Por Lourenço Paulillo, poeta e cronista
O importante não é a casa onde moramos. Mas onde, em nós, a casa mora (Mia Couto)
Quem assiste ao extraordinário Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, percebe que a casa da família Paiva é importante personagem. Gostaria de comentar sobre essa casa, mas não quero dar um spoiler. Sim, as casas têm vida.
Desde que nasci até me casar vivi em três casas, todas na cidade de São Paulo. E, coincidentemente, creio que as três ainda existam. Sobreviveram ao proliferar dos altos edifícios.
A primeira é a casa em que literalmente nasci. Rua Tabapuã, 14. Bem singela, geminada, com um pequeno jardim na frente, onde floresciam margaridas, o nome de minha mãe. Portão baixo, de madeira. Lembro-me que havia uma mesa redonda na sala, ao redor da qual eu corria para que minha mãe não me alcançasse com um chinelo. Dos demais cômodos não me lembro, mas no quintal meu pai cultivava uma videira e fizera um balanço com dois bancos, para que eu e minha irmã nos divertíssemos.
Aos meus seis anos, mudamos para a segunda casa. Rua Domingos Leme, 52.
Construída por meu pai e dois pedreiros, também térrea, porém mais espaçosa. A sala permitia que meu pai dispusesse sua vitrola, um móvel bonito com topo basculante e duas portas na parte inferior, onde ficavam os discos – cançonetas napolitanas, valsas vienenses, baiões de Luiz Gonzaga.
Havia azaléias, hortênsias e fileiras de buxinho no jardim, sempre bem cuidado por um senhor português. No quintal a videira formava uma extensa parreira, e no canto direito vicejava uma figueira. Figos brancos.
Na época era costume revestir as paredes externas com reboco de acabamento crespo. Por isso ralei meu braço ao tentar andar de bicicleta pela primeira vez, no corredor que dava para uma garagem. Do outro lado da casa havia um canteiro longo e estreito, em que eu colecionava a folhagem coléu de diversas cores, pegando pequenos galhos na vizinhança.
Foi nesta casa que eu redigia e datilografava uma revista chamada EstuDante, dirigida aos colegas da classe do colegial.
Quando adolescente, nova mudança, para outra casa térrea. Rua Gabriel de Lara, 116, depois 176. Com fachada mais moderna, incluía um detalhe em pastilha e três colunas coloridas no terraço da frente. Um pequeno nicho embutido na parede abrigava uma estatueta de Santo Antonio.
Desta vez uma goiabeira cresceu demais no quintal e impediu que a nova videira vingasse.
Na frente exalava o perfume das flores do jasmim-manga, que era acompanhado por um cafeeiro e uma seringueira de jardim. Esta ficou enorme, passou a interferir com o piso do terraço. Certo dia, ao voltar do colégio, ela havia sido cortada, para minha tristeza.
Foi nesta casa que vivemos tempos difíceis, com a chegada das doenças de minha mãe e de minha irmã. Nesta fase me formei no colegial e muitos anos depois desta casa saí ao me casar. Ela foi ficando mais triste e a perdemos com a partida de meu pai.
Muitos anos depois, por curiosidade, passei por esses três endereços, em diferentes ocasiões.
Na primeira fora instalada uma pequena lanchonete, e ao adentrá-la reconheci alguns detalhes e o velho telhado, agora enegrecido.
A segunda estava em reforma. Pedi para dar uma olhada e lá estava o mesmo piso de tacos de madeira no chão da sala e a velha figueira no quintal. Tronco bem grosso, porém muito podada. Não sei se voltaria a frutificar.
A terceira estava externamente bem alterada, com muro e portão altos. Passei direto. Melhor talvez, já não fora uma fase solar.
Cada casa representa uma fase de nossa vida, desde o engatinhar até a idade adulta. Nelas brincamos, nos alimentamos, estudamos, cantamos, dormimos, sonhamos. Talvez fiquem tristes quando as deixamos.
Após o casamento, vivemos em quatro diferentes edifícios até hoje, pela ordem em Moema, Interlagos, Campo Belo e Saúde. São moradias padronizadas, sem tanta personalidade quanto as casas.
Com o início da pandemia, quando tudo era incerto e assustador, acabei me radicando na quarta casa da minha vida. Rua Adão Guerra, 188. Nome dado por meu tio Antenor. Casa bem antiga na chácara. Também feita por meu pai, com amor e muito trabalho. Simples, carente de manutenção, mas rodeada de muitas árvores.
Após tantas décadas ocupada apenas em finais de semana, hoje ela pode receber diariamente a luz do sol em seu interior. Está mais alegre, adquiriu novo viço.
Seria interessante se as casas falassem. Poderíamos dialogar, relembrar tantas histórias, comentar os momentos festivos e amenizar os mais doloridos.
Reviver cada fase sob nova perspectiva. Voltar a compartilhar o cheiro das comidas, as canções que giravam na vitrola, as uvas e os figos dos quintais.
Como as casas não falam, ficamos apenas com os guardados da memória e os álbuns de fotos. Tudo o mais vai sendo levado pelo vento.
18 de janeiro de 2025.
Dia de mudança de ciclo é dia de repassar a vida e planejar os próximos passos da caminhada.
Nota – Ao escrever sobre a vida das casas, vieram à mente letras de músicas:
“Tu não te lembras da casinha pequenina
Onde o nosso amor nasceu
Tinha um coqueiro do lado
Que coitado de saudade já morreu”
(Casinha Pequenina –
Renato de Oliveira )
.
“Era uma casa muito engraçada
Não tinha teto, não tinha nada
Ninguém podia entrar nela não
Porque na casa não tinha chão”
(A Casa – Vinicius de Moraes)
“A nossa casa, querido, já estava acostumada
Guardando você
As flores na janela
Sorriam, cantavam
Por causa de você”
(Por Causa de Você – Tom Jobim e Dolores Duran)
E tantas outras.
Imagem: Casa na Ilha de Paquetá