Arrebatado pelos toques de tambores e comovido com a solene serenidade da Procissão do Senhor Morto

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Por Luiz Antonio Simas, Facebook – 

O censo religioso que a prefeitura etnocida do Bispo Crivella tenta impôr ao corpo de guarda municipal gerou reações as mais diversas. Por aqui eu li exortações contra o aparelhamento do estado pela IURD e libelos vigorosos contra todas as religiões.

Sou refratário, por temperamento, a instituições religiosas. A minha relação com a religiosidade se manifesta na ritualização da vida. Lanço sobre as crenças um olhar afetuoso, especialmente quando percebo que, onde campeia a escassez, as celebrações reconduzem as mulheres e os homens ao intangível, ao encantamento, ao espanto diante do que não pode ser racionalmente mensurado no mundo e, por conseguinte, nos humaniza. Sou um arrebatado pelos toques de tambores e me comovo com a solene serenidade da Procissão do Senhor Morto, por exemplo.




Também vejo estas coisas por um viés político. Eu acredito na revolução da festa, do despacho na encruza, na alteridade da fala – língua do congo, jaculatória de rezadeira, lamento de carpideira, canto nagô, virada de bugre na aldeia – e no alfanje de Ogum, deus que é meu pertencimento, iluminando, ao cortar os intolerantes da minha vida, o meu mundo na viração da plenitude e na busca pela libertação.

Cresci em terreiro, fascinado pela dança dos orixás, impressionado com a imponência dos caboclos e seduzido pelo toque misterioso dos tambores que enchiam de encantamento as minhas madrugadas. Quando entrei para a faculdade de História, com a arrogância de alguns estudantes das ciências humanas, achei que seria capaz de entender o mundo, compreender os anseios do povo e apresentar soluções políticas messiânicas para os males sociais negando o legado da minha avó ( o ópio do povo, ora bolas).

Declarei com vigor meu ateísmo, que hoje nada mais me parece que o momento em que transitei em outro sistema de (des)crença. Fui um fundamentalista do materialismo durante algum tempo, mas me safei dessa.

Um dia reencontrei o toque dos tambores. Compartilhei da mesa farta das comidas de santo e fui consagrado sacerdote de Ifá na tradição afro-caribenha, reestruturando o elo de ancestralidade que a minha velha avó teceu.

A fé para mim sempre andou ao lado da disponibilidade para outras sapiências. É essa disponibilidade que me parece estar em risco diante do avanço obscurantista dos que agora se apoderam do poder como capitães do mato tardios. E é essa disponibilidade para outros saberes que está em risco também em virtude de discursos e práticas religiosas fechadas e sectárias, impositivas, aparelhadoras do poder público e etnocidas. Como faz a turma do bispo.

Na prática religiosa em que me criei percebi que as pessoas choram, gargalham, nascem, morrem, celebraram, balançam os corpos, seguram a onda batendo na palma da mão, brincam, molham a garganta com gorós diversos e inventam aldeias.

Entre a vida plena e a morte certa, há quem ouse sobreviver e supraviver no encanto arrebatado, fazendo disso a matéria-prima para construir outros mundos: mínimos, frágeis, momentaneamente alegres, ocasionalmente sublimes e desafiadores, como genuíno exercício de fé não exatamente nos deuses, que parecem não se importar com os nossos dramas, mas na vida.

E é isso que essa turma odeia e teme.

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