As profissionais da limpeza que driblam o medo da covid-19 e não ‘baixam a guarda’ no Emílio Ribas

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Por Andréa Martinelli, compartilhado de Huffpost Brasil – 

Irineia, Andrea e Ivanice integram o time de 73 mulheres que trabalha para garantir a limpeza na linha de frente contra o coronavírus em hospital referência em São Paulo.

Na guerra contra o novo coronavírus, essas mulheres também estão na linha de frente. São profissionais tão necessárias quanto médicas e enfermeiras e que, no dia a dia, se unem para driblar o medo e não baixar a guarda diante da covid-19. Mesmo invisíveis para alguns, elas são protagonistas e acompanham, silenciosas, o sofrimento que o vírus impõe a pacientes e a quem convive com a doença e a morte.




E elas precisam estar atentas. “Em cada quarto que eu vou, quando eu saio, uso álcool em gel, lavo minhas mãos com sabonete. Entro, saio, passo álcool em gel novamente. Lavo a mão praticamente o dia inteiro. Trabalho assim 12 horas no plantão”, conta Irinéia Aparecida Pacheco, 54, uma das auxiliares de limpeza responsáveis pela UTI (Unidade de Terapia Intensiva) do Hospital Emilio Ribas, referência no tratamento de doenças infecciosas em São Paulo.

Há cinco meses, ela vive uma rotina intensa na área mais crítica do hospital, que há pelo menos três precisou se adaptar para atender somente casos da covid-19. “A demanda aumentou bastante”, afirma. Ao mesmo tempo em que sabe que seu ofício é necessário, Irineia se agarra à fé para tentar não se render ao medo da contaminação. “Olha, eu gosto de trabalhar na UTI, de estar na linha de frente. Para mim é gratificante. É uma área que eu gosto. Eu procuro desempenhar o meu trabalho com amor e carinho. Não sinto medo, não.”

Em fevereiro, mesmo antes de a pandemia ser decretada pela OMS (Organização Mundial da Saúde), o hospital chegou a promover até três treinamentos específicos por dia para funcionários de todas as áreas sobre o atendimento a pacientes com suspeita ou casos confirmados da covid-19. Com o avanço da doença, o hospital passou a usar mais produtos de limpeza e a fazer desinfecção constante dos ambientes após o atendimento de pacientes contaminados. Inicialmente com 30 leitos, a UTI foi ampliada e hoje conta com 50 leitos, que foram adaptados nas enfermarias. A ocupação é de 100%.

Hoje eu vejo que existe muito sofrimento. Eu trabalhei na epidemia da febre amarela. Mas essa, de agora, já matou muito mais genteIrinéia Aparecida Pacheco, 54 anos, trabalha na limpeza da UTI do Hospital Emilio Ribas

MARCOS ALONSO
Moradora da Zona Leste de São Paulo, Irinéia, uma das auxiliares de limpeza do Hospital Emilio Ribas, trabalha há mais de 15 anos na área hospitalar.

Para Irinéia, no início, a paramentação necessária causou estranhamento, mas a repetição diária do ritual que inspira cuidado com si mesma e com o outro fez com que os equipamentos de proteção individual virassem costume. “Se eu fosse entrar no isolamento [onde o paciente tem um alto nível de infecção], eu tinha que usar máscara, avental e luva. Na UTI padrão, só a mascara e a luva eram suficientes. Agora não, eu tenho que me vestir da cabeça aos pés”, conta.

Assim como em profissionais de saúde, os equipamentos de proteção deixam marcas após 12h de plantão também em quem é responsável pela limpeza. “A gente estranha. Eu estranhei o óculos com a viseira e a máscara, mas agora já acostumei. Eu fico com aquelas marcas também. Se ver no espelho no início é estranho, mas depois virou corriqueiro.”

