As lágrimas por Ágatha no Complexo do Alemão, onde crianças se habituaram a fugir de tiros

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Por Felipe Betim, publicado em El País – 

Velório de menina de oito anos, morta com um tiro de fuzil nas costas durante operação policial, reúne centenas de moradores, ativistas e artistas no Rio. “Nossa luta só está começando”, discursa o avô

Ágatha Félix
Familiares e manifestantes acompanham o enterro Ágatha Félix, no dia 22 de setembro. SILVIA IZQUIERDO AP

Centenas de pessoas se reuniram neste domingo chuvoso no Complexo de favelas do Alemão, na zona norte do Rio de Janeiro, para exigir Justiça por Ágatha Félix, a menina de oito anos assassinada na noite da última sexta-feira por um tiro de fuzil nas costas durante uma ação da Polícia Militar (PM). Ágatha foi atingida quando estava dentro de uma Kombi, ao lado da mãe. A polícia afirma que a tragédia ocorreu em uma troca de tiros com bandidos, o que testemunhas negam —elas apontam que a bala partiu de um policial que mirava um motociclista próximo. Em um ato carregado de dor e emoção, moradores, ativistas e artistas ecoaram a fala do avô Airton Félix que viralizou nas redes sociais neste fim de semana: a de que sua neta era estudiosa, falava inglês, tinha aula de balé e era filha de um trabalhador. E relembraram um cotidiano marcado pelo medo na comunidade, onde os tiroteios são frequentes. “Eu tenho filha, e ela fica desesperada quando vai para a escola. Quando dá tiro, ela quer descer para debaixo da pia”, discursou um mototaxista que acompanhava o cortejo. Ágatha foi a 16ª criança baleada no Rio neste ano, segundo a plataforma Fogo Cruzado —quase duas por mês.




“O que vai ser de minha filha agora? Com quem ela vai brincar?”, perguntava, aos prantos, um tio da menina que seguia, junto com outros familiares, o carro que levava o caixão para o cemitério de Inhaúma. Abalado, o avô de Ágatha lembrava do simulado que ela havia feito na última semana na escola. “Minha neta tirou sete, mas ela só gostava de tirar oito, nove ou dez”, dizia. “Ela merece o céu”, repetia. Após enterrá-la, discursou diante de todos: “Nossa luta só está começando”.

O ato começou por volta de 13h na estrada do Itararé, em frente à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do Alemão, e seguiu em cortejo até a capela onde a família velava o corpo de Ágatha. “Nós exigimos justiça”, gritavam os manifestantes repetidas vezes. A frase escrita em uma grande faixa levada por moradores e ativistas dava o tom do protesto: “Parem de nos matar”. Era a enésima vez que pediam para que o direito à vida, o mais elementar dos que a Constituição garante, fosse respeitado nas periferias. Com o Estatuto da Criança e do Adolescente em mãos, a ativista Camila Santos leu o artigo 4º que também fala sobre o dever da sociedade e do poder público de assegurar a vida e a saúde, entre outras prerrogativas, dos jovens brasileiros. “Dizem que aqui tem todos os direitos. E eu gostaria de saber se isso funciona para a criança favelada”, questionou.

O governador Wilson Witzel (PSC-RJ) foi chamado de “assassino” em diversos momentos, assim como a PM que comanda. O ex-juiz se elegeu em 2018 prometendo que snipers atirariam “na cabecinha” de criminosos armados. E, desde que assumiu o cargo, em janeiro deste ano, operações policiais nas favelas ficaram mais frequentes, assim como o uso de helicóptero como plataforma de tiro. Sua política de segurança, marcada por um endurecimento tanto retórico como operacional, vem recebendo duras criticas de movimentos sociais e especialistas por estimular a violência policial e acabar com a vida de centenas de pessoas, sejam elas inocentes ou criminosas. Os números de mortes cometidas por agentes públicos vêm batendo recordes mensais: de janeiro e a agosto, as polícias já assumiram a morte de 1.249 pessoas, uma média de cinco por dia, segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP), autarquia vinculada à administração estadual. Na região metropolitana do Rio, os agentes já são responsáveis por quase metade das mortes violentas. Os dados não consideram as execuções cometidas por agentes que agem nas sombras ou por milícias, formadas majoritariamente por policiais e bombeiros da ativa ou da reserva.

