As ameaças contra acadêmicos, jornalistas e políticos no Brasil têm nome: bolsoterrorismo

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Por, compartilhado de The Intercept Brasil – 

Ataques terroristas não são sinônimo do 11 de Setembro. O Brasil sob Bolsonaro acumula exemplos de terrorismo de extrema direita com ameaças contra a vida. O legislativo precisa dar uma resposta a isso.

Brazil's president Jair Bolsonaro speaks to journalists at the Presidential Residence Alvorada Palace in Brasilia, Brazil, on Friday, May 22, 2020. A video of a controversial meeting between Bolsonaro and members of his cabinet became public on this Friday, causing a political crisis amid the coronavirus pandemic in Brazil. (Photo by Andre Borges/NurPhoto via Getty Images)
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PARA MUITOS BRASILEIROS, o 11 de Setembro nos Estados Unidos simboliza o que é terrorismo. Mas essa concepção está desatualizada. Estudiosos da área estão de olho, há algum tempo, no declínio gradual do terrorismo com motivações alegadamente religiosas, como nos casos dos ataques da al-Qaeda e do Estado Islâmico. Paralelamente, surge o que pode vir a se consolidar como uma onda global de terrorismo de extrema direita, que assola o Brasil sob o governo Bolsonaro.




Jornalistas, pesquisadores, produtores de conteúdo e opositores do governo encabeçam a lista de alvos. Identitariamente, eles são negros, mulheres e a comunidade LGBTQIA+. Para além da constatação do problema, ações legislativas precisam ser tomadas urgentemente.

Apesar de não haver um consenso sobre o que é terrorismo, vários especialistas concordam que se trata do uso ou da ameaça do uso da violência motivados por uma série de elementos que são explorados politicamente. Esse é o mesmo entendimento utilizado pelo Center for Strategic and International Studies, o CSIS, o melhor think-tank americano e um dos melhores do mundo, em seu último estudo sobre terrorismo nos Estados Unidos. Segundo o CSIS, houve 893 ocorrências terroristas entre 1994 e 2020, mas apenas 15% delas tiveram motivações religiosas. Terrorismo de extrema esquerda contabiliza 25% das ocorrências, enquanto o de extrema direita abrange 57% dos casos.

Parafraseando Bolsonaro quando descreveu um livro como “um montão de amontoado de muita coisa escrita”a extrema direita pode ser entendida como a politização de um montão de amontoado de muitas aversões, discriminações, preconceitos, ódios com toques de autoritarismo e nacionalismo, que se tornam terrorismo ao motivar o uso ou a ameaça do uso da violência. Existem vários exemplos disso no Brasil atual.

Professora, pesquisadora e ativista pela descriminalização do aborto, Debora Diniz recebeu a seguinte mensagem: “Quem disse que meu objetivo é te ofender? Eu vou te matar! Matar, vadia! Entendeu?” Note que quem escreveu essa ameaça escolheu não se limitar a ser machista e/ou misógino, mas também tentou aterrorizá-la. Ao El País, Diniz declarou:

“Chegaram ao ponto de cogitar um massacre na universidade caso eu continuasse dando aulas. A estratégia desse terror é a covardia da dúvida. Não sabemos se são apenas bravateiros. Há o risco do efeito de contágio, de alguém de fora do circuito concretizar a ameaça, já que os agressores incitam violência e ódio contra mim a todo o momento”.

Diniz não estava exagerando. Em 2015, Robert Lewis Dear dizia querer proteger a vida de bebês quando entrou na clínica especializada em saúde sexual e reprodutiva Planned Parenthood no Colorado, Estados Unidos, e atirou em diversas pessoas que acompanhavam pacientes. Três pessoas morreram e, acredite se quiser, esse não havia sido o primeiro caso do tipo.

No Brasil, onde cerca de 70% dos homicídios não são solucionados, ameaças de morte bastam para aterrorizar as vítimas. Não surpreendentemente, Diniz deixou o Brasil em 2018. A lista segue com outros exilados acadêmicos. Ilona Szabó, presidente do Instituto Igarapé, também deixou o Brasil. Recebendo um volume crescente de ameaças de morte desde 2017, Szabó chegou a ser mencionada, em tom depreciativo, por Bolsonaro, que a chamou de “abortista”, durante o seu discurso sobre a saída de Sergio Moro do cargo de ministro da Justiça.

