Arte, censura e autoritarismo em ação. A proteção da liberdade em Dworkin (I)

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Por Roberto Bueno, publicado em Uberlândia Hoje – 

Publiquei neste dia 25.09.2017 artigo intitulado “Arte, censura e autoritarismo em ação. A proteção da liberdade em Dworkin”. Em face do avanço da onda conservadora autoritária de ultradireita no Brasil, devidamente alimentada pela forca politica e econômica emprestada pelo golpe aos setores do conhecido baixo clero do Congresso Nacional, atualmente o Brasil se depara com interesses politico-teológicos orientados à promoção da censura, sendo uma de suas áreas de atuação mais recente o mundo das artes. Convido a todos para a leitura, critica e compartilhamento em suas redes sociais  deste texto ora publicado que tematiza este problema

Roberto Bueno

Nas complexas sociedades democráticas ocidentais há uma série incomensurável de valores em competição assim colocados por um amplíssimo coletivo de grupos sociais em interação marcados pela heterogeneidade. Em uma sociedade cujo cenário sociopolítico e cultural encontra na diversidade a sua nota amplamente dominante, malgrado os arranjos que dentro dela possam ocorrer no sentido de obscurecê-la, o fato é que os conflitos emergem como inevitáveis. Como articulá-los para que permaneçam dentro dos limites do que os princípios de uma democracia constitucional impõem é o maior desafio de todas as épocas, sobretudo quando o dragão emerge das profundezas do abismo e reclama a sua cadeira.

É possível perceber que talvez não sejam tantos os valores essenciais realmente compartilhados pelo conjunto da sociedade como tenhamos sido levados a crer durante algum tempo em que o republicanismo e a democracia pairaram sobre os grandes núcleos urbanos mas sim operar nas profundezas do Brasil. Talvez, alguns destes valores essenciais que a Constituição alberga, tomados gramaticalmente, sejam aceitos por muitos, mas alimentando discrepâncias de fundo quanto ao que realmente cada um deles signifique, e um exemplo disto é o conceito de liberdade.

Nos dias que correm observamos como o conceito de liberdade pode sofrer alterações quando testemunhamos divergências relativamente ao desfrute do direito de liberdade de informação conjugado com o direito à liberdade de expressão artística. Recentemente isto foi configurado nas exposições artísticas censuradas, ou auto-censuradas, como foi o caso da exposição promovida pelo Banco Santander, QueerMuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira. A exposição continha temática LGBT, com obras de 85 artistas, incluindo Alfredo Volpi, Lygia Clark e Cândido Portinari, mas também de Bia Leite (graduada em artes plásticas pela Universidade de Brasília / UnB), apresentando a sua vituperada série de obras “Criança Viada”, sobre quem recaiu a crítica de promover a pedofilia, mesmo quando a própria artista declarou publicamente ter como finalidade algo muito diverso, a saber, a promoção do diálogo com a homofobia e a transfobia na infância.

A mostra patrocinada pelo Banco Santander estava sendo exposta ao público desde o dia 15 de agosto em Porto Alegre de 2017 e tinha o seu encerramento previsto para o dia 8 de outubro próximo. Os múltiplos protestos nas redes sociais potencializados pelo Movimento Brasil Livre (MBL) alimentaram a decisão do patrocinar de antecipar o fechamento da exposição. O fato de que a casa bancária de origem espanhola tenha cedido à pressões de radicais da ultradireita conservadora e tenha fechado a exposição no domingo dia 10 de setembro de 2017 explicitou com cristalina transparência o descompromisso não desta específica casa bancária, mas do capital como um todo, com a cultura democrática das sociedades em que intervém e de cujo bojo humano alimentam os seus altíssimos lucros. O capital realiza o movimento de convergência com a cultura democrática tão somente sob os estreitos limites de obediência a que o seu integral proveito financeiro permaneça intocado, cenário que, uma vez levemente ameaçado, o leva a realizar rápido distanciamento, sem qualquer hesitação deles, como bem atesta o caso Santander. De fato, e a qualquer tempo, o capital nunca teve qualquer compromisso com as instâncias e os valores da democracia, com os quais coincide apenas casual e temporariamente.

Igualmente infensos até mesmo a uma mínima perspectiva compromissada com valores típicos do liberalismo é o espaço em que encontramos os conservadores de ultradireita radicados no conhecido MBL com o qual demonstra estar alinhado Gilmar Mendes até mesmo em alegres fotos públicas. Estas fileiras estiveram preocupadas em organizar ataques à citada instituição bancária hispana realizado desde as redes sociais, pregando até mesmo a concretização de um amplo boicote aos interesses daquela instituição financeira. A principal queixa dos conservadores residia em que o QueerMuseu estaria a promover a blasfêmia contra símbolos católicos à pedofilia e zoofilia.