No total, o hospital conta com 80 profissionais que trabalham na limpeza. Deles, 73 são mulheres e sete são homens. Por trabalhar em um hospital que, mesmo antes da pandemia, tinha o foco em doenças infecciosas, o treinamento é diferenciado e aplicado de acordo com normas da Anvisa. Quando chamadas, elas precisam realizar de forma quase que cirúrgica a sua função.

As normas orientam como higienizar as mãos corretamente e como limpar o carrinho funcional (com todos os equipamentos de trabalho, entre eles, produtos de limpeza), a utilização correta dos EPIs (Equipamentos de Proteção Individual), e como realizar a limpeza rotineira e a chamada “limpeza terminal” – realizada após a saída do paciente, seja por alta, óbito ou transferência. Esse último compreende a limpeza de todas as superfícies, verticais ou horizontais, e desinfecção de todo o mobiliário do local.

ADRIANA MATIUZO/EMILIO RIBAS
Da esquerda para a direita: Irinéia, Andrea e Ivanice. Elas fazem parte da equipe de 80 profissionais que trabalham na linha de frente da limpeza do hospital Emilio Ribas diante do novo coronavírus.

Há 15 anos trabalhando em hospitais, Irinéia conhece bem a rotina, mas diz não ter visto nada como essa pandemia. “Hoje eu vejo que existe muito sofrimento. Eu trabalhei na epidemia da febre amarela, mas essa, de agora, já matou muito mais gente”, afirma.

Diante de uma rotina tão pesada, física e emocionalmente, ela desenvolveu mecanismos para seguir em frente. “Hoje eu vejo o meu trabalho como mais necessário ainda. Procuro desempenhar da melhor maneira possível sem me envolver emocionalmente. A verdade é essa. A partir do momento que a gente se envolve emocionalmente aí já não dá muito certo. Tem que ser profissional.”

Nos dias que certos procedimentos médicos são realizados em pacientes que estão na UTI, a atenção precisa ser redobrada. “Nesses dias fica um pouco mais puxado, mais corrido. A gente sempre tem que estar atenta para saber se acabou o procedimento ou não. Tem sempre que estar ali.”

É comum que profissionais como Irineia sejam contratados por uma empresa terceirizada – como é o caso do Hospital Emilio Ribas. Apesar de a experiência em um hospital que é referência em doenças infecciosas ser valorizada, a média de salário em todo o estado de São Paulo para auxiliares de limpeza não muda independente do risco. O piso é de R$ 1.248,27.

Procuro desempenhar da melhor maneira possível sem me envolver emocionalmente. A verdade é essa. A partir do momento que a gente se envolve emocionalmente aí já não dá muito certoIrinéia Aparecida Pacheco, 54 anos, trabalha na limpeza da UTI do Hospital Emilio Ribas

De volta para casa, após 12 horas de trabalho, Irinéia toma todos os cuidados necessários. Moradora da Zona Leste de São Paulo, seu trajeto costuma durar cerca de duas horas. “Eu chego em casa e não entro com a roupa que vim da rua. Deixo na área de serviço, pego meu roupão e já vou direto para o banho. Eu moro sozinha. Mas meus irmãos moram no quintal. E o contato com eles está limitado. Os horários não batem e eles continuam trabalhando.”

Ao fim de um dia de trabalho Irinéia, diz que não se deixa abater. “Olha, eu acho que o medo acaba atraindo [o próprio vírus]. E se a gente for viver de medo, a gente não sai de casa. Nós temos que nos prevenir, sim. Mas não podemos ter esse medo todo, porque, querendo ou não, o País já está parado. Se todo mundo viver com medo dia e noite, ninguém vai conseguir viver mais.”

Elas vivem, trabalham e limpam no epicentro da covid-19

MIGUEL SCHINCARIOL VIA GETTY IMAGES
Profissionais de saúde realizam procedimento na UTI do Emilio Ribas, em São Paulo.