David Nemer, professor assistente da Universidade da Virgínia, EUA, e pesquisador de grupos de WhatsApp bolsonaristas, precisou encurtar sua última visita ao Brasil ao receber uma ameaça por e-mail em 2019. Alguns meses depois, após conceder uma entrevista sobre o Parler, uma rede social que vem sendo amplamente utilizada pela extrema direita mundialmente, Nemer recebeu a mensagem: “O esquerdista tem família no Brasil, né?”. Fotos de armas e munições acompanhavam a ameaça.

Diniz, Szabó e Nemer aumentam um número que costumava ser discreto. Fundada em 1999, a Acadêmicos em Risco, uma rede que busca proteger acadêmicos e sua liberdade, havia recebido apenas quatro pedidos de socorro de acadêmicos brasileiros em quase duas décadas de existência. Desde as últimas eleições presidenciais, o número subiu para 48.

Youtubers são um outro alvo do terrorismo de extrema direita. Há cerca de um ano, o canal humorístico do YouTube Porta dos Fundos lançou o seu Especial de Natal: A Primeira Tentação de Cristo, no qual Jesus Cristo, personagem de Gregório Duvivier, tem uma relação amorosa com Orlando, Fabio Porchat, e Deus, Antonio Tabet, é amante de Maria, Evelyn Castro. Descontente com o enredo, o Comando de Insurgência Popular Nacionalista, o CIPN, grupo com supostas conexões com a Frente Integralista Brasileira, a FIB, e que havia roubado e queimado bandeiras anti-fascistas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro em dezembro de 2018, atacou a sede da produtora com coquetéis Molotov alguns dias depois do lançamento do Especial de Natal.

Em seu pronunciamento, no qual reclama a autoria do ataque, o CIPN apresenta elementos de discriminação, preconceito religioso e ódio contra a comunidade LGBTQIA+. Ameaças motivadas pelo mesmo ódio haviam levado a mãe do youtuber Felipe Neto a deixar o Brasil naquele mesmo ano. Em resposta a uma tentativa de censura do ex-prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella, o youtuber havia comprado e distribuído 14 mil livros com a temática LGBTQIA+ há poucos dias.

No começo de 2020, a Band, o Grupo Globo e o jornal Folha de S.Paulo suspenderam a cobertura na saída do Palácio da Alvorada devido a preocupações com a segurança de seus repórteres, evidenciando o clima de clara ameaça à segurança da categoria.

Uma jornalista acostumada a cobrir cenários de guerra como a Síria, Patrícia Campos Mello, da Folha de S.Paulo, precisou de escolta privada depois de receber mensagens e ligações de pessoas que ameaçaram agredi-la. Depois da publicação da série de reportagens da Vaza Jato, o jornalista Glenn Greenwald e o seu marido, o deputado federal David Miranda, do PSOL, receberam ameaças gravíssimas. Por exemplo:

“Iremos pegar as crianças depois da escola através de um Uber, vamos torturá-las aí no Jacarezinho! Depois de estuprá-las com nossos consolos, finalizando com esquartejamento dos corpos, iremos espalhar os pedaços das bichas-mirins por toda a ‘comunidade’”.

Enquanto o caso de Campos Mello é permeado por sexismo e misoginia, no caso de Greenwald e Miranda há algo velado a ser observado: a condição de estrangeiro de Greenwald acrescenta uma nuance xenófoba e nacionalista às ameaças, componentes característicos da extrema direita.

Segundo a Federação Nacional dos Jornalistas, a Fenaj, o número de agressões à classe aumentou em 54% entre 2018 e 2019. No Ranking Mundial de Liberdade de Imprensa, o Brasil caiu duas posições em 2019.

Quanto aos que se apresentam como oposição ao governo Bolsonaro, a situação não é menos aterrorizante. O senador Fabiano Contarato, da Rede, declarou ao Intercept: “Com 27 anos na polícia, só recebi ameaça de morte depois do embate com Moro”. Foram ameaças de morte que levaram o então deputado federal Jean Wyllys, do PSOL, a abrir mão de seu terceiro mandato e deixar o Brasil em 2019. Poucas semanas depois, a candidata ao governo do estado do Rio em 2018 pelo PT, Marcia Tiburi, deixou o país pelo mesmo motivo.

Jornalistas temendo por sua segurança, acadêmicos e opositores políticos deixando o Brasil. Em alguma medida, o momento atual se conecta a um passado recente. Na última década da ditadura militar, grupos como a Vanguarda de Caça aos Comunistas, a VCC; o Comando de Caça aos Comunistas, o CCC; o Comando Delta, o CD; e a Falange Pátria Nova, a FPN, conduziram quase 200 ataques terroristas de extrema direita.

