As sagradas escrituras da Universal

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Há 30 anos, livro do bispo Macedo destilou preconceito contra umbanda e candomblé para tornar igreja conhecida

Evangélicos oram no templo de Salomão, da Igreja Universal, em São Paulo, em 2014 (Foto Adriana Spaca / Brazil Photo Press)
Evangélicos oram no maior templo da Igreja Universal, em São Paulo, em 2014 (Foto Adriana Spaca / Brazil Photo Press)

Tema obrigatório nas últimas eleições no Estado do Rio, a Igreja Universal do Reino de Deus, do bispo licenciado Marcelo Crivella (o mais votado no primeiro turno da disputa para a prefeitura carioca), ganhou suas escrituras sagradas quase 30 anos atrás – e com furiosas referências a religiões alheias. Lançado em 1987, “Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?”, escrito pelo líder da igreja, Edir Macedo, estabelece os preceitos da Universal, num libelo de brutal preconceito contra as religiões afro-brasileiras.

Os maiores médicos do Rio de Janeiro já chegaram à conclusão de que o espiritismo é a maior fábrica de loucos que exist

Bispo Macedo
No livro Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?

O tratado intolerante é a semente do medo que, em plena temporada eleitoral, atormenta os devotos da umbanda, do candomblé e do espiritismo – e explica boa parte da rejeição a Crivella. O candidato até assinou, na campanha do primeiro turno, carta-compromisso contra a discriminação religiosa (entre outros itens) e, em entrevistas, jura que a Universal não participará de seu eventual governo. Tudo insuficiente para exorcizar o fantasma gerado pelo livro de Macedo – que, aliás, segue à venda.
Ninguém que se ocupa dos caminhos da fé por aqui ficou indiferente à obra. Comercializada em bancas de jornal a preços atraentes, transformou-se num best-seller instantâneo, vendendo impressionantes três milhões de exemplares. Muita gente, aliás, comprou achando que encontraria escritos sobre candomblé e umbanda – como a dedicatória “a todos os pais-de-santo e mães-de-santo da nossa pátria”, logo no início, insinua. Era bem o contrário.
“Os exus, os pretos-velhos, os espíritos das crianças, os caboclos ou os ‘santos’ são espíritos malignos sem corpo, ansiando por achar um meio para se expressarem nesse mundo, não podendo fazê-lo antes de possuírem um corpo”, escreve Macedo, à página 16, logo depois da imagem de um convite “para uma cerimônia de candomblé”, emoldurado por um tridente. “Existem casos em que, por força das circunstâncias, eles chegam a possuir animais para cumprir seus intentos perversos. (…) Na nossa igreja, temos centenas de pais-de-santo e mães-de-santo, que foram enganados por espíritos malignos durante anos a fio”.

O ritual do descarrego tem semelhanças com os de umbanda. Ele usa códigos dos cultos de umbanda para demonizá-los

Luis Antonio Simas
Historiador

Mais adiante, a aposta do autor na discriminação torna-se mais pesada. À página 25, a foto de uma pombagira incorporada ganha legenda pregando que a entidade “causa, em muitas mulheres, câncer de útero, de ovário, a frigidez sexual e outras doenças”. E assim continua por todas as 157 páginas da obra, em pretensas referências científicas (“Os maiores médicos do Rio de Janeiro já chegaram à conclusão de que o espiritismo é a maior fábrica de loucos que existe”, “Os demônios também se alojam no sistema nervoso do homem, daí poderem dominá-lo completamente”), e ameaças à vida (“… todas as pessoas que vivem querendo morrer são endemoninhadas”), até mergulhar em metáfora apocalíptica: “Essa religião, tão popular no Brasil, é uma fábrica de loucos e uma agência onde se tira o passaporte para a morte e uma viagem para o inferno”.
Argumentos tão patéticos podem parecer inofensivos a mentes serenas – mas tiveram efeito devastador em boa parte da população. “Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?” serviu de plataforma à popularização da Universal, materializando o milagre da fama e da fortuna de seu inventor, Edir Macedo, e dos parceiros no comando da aventura – entre eles, o sobrinho, senador e postulante a prefeito do Rio, Marcelo Crivella.
O tratado de terror discriminatório serviu de alicerce a maior igreja neopentecostal do Brasil, atualmente espalhada por todos os continentes, que inspira seus ritos justamente nos protocolos comuns a terreiros da fé afro-brasileira. “O ritual do descarrego tem semelhanças com os de umbanda. Ele usa códigos dos cultos de umbanda para demonizá-los”, atesta o escritor e historiador Luiz Antonio Simas, especialista no assunto. “O que Macedo faz é ressignificar os rituais, adotando a prática ritualística no ambiente cristão. A própria expressão descarrego é do universo da umbanda”, observa.
De tão pesado, o livro teve a venda proibida no Brasil pela juíza Nair Cristina de Castro, da 4ª Vara da Justiça Federal da Bahia, em novembro de 2005. Na sentença, ela escreve que a obra “se mostra abusiva e atentatória ao direito fundamental, não apenas dos adeptos das religiões originárias da África e aqui absorvidas, culturalmente, como afro-brasileiras, mas da sociedade, no seu genérico prisma, que tem direito à convivência harmônica e fraterna, a despeito de toda a sua diversidade (de cores, raças, etnias e credos)”. Durou cerca de um ano, e o Tribunal Regional Federal da 1ª Região liberou a obra, argumentando com a liberdade de expressão.




