Por Igor Tadeu Camilo Rocha, publicado em Justificando –
A história é sobre como a deusa Estupidez, destronada pelo avanço da ciência, tentou retomar sua antiga glória com ajuda do Fanatismo, Raiva, Inveja, Hipocrisia e Superstição
Era o ano de 1785, em Portugal. Fazia poucos anos da queda do Marquês de Pombal, em 1777. Ainda se via uma onda de condenações pela Inquisição portuguesa, por processos datados de 1778 e anos posteriores, envolvendo vários estudantes e professores da Universidade de Coimbra. Dentre eles, o lente José Anastácio da Cunha e o dicionarista Antônio de Morais e Silva são exemplos mais famosos. Mas no dito ano, um texto explosivo circulou nos corredores da mencionada universidade, e a posteridade atribuiu sua autoria a um dos estudantes condenados pela Inquisição: tratava-se do Reino da Estupidez, poema de Francisco de Mello Franco [1].
Mello Franco nasceu em Paracatu, Minas Gerais, em 1757. Antes de ir para Portugal, fez os preparatórios para iniciar seus estudos na Universidade de Coimbra no Seminário de São Joaquim, no Rio de Janeiro. Em Coimbra, teve problemas com a Inquisição. Por ser herege, naturalista, dogmático e por negar o sacramento do matrimônio, foi condenado pelo Santo Ofício e saiu em auto de fé em 26 de agosto de 1781 [2]. Foi condenado à confiscação de bens, uso do sambenito e quatro anos de prisão, dos quais ele cumpriu um. Em 1782, voltou a Coimbra, graças a visto régio assinado pela rainha d. Maria I, formando-se em 1786 em Medicina. Depois disso, tornou-se médico honorário da câmara de d. João VI, além de sócio da Academia Real das Ciências de Lisboa. Mello Franco tornou-se uma figura chave do Iluminismo em Portugal, no final do século XVIII [3]. Em 1817, voltou ao Brasil, teve uma vida com algumas atribulações e sucessos até falecer em Ubatuba, em 1823 [4].
Voltemos a 1785. O Reino da Estupidez, como disse, foi uma publicação anônima. O poema, que circulou entre os estudantes coimbrãos, é estruturado em 4 cantos, em forma de narrativa épico-cômica. A história é sobre como a protagonista, a deusa Estupidez, destronada do resto da Europa pelo avanço das ciências à época do Iluminismo, tentava retomar seus dias de glória. Para tanto, a deusa conta com a ajuda de seu fiel séquito, formado pelo Fanatismo, Raiva, Inveja, Hipocrisia e Superstição, personificados.
De início, a Estupidez encontra em Portugal, agora na época do reinado de d. Maria I, um lugar bem diferente daquele país de onde ela fora expulsa, então marcado pela modernização feita pelo Marquês de Pombal. Este aparece como “sol”, que trouxera luzes ao reino anteriormente de trevas, no poema. O clima de retorno à obscuridade em Portugal motiva a deusa e seu séquito a se instalarem naquele reino.
Na trama que levou a deusa Estupidez ao seu objetivo, Fanatismo e Superstição (principalmente nos Cantos III e IV) aproveitam da credulidade e excessos de religiosidade do povo e de autoridades em auxílio da deusa. A Inveja, por sua vez, aproveita-se de ressentimentos de alguns destronados pela modernidade, saudosos pelo passado. Usa também sua capacidade de fomentar intrigas em favor de sua deusa. Junto à Hipocrisia, ela conseguiu reduzir estudantes, professores e o reitor de Coimbra a escravos.
Ao fim, a Estupidez é recebida com toda pompa na Universidade de Coimbra. A deusa aproveitou-se de uma reação do obscurantismo, associado no poema ao reinado de d. Maria I, e restabeleceu sua posição sob aplausos e homenagens de todos, significando o triunfo do obscurantismo. A Universidade de Coimbra,reformada em 1772, era um símbolo importante da modernização pombalina.
Agora, a pergunta central desse texto: apesar dos 234 anos que nos separam do poema épico-cômico de Mello Franco, a narrativa crítica proposta por ele nos provoca, de alguma forma, a pensar nossa própria época? Quem chegou até aqui nesse texto, ou já leu o Reino da Estupidez (quem não leu, recomendo bastante, por ser uma leitura tão rápida quanto instigante), pode estar se indagando sobre semelhanças com nossas próprias percepções do Brasil atual.
Impossível saber o que Mello Franco pensaria sobre o Brasil de 2019. Talvez ele visse uma República da Estupidez? Posso apenas conjecturar. De toda forma, o objetivo desse texto é tomar alguns tópicos do poema e cruzar com alguns pontos que saltam aos nossos olhos, hoje. Os olhares dos espíritos livres do século das luzes sobre mazelas que viam pode nos servir a um exercício crítico, importante para entendermos e enfrentarmos os nossos problemas.
O ódio às ciências
Que mais da moda se cultivam hoje?