Malgrado não entremos no núcleo duro do debate sobre se a exposição continha obras com tal finalidade, mas aceitando para fins argumentativos de que ao menos parcela dos conteúdos da exposição pudessem ser classificadas deste modo que pretendem os seus censores, o fato é que, ainda assim, assistiria razão à Dworkin ao sustentar que “[…] el derecho de la sociedad a castigar la inmoralidad mediante la ley no ha de ejercitarse necesariamente contra toda classe y en toda ocasión de inmoralidad […]”. O que está em causa é que não seria possível (nem muito menos desejável) estabelecer qualquer grau de pureza aos conteúdos que uma sociedade plural concebe e que tem direito a emitir, eliminando todo o tipo de “imoralidades” da cena pública, e isto suporia uma superconsciência moral que o determinassem realidade incompatível com uma sociedade plural.

Neste sentido, qualquer similaridade com uma superconsciência capaz de servir como árbitro do bem e do mal evoca a figura da divindade, mas incompatível com uma sociedade que é marcada pela laicidade, na qual o arranjo político e jurídico necessariamente encaminha-se através pelo diálogo e pela tolerância entre os múltiplos valores em competição. É preciso considerar ainda que do mero somatório de leituras sobre a imoralidade concebidas de forma tão díspar por diferentes grupos sociais terminaríamos certamente por inviabilizar a emissão de quaisquer conteúdos, pois sempre feririam a suscetibilidade de alguns dos múltiplos grupos que se formam em sociedade.

A falsa polêmica formada em torno ao conteúdo da arte não é, de modo algum, uma novidade, mas a forma como algumas figuras públicas brasileiras estão a abordá-la neste momento é, realmente, impactante em face de sua crua retomada de parâmetros do medievalismo. Propõem a retomada de padrões de moralidade pura, e excludente, para avaliar a arte quando, em verdade, precisariam ser aplicados em outras esferas para além desta importante dimensão cultural da vida. Neste breve artigo propomos uma leitura crítica da moralidade a partir da teoria de Ronald Dworkin, para analisar a sua validade da crítica ao movimento conservador autoritário de ultradireita brasileira contemporânea.

Dworkin recorda que no contexto das sociedades para as quais endereça o seu discurso, as ocidentais democráticas, haveria um cenário político e cultural já bem assentado a partir do qual nenhum dos homens estaria disposto a impor os seus valores sobre os demais, malgrado, isto sim, validamente disposto para tentar persuadi-los da intrínseca valia de sua visão de mundo e dos valores que a compõem. Este é precisamente um dos aspectos da cultura democrático-política do mundo ocidental marcado pelo constitucionalismo e que se encontra em amplo desacordo com o medievalismo de homens como os nossos Felicianos e seus congêneres com ou sem mandato, dispostos a fechar exposições artísticas por supostamente trazer à público conteúdos ofensivos à suposta higidez moral do mundo excludente que defendem como auspicioso para a vida humana, desde logo, iluminados por seu ângulo de reflexão religiosa. Em nenhum caso parecem ter compreendido a muito acertada percepção de Dworkin de que “El medio en que nosotros y nuestros hijos debemos vivir está determinado, entre otras cosas, por pautas y relaciones estabelecidas en forma privada por personas diferentes de nosotros” e, logo, de que este espaço comum em uma sociedade democrática é incompatível com a imposição de visões morais de mundo excludentes, contradição interna típica daqueles que realizam uma interpretação fundamentalista do catolicismo, eivado de misericórdia, fraternidade e solidariedade em seus fundamentos mais castiços.

Malgrado as suas altas posições de representação política, muitos dos mandatários políticos que hoje emergem na cena política brasileira provenientes das profundezas de seus muito limitados mundos interpretados exclusivamente a partir de visões teológicas muito particulares, o fazem carregados de enorme desejo de trazer para a cena política seus elementos confessionais, inspirados em uma visão de boa sociedade a partir de uma construção teológica própria de suas crenças e de seus grupos de apoio. Eis aqui, precisamente, o momento em que estes atores políticos revelam a gravidade de sua traição ao Estado, à República e à Constituição, cuja laicidade é manifesta. (segue).

Roberto Bueno é Professor da Graduação em Relações Internacionais da UFU. Professor da Pós-Graduação em Direito da UnB.

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