Como a minha negritude antecede o meu saber acadêmico, por essa coisa de pele e consciência, me revolta saber que nem todos os alvos terão recursos para deixar o Brasil ou tempo para solicitar uma escolta privada. O Mestre de Capoeira Moa do Katendê não teve tempo. Segundo uma pesquisa com mulheres negras que se comprometeram com a Agenda Marielle Franco, 20,72% receberam comentários ou mensagens machistas, 18% receberam comentários ou mensagens racistas e 1,8% receberam comentários ou mensagens LGBTQIA+fóbicos.

Em novembro, milhares de pessoas elegeram dezenas de signatárias da Agenda Marielle Franco por todo o Brasil. Algumas delas se tornaram alvo antes mesmo de assumir os seus cargos, como Carol Dartora, do PT, a primeira vereadora negra eleita em Curitiba, e Duda Salabert, do PDT, a primeira vereadora transexual eleita em Belo Horizonte.

 

Juridicamente, a Lei Antiterrorismo é de pouquíssima utilidade. Ela se originou na pressão do Grupo de Ação Financeira Internacional, o Gafi,  organismo que delibera medidas que previnam organizações como a al-Qaeda de conseguir dinheiro para ações como as do 11 de Setembro. Promulgada pela ex-presidenta Dilma Rousseff, a lei estabeleceu que atos terroristas são motivados por “[…] xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública.”

Além de termos vagos que ameaçam o direito de protestar, a lei precisa ser revista. Nesse sentido, o Brasil pode aprender como a versatilidade dos governos estrangeiros. Aqui no Reino Unido, onde o terrorismo de extrema direita cresce em uma velocidade alarmante, legislou-se pelo menos sete vezes sobre o tema nas últimas duas décadas. Entre os assuntos, estavam em pauta a definição de terrorismo no Terrorism Act 2000 e adaptações à era digital no Counter-Terrorism and Border Security Act 2019. Na Seção 1 (C) do Terrorism Act 2000, por exemplo, a “ameaça” é explicitamente colocada como um elemento constitutivo do terrorismo.

Nos últimos anos, a Divisão Antiterrorismo do Ministério Público da Coroa Britânica prendeu diversos usuários do Facebook e do Twitter que postaram ameaças de violência contra grupos definidos de acordo com a raça, religião e/ou orientação sexual de seus componentes. Contudo, utilizou-se o Public Order Act 1986 para condenar os acusados. Racismo, discriminação e preconceito religioso são elementos presentes tanto no Terrorismo Act 2000 quanto no Public Order Act 1986 – porém, apenas o último trata de discriminação e preconceito de orientação sexual, uma transgressão presente em algumas das acusações.

A Lei Antiterrorismo precisa ser atualizada para acrescentar a ameaça do uso da violência, as discriminações e preconceito de orientação sexual e gênero, além de eliminar os termos vagos. Mas toda alteração deve ser acompanhada de debates com pluralidade, envolvendo ONGs e entidades como a Conectas, a Coalizão Negra por Direitos, as Mães de Maio, Instituto Marielle Franco, Instituto Patrícia Galvão, Themis e outros membros da sociedade civil.

Pode ser que não tenhamos que esperar tanto para que esses debates ocorram. No apagar das luzes de 2020, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, estabeleceu uma comissão de juristas para avaliar e propor dispositivos legais para lidar com o racismo. Por se tratar de uma violência política que operacionaliza, dentre outras discriminações, o racismo, torço para que o terrorismo de extrema direita possa ser pautado pela Comissão, assim como a aplicabilidade da Lei Antiterrorismo.

Aos que rechaçam debater o assunto porque ativistas como Angela Davis e Nelson Mandela foram tachados como terroristas, trago uma novidade: sua ausência do debate não o eliminará. Bolsonaristas utilizam o termo como um recurso discursivo sem qualquer cerimônia e devem continuar. Progressistas, liberais ou como queiram ser chamados, não podem se abster de colocar esse debate na pauta. Caso contrário, o Brasil sucumbirá ao bolsoterrorismo, nome que utilizo para acusar nada além do atual zeitgeist, que não começou quando Bolsonaro se tornou presidente da República nem terminará quando ele deixar de ocupar o cargo.

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