“Essa pandemia tem tudo de diferente. Você tem que se proteger mais, tem que prestar mais atenção, ter mais cuidado com tudo. Qualquer deslize pode prejudicar a gente. Isso é na hora de recolher o lixo, de se paramentar, tudo. Tem que prestar atenção para não se furar, não se cortar”, afirma a auxiliar de limpeza responsável pelo pronto-socorro, Ivanice dos Anjos do Carmo, de 51 anos. Assim como Irineia, ela trabalha há mais de dez anos na área hospitalar. “Todas nós somos corajosas. Não é todo mundo que vem [trabalhar no Emilio Ribas], não. Eu mesma conheço pessoas que recusaram trabalho aqui. Então, todas nós somos fortes, guerreiras, e vamos continuar sendo.”

“A gente ficou mais valorizada agora. Porque é uma profissão que assim… a maioria das pessoas não dá valor. Mas é um serviço essencial. A gente tem que colocar o peito na frente, e enfrentar, e falar ‘vamos seguir’. Porque é isso que precisa ser feito agora. A limpeza é essencial também. Se não as pessoas ficam doentes, pegam outras doenças, né? Infecção hospitalar, essas coisas. Nós todas fazemos o serviço bem feito que não é para deixar falha”, afirma.

Eu falo com toda a certeza. Essa doença… ela veio com tudo. Se não nos protegermos vai acontecer o pior. De verdade, não é fácil.Andréa César Ramos, 42 anos, coordenadora de limpeza do Hospital Emilio Ribas que contraiu a covid-19

Ivanice precisa limpar o pronto-socorro, uma área de grande circulação, toda vez que um paciente chega ou vai embora. Além da área de entrada, nesta lista estão a sala de atendimento – incluindo maçanetas e outras superfícies e todos os corredores. Ela diz não se impressionar com os casos que chegam, mas, em um dos plantões, o desespero de um paciente ficou gravado na memória.

“Era um senhor que estava em observação e deu positivo. E a enfermeira disse para ele que ele seria internado. De repente, ele começou a chorar e queria ver a família. Disse que ia morrer. E a enfermeira tentou acalmá-lo, mas ele queria ver o filho, e o filho não podia entrar. E ele começou a chorar. E, assim, eu nunca vi homem chorando como ele chorou. E eu falei ‘nossa’, fiquei abismada. Mas assim, o medo dele, né? O medo dele morrer. Não era nem o medo de se internar. Era o medo de morrer. Você interna e não vê mais ninguém.”

São Paulo é o epicentro da doença no País. Desde o início da pandemia, foram confirmados 107.142 casos no estado e 7.532 mortes.

ADRIANA MATIUZO/EMILIO RIBAS
Para Andréa César Ramos, que é encarregada da coordenação da equipe de limpeza do hospital e contraiu a covid-19 o momento está “fora de controle”

De 1.300 funcionários do Emilio Ribas, 60 estão afastados devido à contaminação pelo novo coronavírus. Na equipe da limpeza, dos 80 funcionários, três estão com a doença. Comum à fala das três funcionárias entrevistadas pela reportagem está o cuidado com a higienização durante e ao fim do expediente. Elas não se permitem ‘baixar a guarda’.

Segundo o HuffPost apurou, ainda não há uma estatística ampla e nacional que contabilize um número de contaminação ou de morte dos profissionais de limpeza hospitalar, assim como há com profissionais da saúde.

‘Eu peguei a doença’

“O contato mais direto que eu tive com a covid-19 não foi só sentir o aumento da demanda de trabalho no dia a dia. Foi porque eu peguei a doença”, conta Andréa César Ramos, 42, encarregada da coordenação da equipe de limpeza do hospital, e que tem livre acesso a todas as áreas do Emilio Ribas. “Eu não sei dizer onde foi [que contraiu a doença]. Hoje é muito irrelevante, você pode pegar no transporte público ou até mesmo no mercado. E não é algo muito fácil de se falar porque eu passei por momentos muito difíceis”, conta.