A menina Ágatha foi a quinta criança que morreu no Rio após levar um tiro, segundo a plataforma Fogo Cruzado. Mãe de dois meninos, de 10 e 13 anos, Tatiana Moreira contou que sua família “sobrevive com cautela, olhando para os lados para não receber bala perdida”. Ela é voluntária em um projeto que dá aula de reforço para 150 crianças do Alemão e relata como elas crescem acostumadas com os horrores da violência armada. “Muitas delas chegam contando ‘tia, meu irmão tomou oito tiros, tia, meu irmão morreu’. Ficam com o psicológico abalado. Esses governos aí estão fazendo errado”, afirmou. Nessa mesma linha gritava uma mulher durante o enterro: “Nós queremos paz. Acordamos 5h da manhã para colocar o filho na escola e não podemos sair de casa. Queremos viver, queremos ver o futuro de nossos filhos e netos. Não somos bicho”.

Ágatha Félix
Vanessa Francisco Sales leva uma boneca que foi de sua filha, Ágatha Félix, de mãos dadas com Adegilson Félix (à dir.), seu marido e pai da menina que morreu vítima de um tiro, durante o cortejo do corpo da criança. SILVIA IZQUIERDO AP

Na mesma sexta em que Ágatha Félix foi morta, Witzel reafirmou o seu compromisso em matar criminosos armados. “O crime organizado não é maior que o Estado. E nós não vamos permitir que eles continuem zombando das nossas caras, serão combatidos, serão caçados nas comunidades. E aqueles que não se entregarem, que não tirarem o fuzil do tiracolo, serão abatidos, porque não merecem viver aqueles que atiram contra o povo e contra a população”, discursou durante ato de Governo. O governador ainda não se pronunciou sobre a morte da menina, mas sua gestão emitiu uma nota em que define o episódio como “trágico” e assegura que o caso será investigado com “máximo rigor”. A comoção em torno do assassinato de Ágatha não foi suficiente, ao menos por ora, para mudar os rumos da política de segurança: neste domingo, antes de o relógio marcar meio dia, duas pessoas foram baleadas, uma na favela de Acari e outra dentro de uma padaria na Cidade de Deus. Internado desde quarta-feira após uma troca de tiros no Alemão, o cabo Felipe Ribeiro, de 34 anos, não resistiu aos ferimentos e morreu no mesmo dia. Foi a segunda morte de PMs neste fim de semana.

O presidente Jair Bolsonaro, outro dos eleitos com um discurso linha-dura, também não se pronunciou sobre a morte Ágatha. Já o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, expressou sua solidariedade aos familiares “sabendo que não há palavra que diminua tamanho sofrimento”. Em referência ao pacote anticrime que o Executivo enviou ao Parlamento, concluiu: “É por isso que defendo uma avaliação muito cuidadosa e criteriosa sobre o excludente de ilicitude que está em discussão no Parlamento”. Por sua vez, o ministro da Justiça, Sergio Moro, responsável pelo pacote que tramita no Congresso, afirmou confiar nas autoridades para investigar o caso e enfatizou que o episódio não possui relação com legítima defesa. As armas dos policiais envolvidos na ação foram recolhidas e passarão por um exame de balística pela Polícia Civil.

Enquanto isso, cresce a pressão internacional sobre o Brasil e as políticas de segurança em vigor. Há duas semanas, a ex-presidenta do Chile, Michelle Bachelet, alta comissária da ONU para Direitos Humanos, chamou atenção para o aumento da violência policial e para o que considera ser um encolhimento dos espaços democráticos no país. Neste domingo, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA lançou uma nota dizendo que o Estado deve investigar a morte de Ágatha “de maneira urgente e diligente, e sancionar os responsáveis”. Vários movimentos de periferia enviaram à cúpula da ONU, às vésperas do discurso de Bolsonaro na Assembleia Geral, uma denúncia contra Witzel e o Estado brasileiro pela morte da menina.

Dados mais recentes indicam que a violência policial vem crescendo a cada ano. Mais de 75% das pessoas vítimas de homicídio como das mortes cometidas por policiais são jovens e negros, segundo os últimos dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Atlas da Violência. Palavras duras como “genocídio”, “política de extermínio” e “terrorismo de Estado” estão na ordem do dia. Mais que nunca são repetidas por esses ativistas dos movimentos negros e de periferias. Para muitos, sobreviver tornou-se um ato revolucionário em 2019.

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