No Rio de Janeiro, quase nada fica escondido. A rua reflete a cidade. Neste outono de 2022, a agonia, o desamparo e a miséria saltam aos olhos, depois de três anos de incompetência e insensibilidade social de Bolsonaro e seu bando e dois anos de uma terrível pandemia, agravada pelo desgoverno negacionista do capitão.
Por Oscar Valporto, compartilhado de Projeto Colabora
Saltam aos olhos, nas ruas do Rio, os cariocas que, à noite, dormem nas calçadas, sob as marquises ou qualquer outra cobertura, e perambulam em busca do mínimo para sobrevivência durante o dia. Dois anos de covid-19, três anos da demofobia de Guedes e sua turma: as ruas do Rio estão repletas de idosos pedindo remédios ou comida; de adolescentes e crianças vendendo balas e bombons; de pais e mães rodando com seus filhos pequenos por ônibus e vagões em busca de ajuda para a crise familiar escancarada.
É gente que passa o dia inteiro na rua: que cochila nas praças entre uma jornada e outra em busca de qualquer coisa para chegar ao fim do dia; que se alimenta com as sobras de bares, restaurantes e mercados ou das quentinhas distribuídas por organizações de assistência que tentam multiplicar esforços para minimizar essa agonia. Em apenas um mês (de 12 de abril a 12 de maio), só o Projeto RUAS (Ronda Urbana de Amigos Solidários) distribuiu 1014 refeições – além de sanduíches, água e máscaras – a pessoas em situação de rua nas calçadas e praças de Copacabana, Botafogo, Largo do Machado, Glória e Tijuca.
Essa legião é chamada de pessoas em situação de rua porque, na visão das organizações assistenciais, vivem uma situação temporária de falta de moradia. São maioria mesmo, principalmente após dois anos de pandemia e três anos de Bolsonaro e Guedes. Há famílias despejadas de suas residências; há trabalhadores – ambulantes, catadores de recicláveis, entregadores, carregadores, pedreiros, prestadores de pequenos serviços – que moram numa periferia muito longe de sua clientela (da Zona Sul ou do Centro do Rio) e optam para dormir na rua porque não têm como pagar o transporte para casa. Mas, sob as marquises, também há moradores realmente da rua, que já perderam conexão com qualquer referência de moradia, de qualquer ligação familiar.
Os sobreviventes da rua, nesta época de agonia, saltam aos olhos dos outros cariocas, mais ou menos privilegiados, mas permanecem invisíveis nos números oficiais. O censo demográfico do IBGE, focado nos domicílios, não conta a população em situação de rua. No Rio, o último censo da Secretaria Municipal de Assistência Social contabilizou apenas 7.272 pessoas nessa condição – o que parece pouco para quem anda pelo Centro ou por Copacabana, os bairros com maior concentração de população em situação de rua, de acordo com o próprio levantamento da prefeitura carioca. Esse drama – visível ou invisível – repete-se nas outras metrópoles brasileiras: a crescente e andarilha cracolândia da capital paulista é o exemplo mais trágico.
Mas, no Rio de Janeiro, a saída da crise também passa pela rua. Com a queda nos números da pandemia, a lenta recuperação econômica mostra sua cara nos bares que reocupam as calçadas, na volta das rodas de semana, no comércio intenso na areia das praias lotadas, na multiplicação de feiras de roupas e artesanatos, nos novos negócios adaptados aos tempos de crise. No cenário do inverno carioca, foram definitivamente incorporados veículos ou bancas para a venda de marmitas, para trabalhadores que não tem verba nem para restaurante a quilo. E também eles viram parte da paisagem, almoçando em suas marmitas nas calçadas e nas praças. Consta da estatística oficial: segundo dados do IBGE, o PIB brasileiro cresceu 1% no primeiro trimestre, impulsionado pelo setor de serviços.
Economista e apaixonado pelo Rio de Janeiro, o professor Carlos Lessa (1936/2020) escreveu no seu “Rio de todos os Brasis” que a capacidade do carioca de produzir uma “cultura popular extrovertida” é sua qualidade mais característica. “A extroversão popular no Rio responde historicamente à disponibilidade de espaços naturais abertos (a praia, a floresta, etc…). à exiguidade e esqualidez das moradias populares, à tradição de conquistar a subsistência em ofícios de rua, à instituição do compadrio e do cultivo de redes de vizinhança, à amenidade do clima tropical. Tudo isso estimula o hábito de estar fora de casa e considerar ‘o fora’ uma continuidade do lar”.
A rua é a cara do Rio; a recuperação da cidade, como sua resistência, passa pelas ruas, pelos espaços abertos, por suas encruzilhadas como lembra sempre o professor e historiador Luiz Antônio Simas. Mesmo em tempos sombrios, em que o ‘fora’ não parece tão acolhedor, o carioca – mesmo aquele em situação de rua – tem uma intensa sintonia com a rua, que pode ser vista em uma pequena exposição no Centro Cultural Hélio Oiticica, como fotografias feitas por 35 pessoas, que já passaram por abrigos da prefeitura. A rua é o cenário dominante e, quase sempre, poético das fotos.