Em abril, Andrea, começou a se sentir mal durante o trabalho e fez o teste. Após dar positivo, ela diz ter recebido toda a assistência do hospital e da empresa terceirizada mas, em seguida, passou por 17 dias que não serão esquecidos. “Eu tive todos os sintomas. Eu não sentia gosto, eu não sentia cheiro. Eu fiquei sem conseguir comer, sem beber, perdi 5 quilos. Mas o momento mais difícil para mim foi ficar isolada, longe da minha filha”, conta.

Eu acho que a gente ficou mais valorizada agora. Porque é uma profissão que a maioria das pessoas não dá valorIvanice dos Anjos do Carmo, 51 anos, responsável pela limpeza do pronto-socorro do Hospital Emilio Ribas

ADRIANA MATIUZO/EMILIO RIBAS
Ivanice dos Anjos do Carmo, 51, acredita que é preciso “perder o medo” e que a pandemia deu valor à sua profissão.

Ela é mãe de quatro meninas. As mais velhas, casadas, moram em outro bairro. Mas a coordenadora da limpeza mora com suas duas filhas mais novas. Uma de 22 anos e outra de 7. “Foi um momento muito difícil para mim. Eu não pude ter contato nenhum com ela [a mais nova] por conta da doença, fiquei isolada em casa, no meu quarto – só tive contato com a de 22 que era a que me levava comida”, lembra. “A minha sorte é que eu não precisei ficar internada.”

Andréa integra o volume de histórias que espalham esperança diante do avanço assustador da doença no estado e no País. “Eu tinha medo de agravar o meu quadro, de eu vir a faltar para a minha filha mais nova, ou até mesmo contaminar a minha família, porque eu sou mãe solteira. Eu tive muito medo, mas graças a Deus eu consegui. Fiz todos os processos de isolamento para não contaminar ninguém. Depois veio uma sensação de alívio. Eu abracei minhas filhas, chorei muito. Elas choraram muito comigo”, lembra.

E nesse momento, sua filha fez um desabafo. “Ela me disse: ‘Eu via a boca da senhora sem sangue, seus olhos brancos, de verdade. Eu descia para a sala e quando elas [as irmãs] perguntavam para mim ‘como a mãe tá?‘, eu dizia que achava que você não ia resistir’”. Mas na minha frente ela era forte, sabe? Ela falava ‘Vamos, vamos! Vamos levantar, tomar um café’. Ela me cobrava de tomar sopa, ficava brava”, conta Andréa, ao se emocionar durante entrevista.

Recuperada, Andréa, que trabalha na área hospitalar há 15 anos, voltou ao trabalho. “Eu passei pelo H1N1, aquelas outras gripes que a gente precisou de mais cuidado no passado. Mas esta está sendo fora do normal, do esperado. O momento está fora de controle”, diz. ”É preciso muita empatia. No momento não é possível falar que algo ‘tranquilizou’. Quando a gente liga a televisão a gente vê mil mortos por dia… E a gente está tentando vencer. Ainda não chegamos lá. Ainda está muito perigoso. Ainda existe muito trabalho pela frente, mas nós vamos conseguir”, diz, otimista.

O Brasil já é o quarto país com mais mortos pelo novo coronavírus – 28.834, atrás apenas dos Estados Unidos, Reino Unido e Itália. Em casos confirmados, o Brasil só perde para os Estados Unidos. Já são quase 500 mil.

“Hoje eu estou bem, mas vendo pessoas que ficaram como eu fiquei ou até pior… Porque aqui tem, né? E a gente vê muito esses casos”, diz. “E chegar no final do plantão e saber que você participou de alguma forma, ainda que invisível – porque esse é um trabalho que muitos não reconhecem –, mas que você participou daquele momento da vida daquela pessoa de alguma forma. Você sabe que o seu trabalho é fundamental. Pra mim é muito gratificante.”

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