Por Lúcia Capanema Alvares, professora da Universidade Federal Fluminense, pós-doutora em Planejamento Urbano e Regional.
“Precisamos atentar para a banalização deste mal e nos perguntarmos todos os dias como este mundo de horrores em que vivemos é construído na cotidianidade, como e quando estamos nos calando e permitindo que este sistema arcaico resista aos gritos por igualdade de poder e desejos do século XXI”.
Dani Calabresa sofreu, por um bom (ou mau, na verdade) tempo o assédio cotidiano de seu chefe. Denunciou, corajosamente, o assédio, juntando-se a um movimento de resistência de difícil construção e aceitação. Homens e mulheres pertencentes ao século XIX, dirão: “Ah… certamente deu confiança… Ah, deve ter se oferecido pra subir na Globo…”. Homens e mulheres do século XX ainda dirão: “Mas isso não é machismo… é só uma cantada” ou “mulher até gosta, se sente lisonjeada”.
Está aí esboçado o conceito de micropolítica pensado pelos filósofos Michel Foucault e Michel De Certau. A prática social construída cotidianamente pelo poder incidiu sobre a vida de Dani, sua realidade, seu corpo biológico, seus sentimentos.
Mas a mesma prática que destrói sua vida permite que ela perturbe a ordem estabelecida. E nos chama a todos a combater esta ordem. É esse o papel heroico, sofrido e esperançoso, de mulheres e homens que vivenciam cotidianamente a violência do machismo estrutural.
Assim como o racismo estrutural, tão bem criticado pelo Prof. Silvio de Almeida, tão bem demonstrado pelo pensador Jessé Souza, nossa sociedade vive a micropolítica do machismo estrutural. A técnica histórica de domesticar corpos e mentes para que se sujeitem ao domínio da força perpassa ambos tipos de assédio.
O racismo escraviza, mata (muito), marginaliza. O machismo mata (também), oprime, deprime. Chibatadas e estupros domesticam. Não tenho o lugar de fala, mas é sempre preciso e bom lembrar a “dororidade” de Vilma Piedade que une as “Marias, Mahins, Marielles, malês” cantadas no samba. Ninguém sofreu (e/ou sofre) mais a estrutura criada no Brasil que as mulheres pretas.
Crimes graves como o de Beto Freitas (Carrefour) ou o da criança engravidada pelo tio (Estado do Espírito Santo) nos unem em humanidade por algum tempo, mas são (re)construídos a cada dia nas nossas práticas de violência e silêncio. Trago para nossa reflexão um exemplo cotidiano, quase banal, não estivesse docilizando a tantos corpos e mentes por sua característica estrutural.
A partir do reconhecimento da pandemia, muitos grupos de ajuda mútua e de socialização se formaram nas redes sociais. Aqui no Rio formamos o nosso, ligado ao carnaval que acabara de acontecer. Gente alegre, foliã, meia idade da zona sul, posicionada à esquerda no espectro político.
Seguiram-se logicamente inúmeras discussões politizadas, críticas aos costumes, picardias futebolísticas, até a grande ideia do bar virtual, sempre às sextas, que tornou-se um hábito e uma válvula de escape.
Neste ano em que pelo menos 700 brasileiras já foram vítimas de feminicídio e em que alcançamos a infeliz marca de um estupro a cada oito minutos, vivi na última sexta, antecipando o que sofreria minha amiga M um pouco dessa micropolítica doente. Ao abordar no “N Bar Virtual” uma questão política polêmica, P, um dos ‘presentes’, manda: “Você é apaixonada pelo (político)”; “está com raivinha (sic) de mim”; e emenda: “minha filha”, “meu amor” por entre longas vociferações em altíssimo tom.
Quando consegui ser escutada, pontuei as quatro desqualificações da minha pessoa como interlocutora e saí da sessão. Mais tarde, quando a amiga M já estava ‘presente’, o mesmo P provoca uma discussão sobre os acontecimentos anteriores e é por ela apartado: “Não seria justo ou elegante discutir este assunto quando uma das pessoas não está aqui para se defender”. Ao que P respondeu aos berros chamando-a de “metida, convencida”, e exortou: “cala a boca, mulher”. Infelizmente, em ambas ocasiões seguiu-se o “silêncio cortante” a que se referiu Luciana Sérvulo (https://jornalistaslivres.org/a-violencia-contra-dani-calabresa-e-a-cruel-conivencia-da-globo/).
No dia seguinte, quando todos (ou quase) esperavam uma retratação verdadeira de P, se dá o contrário: ele posta nas redes uma lastimável mensagem, em que, ao modo “estuprei, mas ela mereceu”, busca culpabilizar a primeira vítima de seus ataques, como “arrogante” e fazendo “provocações”. Nada menciona sobre os também injustificáveis ataques a M.
Discussões subsequentes no grupo diziam que P havia sido imparcial nos argumentos, suas construções seriam retóricas sem recorte de gênero. Rebaixar o interlocutor com o tratamento “meu filho/minha filha” e “meu querido/meu amor” seriam ataques comuns nos debates políticos desprovidos da característica de gênero. Trocando em miúdos, P não era machista…
Propus uma sessão extra do “N Bar Virtual” tendo como tema o machismo estrutural. Muit@s compareceram, permitindo às mulheres ‘presentes’ sua apresentação, sua colocação diante do Outro. São mulheres bem posicionadas profissionalmente, expondo sua colonização: “É muito duro e transforma a gente de uma maneira negativa”, disse a querida J sobre o machismo no meio artístico.
Sobre o trabalho social, A mencionou: “nunca imaginei que pudesse ser assim”. R, professora, explica que quem define o racismo, o machismo ou a homofobia é quem sofre a violência e não seus perpetradores. Os homens presentes parecem ouvir e refletir. Nos dias que se seguem, os mais duros resistem, se fecham na confraria, defendem-se insultando, lançam a pauta da misandria – o ódio aos homens, revivendo mais uma vez este sentimento torpe; outros se mostram capazes de aprender, de pensar em alteridade. E a gente vê uma luz no fim do túnel, ainda que tênue.
O exemplo serve apenas para corroborar nossa crença Freireana na transformação do opressor a partir da ação do oprimido: com a análise micropolítica queremos demonstrar que há uma orquestração, uma intencionalidade, um objetivo atrás ou abaixo de qualquer discriminação ou apagamento do outro e que tais ações podem ser subvertidas também por meio da cotidianidade. Afinal, o cotidiano é parteiro e filho de toda descriminação que conhecemos.
Precisamos atentar para a banalização deste mal e nos perguntarmos todos os dias como este mundo de horrores em que vivemos é construído na cotidianidade, como e quando estamos nos calando e permitindo que este sistema arcaico resista aos gritos por igualdade de poder e desejos do século XXI. Saravá!
Veja aqui a denúncia de Dani Calabresa.
Dani Calabresa fala pela 1ª vez do assédio sexual que sofreu de Marcius Melhem