Por Lourenço Paulillo, poeta e cronista
Todo tempo quanto houver pra mim é pouco
Pra dançar com meu benzinho numa sala de reboco
Todo tempo quanto houver pra mim é pouco
Pra dançar com meu benzinho numa sala de reboco
(Trecho de “Numa Sala de Reboco”, de Luiz Gonzaga e José Marcolino)
Nos museus e galerias as paredes são vestidas de obras de arte, em geral eternas. São poucas as paredes de taipa remanescentes na cidade de São Paulo de Piratininga. Dentre elas a do Pátio do Colégio e a do Museu de Arte Sacra. O trançado de madeira ou bambu era preenchido com a mistura de argila, areia e até óleo de baleia e esterco de gado. Quem diria, a pequena escola, próxima aos rios Anhangabaú e Tamanduateí, fundada pelos padres José de Anchieta e Manuel da Nóbrega, era a semente da grande metrópole.
Ao olhar para minhas modestas paredes de tijolo de barro, revestidas de reboco ou simplesmente pintadas de branco, muitas histórias são revividas.
O casario do Pelourinho, num pôster em branco e preto, me leva à viagem à Bahia, há mais de cinquenta anos. Eu e o amigo Carlos Ferraz Jr. caminhávamos, observando e fotografando os velhos sobradões. Vimos um senhor idoso sentado na soleira de uma porta, quieto, olhar perdido, verdadeiro personagem dos romances de Jorge Amado. Sem ousar incomodá-lo, o Carlos fez a foto, de longe. Subitamente o velho reagiu, fazendo um gesto obsceno. Rapidamente nos afastamos, em silêncio, um tanto assustados. Ficou claro que tínhamos invadido sua privacidade.
Outra cena, esta de um negro entalhado em madeira, remete aos sombrios tempos da escravidão. E pensar que ainda hoje pessoas são encontradas exercendo trabalho sub-humano!
O longo remo de madeira pintada me leva aos imensos rios da Amazônia, ao encontro das águas do Negro com o Solimões, ao sabor dos pirarucus e tucunarés, ao esvoaçar das palmas do açaí.
O hibisco vermelho, azulejo emoldurado em madeira, me transporta aos dois períodos em que trabalhei na Venezuela. Períodos solares, nas décadas de 1970 e 1980, anteriores à famigerada ditadura.
A talha do jangadeiro me conduz aos versos de Dorival Caymmi:
“A jangada saiu com Chico, Ferreira e Bento,
A jangada voltou só”.
E ainda:
“Minha jangada vai sair pro mar
Vou trabalhar, meu bem querer,
Se Deus quiser quando eu voltar do mar
Um peixe bom eu vou trazer”.
O acessório em couro trançado, para montaria em cavalo, me traz à memória o artesão Antonio Sanches e seu paciente trabalho na cidade de Sabino. Ele partia do couro completo do boi, esticava-o ao sol, retirava os resíduos de carne e em seguida o recortava para a confecção das peças.
A tela a óleo do palhaço, que lembra Charles Chaplin, pintada pela saudosa mana Anna Maria, pede a letra da canção Smile, autoria do genial artista:
“Sorria, embora seu coração esteja doendo,
Sorria, mesmo que ele esteja se partindo
Quando houver nuvens no céu,
Você ficará bem”.
Outra tela, um bucólico caminho de terra e uma casinha, de autoria do estimado colega de colégio Antonio Fernando Cestari, ganhei num sorteio que ele gentilmente promoveu, durante o jantar anual da turma. Era ele que sempre lembrava da frase em latim que se traduz como “Rever os amigos é esquecer das misérias”.
As paisagens de Paraty em aquarela e litografia me propiciam a volta à época do primeiro filho, o Marcos, mal começando a andar. Caminhávamos pelas ruas calçadas de pedras irregulares, quando a certo momento ele parou e começou a chorar bem alto, em protesto.
O tacape foi uma brincadeira de colegas de trabalho, para que eu o batesse na mesa, pedindo ordem para o início das reuniões.
O cartaz com várias aves é auto-explicativo em seu texto: “Bicho legal é bicho solto. Aprisioná-los é crime. A captura e o comércio de animais silvestres fazem de você um responsável pelo desaparecimento das espécies do planeta”.
Atualmente, as paredes têm sido enriquecidas com novas telas, carinhosos presentes de artesãs amigas: as flores da Lindinalva, a borboleta azul da Jô, os girassóis da Leci Girassol, o grafismo da Rose. Mais o tucano que eu mesmo pintei. São novas histórias que as paredes passarão a guardar, para serem contadas no futuro.










Notas:
- Palhaço: tela de Anna Maria Paulillo, que nos deixou em 2001.
- Piratininga: Peixe seco;
- Anhangabaú: Água de mau espírito – relativo aos malefícios dos bandeirantes aos indígenas;
- Tamanduateí: Rio de muitas voltas, ou Rio dos tamanduás verdadeiros.
- Artesão Antonio Sanches: saudoso pai de minha nora Josiani.
Foto da capa da postagem: réplica de uma casa de reboco no Museu Luiz Gonzaga, em Exu (PE).