retratado como um dos episódios mais nebulosos da história do Brasil.

Como um golpe de corruptos que resolveram saquear o governo. Essa parte nós ganhamos. É muito pouco, porém, pra fazer essa turma mudar de rumo, porque eles não têm preocupação com a história, eles são imediatistas. Eles querem aqui e agora. Aliás, como sempre governaram o Brasil. Eles não vão se incomodar com isso, mas é importante a gente não perder a clareza de que este é um processo histórico, em que existem lados, existe uma coisa chamada luta de classes. Eles estão de um lado, nós estamos do outro.

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