Ariano Suassuna: celebração

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Por Walnice Nogueira Galvão, publicado no Jornal GGN – 

Chegam novas da missa de ano celebrada pela alma de Ariano Suassuna. O local escolhido foi o município de São José do Belmonte, em Pernambuco, onde se ergue a Pedra Bonita. Há tempos Ariano dedicou-se a montar ao redor da Pedra um jardim de esculturas. Devido a seus cuidados, hoje o local é conhecido como “Sítio Histórico da Pedra do Reino”, incorporando uma alusão a seu próprio livro, Romance da Pedra do Reino e do Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta,que empreende o resgate das sagas do sertão.

O episódio de Pedra Bonita figura entre as mais famosas, e até famigeradas, manifestações sebastianistas em nosso país. Em 1836-1838, no sertão do Pajeú assolado periodicamente pelo flagelo da seca, um surto messiânico sublevou a população pobre da localidade. Seus rituais incluíam sacrifícios humanos, fiados em que o sangue vertido sobre a Pedra Bonita – um par de monólitos assimétricos, simbolizando as torres de uma suposta catedral ali soterrada – desencantaria D. Sebastião, que surgiria de dentro dela. Com seu advento, El-Rei instauraria uma Idade de Ouro, trazendo prosperidade para todos aqueles pobres miseráveis. Chegaram a sacrificar 87 pessoas, e consideravam o sangue das crianças especialmente portador de virtude. O levante foi reprimido pelas forças armadas, com grande morticínio.




Isso se deu em outros tempos, servindo de matéria para a literatura e as artes.

No século passado, a crônica pernambucana voltou a ocupar as atenções, porém no plano da cultura. Os ventos de uma renovação sopraram primeiro na década de 20, quando Gilberto Freyre liderou em Recife um movimento que enfatizava a contribuição singular daquelas paragens, abeberando-se na tradição. Organizou o Livro do Nordeste (1925), coletânea de ensaios de vários autores em que, entre outras contribuições, estreava um dos mais célebres poemas brasileiros, “Evocação do Recife”, de Manuel Bandeira. No ano seguinte, lançaria o Congresso Regionalista de 1926 e seu correlato o Movimento Regionalista. Para Gilberto Freyre, tudo tinha valor entre os tesouros locais, e ele terçaria armas não só pela literatura e pelas artes plásticas como também pelo artesanato, o bordado e a culinária. Suas ideias influenciaram muitos intelectuais e artistas, bem como de modo geral o Romance de 30, com Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Amando Fontes, José Américo de Almeida, Jorge Amado. Identificado às ideias, e muito ligado a Gilberto Freyre, surgiu também o pernambucano Cícero Dias e sua maravilhosa pintura onírica.

Décadas depois dessa extraordinária safra artística, outra proposta se alça, desta vez sob a égide de Ariano Suassuna, fomentando e divulgando as artes sertanejas. Ao criar o Movimento Armorial em Recife, em 1970, visava ao enriquecimento das letras e das artes através de uma prospecção das fontes populares locais, valorizando a cultura nordestina através da apropriação erudita das criações do povo.

Segundo a plataforma de lançamento do Movimento Armorial, quatro alicerces o fundamentariam: 1) na poesia, o romanceiro popular do Nordeste; 2) na música, aquela que acompanha a cantoria; 3) nas artes plásticas, a xilogravura das capas dos folhetos; 4) no teatro, os espetáculos populares: maracatu, frevo, bumba-meu-boi, cavalo marinho, cheganças, nau catarineta, sem esquecer o mamulengo, ou teatro de bonecos local.

Figura de proa e precursor do movimento, Ariano já era conhecido pela difusão de sua peça de teatro Auto da Compadecida, na qual um Cristo Negro dá lição antiracista, enquanto o heroi João Grilo a todos vence pela esperteza, mesmo os santos e o Diabo. Artistas de valor, escritores, músicos, pintores, surgiriam em seguida.

Com passagens como secretário da Cultura de seu estado, Suassuna persistiu na trajetória de infatigável lutador em prol de uma arte de raiz, voltada para as fontes nordestinas e sertanejas. Tudo isso foi a obra grandiosa a que se devotou esse artista múltiplo, inseparável de sua obra, cuja morte pranteamos e cuja vida foi celebrada nessa missa.

Walnice Nogueira Galvão é professora emérita da USP

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