Por Felipe Januzzi, Outras Palavras –
Industrial, artesanal, padronizada, informal. Na diversidade dos modos de produzir, outro traço de diversidade do destilado brasileiro. Mais: a Mato Dentro, de São Luís do Paraitinga-SP
Nas viagens que faço com o Mapa da Cachaça sempre encontro diferentes formas de se produzir aguardente de cana pelo país. Ingredientes e receitas locais, além de tornarem mais complexos os aromas e sabores da cachaça, também destacam características regionais que justificariam um terroir para a bebida. Na Paraíba, por exemplo, utiliza-se muito uma madeira chamada freijó para armazenamento, enquanto que no norte de Minas Gerais barris e dornas de amburana ou bálsamo são os favoritos dos produtores.
Toda essa diversidade torna difícil responder uma pergunta cada vez mais constante: Qual sua cachaça favorita? Ultimamente, tenho me interessado mais por cachaças novas, aquelas que não passam por madeira, mas me sirva uma boa dose de caninha destilada em alambique de cobre e envelhecida em ariribá que não tem erro. Mas para te ajudar no processo de seleção da sua próxima cachaça, compartilho uma classificação que fizemos no Mapa da Cachaça destacando os principais processos de produção do destilado nacional.
Cachaça industrial:
A cachaça é o quarto destilado mais produzido no mundo, ficando atrás do soju, baijiu e vodca. Com volumes que passam dos bilhões de litros por ano, a aguardente de cana industrial é uma bebida barata e presente em todo território nacional.
Na produção da cachaça industrial, a cana pode ser própria ou comprada de terceiros. A colheita é feita mecanicamente. Na lavoura são aplicados adubos, fertilizantes e inseticidas. A variedade de cana é escolhida em busca de rendimento, sendo regra aquelas manipuladas geneticamente. Na fermentação, os ajustes são feitos com produtos químicos como o sulfato de amônia e antibióticos. As leveduras usadas na fermentação são padronizadas – buscando alto rendimento na produção do vinho de cana. A destilação é feita em coluna de inox. Nas industriais, predominam a cachaça nova, mas também existem versões compostas com sabores de madeiras e adocicadas. São cada vez mais presentes no mercado cachaças industriais envelhecidas, buscando ocupar espaços de bebidas mais premium. As cachaças industriais têm padronização e controle, mas perdem em complexidade sensorial.
Exemplos: 51, Ypióca, Pitú, Velho Barreiro, Sagatiba
Cachaça artesanal formalizada:
A produção da cachaça artesanalocorre com diferentes volumes, mas raramente os produtores ultrapassam 100.000 litros por ano.
Na maioria dos casos, usam cana própria colhida manualmente sem a queima do canavial. Na fermentação, são adeptos do fermento caipira, quando usam leveduras selvagens e uma mistura de fubá de milho e limão – apesar da levedura padronizada ter ganho muitos adeptos nos últimos cinco anos. Durante a fermentação, não são utilizados químicos. O grande diferencial da cachaça artesanal em relação à industrial é a destilação por bateladas, em alambiques de cobre. O processo favorece a formação de congêneres importantes para agregar aromas e sabores à bebida.
É nessa etapa também que são separadas as frações indesejáveis (cabeça e cauda) e é conservado o coração – parte nobre da cachaça artesanal. As versões do produto final são variadas e vão desde a cachaça que não passou por madeira, até as armazenadas em madeiras variadas. A madeira que predomina é o carvalho, na maior parte das vezes reciclado da indústria de uísque. Quanto às madeiras brasileiras predominam jequitibá, amburana e bálsamo. Por se tratar de um processo demorado, primoroso e artesanal, as cachaças presentes nessa categoria têm maior valor agregado.
Exemplos: Mato Dentro, Santo Mario, Weber Haus, Sanhaçu, Avuá, Maria Izabel, Leblon
Cachaça artesanal padronizada:
Os produtores da cachaça artesanal padronizada atuam com grandes volumes, chegando aos milhões de litros anuais. A maior parte da produção tem base na aquisição e redestilação da cachaça produzida por muitos pequenos produtores.
