A possibilidade de que um candidato de “fora do sistema” conseguisse chegar à Casa Rosada não era levada a sério pela maioria dos analistas
Por Paulo Kliass, compartilhado de Jornal GGN
A vitória e Javier Millei no segundo turno das eleições presidenciais da Argentina causou grande surpresa para quem imaginava que aquele país ainda contasse com um nível mais amadurecido de suas instituições políticas e partidárias. A ideia é que essa característica seria forte suficiente a ponto de impedir que um arrivista sem tradição na vida política local tivesse chance na disputa. Apesar de toda história recente de elevada instabilidade econômica e social verificada por ali, a possibilidade de que um candidato de “fora do sistema” conseguisse chegar à Casa Rosada não era levada muito a sério pela maioria dos analistas políticos.
No entanto, a Argentina veio se somar a um conjunto importante de países cujas populações terminaram por optar pela via da extrema direita como busca de soluções para suas crises. A ironia da saga histórica sul americana quis que o fôlego recuperado com a derrota de Bolsonaro em outubro passado fosse relativamente curto. Antes mesmo de Lula haver completado o primeiro ano de seu terceiro mandato, um entusiasta do genocida torna-se presidente da nação vizinha. A torcida e o apoio daquele que perdeu por aqui foram explícitos e a presença de membros de sua família na campanha de Milei foram fatores importantes para definir o resultado.
Apelidado pelos grandes meios de comunicação como sendo um “anarco liberal” ou “anarco capitalista”, o candidato se apresentava como alguém contra todo o sistema político, além de se revelar um profundo antiperonista e um autodeclarado direitista contra qualquer projeto de esquerda. Qualquer semelhança com a estratégia de Bolsonaro utilizada na campanha de 2018 não é mera coincidência.
Milei: da campanha ao governo.
Ao criar a persona que se tornou Presidente da República, Milei adotou um tom completamente diferente e inovador para a realidade das disputas eleitorais naquele país ocorridas até então. Para além dos apelos para suas relações com o espírito de seu cão morto, o fato é que ele se posicionou com propostas bastante ousadas durante a corrida presidencial. Em especial no campo da economia, onde ele procurou angariar diferentes apoios dentre todos os tipos de descontentes com a crise que atravessa a Argentina há décadas. Frente à enorme insatisfação do eleitorado com a recorrente incapacidade do sistema político tradicional em apresentar soluções efetivas para a dimensão econômica da instabilidade geral, Milei apelou para propostas carregadas de forte simbolismo no imaginário popular.
As respostas simplistas costumam ter grande apelo. Inflação crônica e elevada? Desvalorização cambial aguda e com efeitos negativos sobre o nível de vida da maioria da população? Tendo em vista o histórico de insucessos desde a década de 1980 para lidar com os temas, Milei saca da manga da camisa as suas soluções milagrosas: dolarizar oficialmente a economia argentina e acabar com o Banco Central. Desemprego elevado e internacionalização elevada da economia no país? Pois então Milei avança ainda mais e propõe a saída do Mercosul e dos BRICS, além de sugerir a ruptura de relações econômicas com o Brasil e a China.
Para compreender o complexo quadro que vive a Argentina, é importante lembrarmos que o candidato à sucessão de Alberto Fernandez era justamente o seu Ministro da Fazenda, Sérgio Massa. Ora, frente a um processo profundo de crise econômica e social, é compreensível que uma pessoa ocupando tal posto, e ainda mais identificado com as políticas públicas que não conseguiram atenuar os problemas crônicos, encontre enormes dificuldades para angariar a preferência junto ao eleitorado. Não foi suficiente apenas levantar o espantalho do anti-Milei para convencer a população a chancelar mais uma vez o continuísmo.
Crise permanente e candidato difícil de carregar.
Ao contrário do Brasil, a Argentina não conseguiu resolver seu grave problema do endividamento externo e da instabilidade que isso provoca há muito tempo em seu Balanço de Pagamentos. As dificuldades persistentes em cumprir com as pesadas obrigações da dívida em moeda estrangeira trazem sempre a figura da “ajuda” do Fundo Monetário Internacional (FMI), como ocorreu recentemente. Os pacotes do organismo multilateral costumam vir acompanhados de contrapartidas que aprofundam ainda mais a crise. Em tais condições, as ideias de Milei aparecem como verdadeiras panaceias com elevada capacidade de fantasiar e iludir as mentes e espíritos tão desgastados com as fórmulas de fracasso praticadas até agora.
A dolarização oficial da economia pressupõe a extinção do peso, moeda nacional. Assim, o caminho seria mais ou menos aquele trilhado pelo Equador em 2000, quando aquele país optou pela eliminação do sucre e decidiu pela adoção do dólar norte-americano como moeda no país. A proposta para o caso argentina conta com ares de demagogia e se reforça pela profunda instabilidade do peso face às sistemáticas desvalorizações frente à moeda norte-americana. Ao abrir mão da própria moeda, o país estaria também abdicando unilateralmente se sua soberania monetária e dificultando ainda mais os caminhos para algum plano de estabilização do peso e de medidas para buscar o combate à inflação.
A proposta de extinção do Banco Central da Argentina (BCA) parece trilhar o mesmo caminho. Em sua sanha liberaloide contra tudo o que faça qualquer alusão ao Estado, Milei lança mão de outra ideia que joga com alguma simpatia no imaginário popular. O BCA é identificado como responsável pelos elevados níveis das taxas de juros e como sendo também culpado pela crise geral da economia argentina. Mas a sua eliminação não deve contribuir para alguma solução. Aliás, muito pelo contrário. Mesmo na hipótese absurdo de eventual dolarização, o banco central também cumpre uma função fundamental na dinâmica da economia. Ele é o órgão regulador e fiscalizador do sistema bancário e financeiro. A extinção do mesmo deve liberar os grandes conglomerados do oligopólio privado e estrangeiro de bancos operarem sem nenhum tipo de controle ou regulamentação.
Milei: extrema direita entre doutrinarismo e pragmatismo.
As primeiras notícias da composição do futuro governo dão conta das dificuldades que o presidente eleito vai encontrar caso insista em manter as promessas de campanha. Um dos principais ideólogos desse plano ultra ortodoxo e liberal, o economista Emilio Ocampo, já está praticamente descartado de assumir cargo relevante.
Os principais parceiros comerciais da Argentina são, atualmente, a China e o Brasil. Ora, o discurso fortemente ideológico de Milei contra esses dois países deverá se revelar como uma política capaz de provocar grandes prejuízos à economia do país que necessita, dentre outros aspectos, contar com saldos importantes em sua Balança Comercial. A intenção de apostar todas as fichas em um eventual retorno de Trump ao governo norte-americano nas eleições de novembro do ano que vem parece uma jogada de alto risco e grande incerteza. Ao que tudo indica, esta estratégia de política externa também deverá ser mitigada por alguma dose de realismo e pragmatismo. Por mais que a maior parte das elites argentinas tenham colaborado para derrota de Massa, seus interesses econômicos devem contar mais do que se aventurar por caminhos orientados exclusivamente por bravatas doutrinárias.
Para conseguir governar com alguma margem favorável no Congresso, Milei necessita atender às demandas de setores igualmente conservadores, mas que se articularam em torno da candidatura derrotada de Patrícia Bullrich no primeiro turno. São grupos políticos ligados ao ex presidente Maurício Macri e que sugerem mais prudência na ousadia extremada do laboratório de experimentação neoliberal apresentado durante a campanha eleitoral.
Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.