Os templos foram instalados nas periferias, onde o Estado é uma abstração. Os prédios da igreja são espaçosos e refrigerados, o oposto, em termos de conforto das casas dos fiéis

Rosiane Rodrigues
Escritora

Simas confirma que “Orixás, caboclos e guias” foi o “livro basilar” da Universal. “No lançamento, ninguém sabia quem era Edir Macedo”. O líder da igreja de Crivella, na verdade, baseou-se em algo bem mais antigo para compor suas escrituras. “No imaginário ocidental, os missionários europeus que chegaram à África no século XIX, trabalharam com a ideia de bem e mal presente na dicotomia judaico-cristã. A ideia de Exu como demônio foi inventada naquele momento”, ensina o pesquisador. “A catequese jesuítica-católica defendia a adesão como forma de fugir do diabo”.

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Templo da Igreja Universal do Reino de Deus em São Paulo, que custou US$ 297 milhões (Foto Miguel Schincariol / AFP / 2014)

A escritora Rosiane Rodrigues, também pesquisadora das religiões de matriz africana, enxerga, na releitura da Universal, referências ao Reavivamento da Rua Azusa, reunião pentecostal liderada pelo pregador afro-americano William Joseph Seymour, que durou de 1906 a 1915, em Los Angeles (EUA). O processo se desenvolveu em cultos de adoração e na mistura interracial. Caiu como uma bomba no establishment religioso de então – teólogos cristãos consideraram o comportamento escandaloso e pouco ortodoxo. Hoje, o avivamento é avaliado pelos historiadores como principal fator para a propagação do pentecostalismo no século XX.
“A Universal faz uma releitura desse processo, algo estratégico para o projeto de crescimento”, relata Rosiane. “Os templos foram instalados nas periferias, onde o Estado é uma abstração. Os prédios da igreja são espaçosos e refrigerados, o oposto, em termos de conforto das casas dos fiéis”. Ela conta que até a estrutura física sofre manipulação em nome dos rituais. “A temperatura do ar condicionado é regulada para que, no momento do exorcismo, o ambiente fique mais quente, faça mais calor. Para potencializar o êxtase religioso”.
Desde a catequese colonizadora nas Américas e na África, ninguém jamais havia sistematizado a demonização da umbanda e do candomblé até o best-seller de Edir Macedo. “Do ponto de vista sociológico, é interessante notar que, mesmo com a estratégia da Universal, as práticas magicorreligiosas não perderam o protagonismo nos cultos”, sustenta a pesquisadora. “A incorporação do Espírito Santo é exatamente igual à dos orixás no candomblé”.
Como um parasita da fé, a igreja ganhou o mundo, em especial a África, montada basicamente na mesma estratégia: o demônio etc. Outras denominações neopentecostais seguiram o mesmo caminho até que, em fevereiro de 2013, todas foram proscritas em Angola, ex-colônia portuguesa, por “propaganda enganosa” e “exploração das fragilidades do povo”. O motivo principal foi a morte de 16 pessoas, por esmagamento e asfixia, no culto “O dia do fim”, que reuniu 150 mil fiéis da Universal em Luanda, em 31 de dezembro de 2012. Em março de 2013, a igreja de Edir Macedo recebeu sozinha a autorização para voltar, criando um monopólio evangélico no país.
O tio de Crivella, aliás, não parou no primeiro best-seller. Escreveu dezenas de livros com temática espiritual, ultrapassando, no conjunto da obra, mais de 10 milhões de exemplares vendidos. A trilogia autobiográfica “Nada a perder” conta a última temporada do bispo na cadeia (por lavagem de dinheiro, formação de quadrilha e evasão de divisas, em 2009) e anuncia outra etapa na trajetória da Universal: o poder da igreja dentro dos presídios. “É a era dos traficantes evangélicos”, explica Rosiane. “A estratégia dos pastores absolve o ser humano e atribui o crime ao demônio, que, no discurso deles, tem nome: Exu, o tranca-rua etc”.
O novo capítulo instala o inferno na vida de pais e mães de santos das comunidades populares cariocas, perseguidas pelos bandidos convertidos e expulsas sumariamente. “Como um traficante do Lins disse a uma mãe de santo: você não pode mais ficar aqui, porque o morro é de Jesus e você é do diabo”, relata a pesquisadora.
Tudo questão de mercado, conclui Luiz Antonio Simas. “A estratégia foi criada diante da percepção de que o rebanho estava receptivo. O fundamento teológico da salvação passava pela quebra de qualquer símbolo, pela ideia do mal, da satanização. Assim foi feito”, descreve ele.
Uma história que, como a literatura prova, não é de Deus.

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