Quando regulada e priorizando a qualidade da cachaça, a padronização pode ser interessante para fomentar a pequena produção familiar. Por comprarem de diversos fornecedores, o controle e padronização pode ser um desafio para esse tipo de cachaça. Ao chegar ao produtor final, a cachaça é redestilada em alambiques de cobre buscando padrão. Interessante ressaltar que para essa categoria, a bebida raramente é comercializada na sua versão nova, mas sempre associada a madeiras. O envelhecimento dessa cachaça também é uma maneira de facilitar a padronização dos aromas e sabores da bebida – a madeira ajuda a mascarar eventuais desvios de cachaças novas provindas de diferentes alambiques. Por produzirem grandes volumes, terem gastos de produção reduzidos e assumirem a identidade de artesanal ocupam boa parte do mercado com preços competitivos e boa margem de lucro.
Exemplos: Salinas, Boazinha, Seleta, Claudionor, Ferreira Januária
Cachaça artesanal informal:
Os produtores informais possuem pequenos canaviais, implantados e mantidos com o trabalho familiar. Com pouca capacidade de armazenamento, são pressionados a comercializar sua produção durante a safra, quando o preço é o mais baixo. Em algumas regiões de Minas Gerais, o litro da cachaça informal pode ser menos que R$ 1,00. A cachaça informal pode até ser aromática e saborosa – algumas inclusive ideais para consumo. No entanto, para buscar subsistência e aumentar o rendimento, muitos produtores não fazem qualquer separação na destilação, incluindo as porções da “cabeça” e da “cauda”, o que resulta em bebida perigosa para o consumidor.São as cachaças sem registro no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Os pequenos produtores da cachaça informal têm condições produtivas precárias, e em geral, comercializam sua produção a granel em pequenas vendas, mas são a principal fonte para as marcas de cachaça industriais e artesanais estandardizadas.
Exemplos: Estima-se que existam espalhados pelo Brasil mais de 40 mil produtores da cachaça artesanal informal.
Cachaça Mato Dentro — Bálsamo
No Vale do Paraíba, em São Luís do Paraitinga (SP), estância turística famosa pelas trilhas ecológicas e bloquinhos de carnaval, está a destilaria da família Cembranelli, produtora da cachaça artesanal Mato Dentro.
Logo na entrada da cidade, a apenas cinco quilômetros da BR 101, o Sr. Rómulo Cembranelli, de 84 anos, produz desde 1980 uma linha de cachaças com o auxílio de familiares e do mestre alambiqueiro Nelson Alvarenga. Enquanto o Sr. Rómulo supervisiona com olhos atentos a produção, sua esposa, Aparecida, se encarrega das vendas e de receber os visitantes. Com a parceria de anos, o casal de aposentados, ele advogado e ela professora, dedica-se na produção de cachaça com todo carinho de quem tem um alambique no quintal de casa.
Entre as cachaças da família Cembranelli estão a Mato Dentro, envelhecidas em amendoim, bálsamo, amburana e carvalho. Além disso, possuem também uma segunda marca chamada Velha Sabina, uma homenagem à ama de leite que trabalhava na casa dos Cembranelli na infância de Rómulo.
A Mato Dentro Bálsamo traz a combinação de uma cachaça nova muito aromática, com cheiro doce da cana-de-açúcar somado aos elementos herbais, próprios da madeira brasileira, deixando a cachaça fresca e picante. Ela é adstringente na boca, uma sensação que a princípio pode não ser muito apreciada, mas que agrada na Mato Dentro. O bálsamo deixa a cachaça com um final amargo, ao mesmo tempo que traz um frescor. A cachaça envelhecida em bálsamo da família Cembranelli tem um segredo: antes de ficar um ano no bálsamo, ela passa seis meses em barris de carvalho europeu. Rómulo Cembranelli diz ter decidido produzir essa cachaça depois de conhecer a produção de Anísio Santiago em Salinas (MG).
Os visitantes que desejam conhecer a destilaria não podem deixar de visitar o centro histórico de São Luiz do Paraitinga, declarado em 2010 patrimônio cultural nacional pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Nesse mesmo ano, após fortes chuvas de verão, o rio Paraitinga, que corta a cidade, transbordou inundando o centro histórico e derrubando edifícios importantes, incluindo a Igreja Matriz, construída no século XVII. Desde então, a cidade passa por um processo de revitalização e depende do turismo para aquecer a economia baseada na agricultura e artesanato familiar.