A bárbara geometria tão gabada
Que mil proposições, todas heréticas,
Aqui [na Universidade] faz ensinar publicamente,
Sabeis para que presta neste mundo?
A sua utilidade temos visto,”
Diga-o a Inquisição e mais não digo.
Oh, góticos estudos nunca ouvidos
Nos tempos, em que tanto florescia
(…)
Histórias Naturais, Foronomias,
Químicas, Anatomias, e outros nomes
Difíceis de reter, são as ciências
Que vieram trazer os estrangeiros.
Há coisa mais cruel, mais desumana,
Mais contrária à razão, que ver os médicos
Um cadáver humano espatifando,
Um corpo que habitou o Espírito Santo?
(Reino da Estupidez, Canto III, p. 76)
No trecho acima, o reitor, Principal Mendonça [5], já seduzido pelo séquito da Estupidez, sobretudo pela Hipocrisia e pela Superstição, discorre aos professores, lentes e alunos da Universidade de Coimbra. Diz o quanto seria justo restituir o lugar da Estupidez na universidade. Começa o argumento, como se vê, depreciando todas as ciências (geometria, história natural, química, foronomia – cinemática, no caso.) como “modas” ou heresias que eram ali ensinadas. De fato, desde o início do Canto I, a aversão à ciência observada naqueles tempos é um dos argumentos mais fortes com os quais o séquito convence a Estupidez a se instalar em Portugal.
No Brasil contemporâneo, as personagens do poema épico-cômico de Mello Franco encontrariam um terreno bem receptivo, nesse sentido, caso tivessem cruzado os séculos e o oceano Atlântico. Afinal, o ódio às ciências e à educação são demonstrados diariamente nessa ex-colônia americana de Portugal.
A começar que a negação à ciência compõe o núcleo ministerial do atual governo. Há um ministro de relações exteriores, Ernesto Araújo, que considera a crise climática – consenso científico, além de uma ameaça à existência da humanidade – apenas uma “conspiração globalista” ou “ideologia de mudança climática”, criada pela esquerda. Diz, endossando esse ponto, que o aumento da temperatura do planeta se deve a termostatos próximos ao asfalto.
Mas o ódio à ciência compõe uma agenda ainda maior, mais complexa, que auxiliaria ainda mais profundamente a receptividade brasileira à deusa Estupidez. Temos poucos cientistas – aproximadamente 700 para cada milhão de habitantes, enquanto centros do capitalismo, como Estados Unidos e União Europeia possuem, respectivamente, 3,9 mil e 3,2 mil; BRICS, como Rússia e China, têm aproximadamente 3,1 mil e 1,1 mil, respectivamente – e, mesmo assim, o ministro da educação que diz que “o Brasil tem doutor demais”. O mesmo ministro, justificando a asfixia financeira das universidades, atribuiu cortes de verba à “balbúrdia” – seja lá o que isso significa –. E esses cortes continuam, de maneira a inviabilizar o próprio funcionamento das universidades. Saliente-se que o investimento já é baixo – cerca de 1,27% do PIB, conforme dados do Banco Mundial, contra mais de 4% dos países que mais investem.
Juntamente a isso, centros de pesquisa sérios e renomados, como o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) são desqualificadas publicamente por ministros, do meio ambiente (sob a gestão do qual o desmatamento da Amazônia cresce a cada dia) e da cidadania. Por qual motivo? Por não dizerem, em suas pesquisas, aquilo que os ministros desejavam que fosse dito. O que seria mais receptivo à deusa protagonista do poema do que desqualificar resultados de pesquisas por eles não corresponderem a crenças prévias de quem os lê?
Não menos importante é lembrar que tudo isso se dá sob a forte influência intelectual e teórica de Olavo de Carvalho, ex-astrólogo e autoproclamado filósofo que, mesmo flertando com a curiosa teoria da Terra plana, possui poder para indicar ministros.
O ódio à universidade e à ciência sai dos ministérios e se alastra pela sociedade, haja vista a rede de difamações contra as universidades, espalhadas por grupos ligados à militância favorável ao atual presidente. Esse mesmo ódio ao saber também chega às escolas básicas, por meio do projeto Escola “sem” partido, que propõe uma doutrinação religiosa e ultraconservadora no lugar do pensamento crítico, que é chamado por seus sectários de “doutrinação”. A deusa Estupidez exultaria se visse a cena que aconteceu em Curitiba, quando a faixa com os dizeres “Em defesa da educação” foi arrancada de um prédio da Universidade Federal do Paraná, sob efusivos e histéricos aplausos. Professores e cientistas, assim, tornaram-se inimigos públicos da agenda política que está no poder. Então, em termos de ódio à ciência e ao progresso, Estupidez veria no Brasil de 2019 um lugar tão agradável a ela quanto ao Portugal pós-pombalino do poema, observado pelo iluminista Mello Franco.
Superstição e Fanatismo: “o presidente enviado por Deus”
No poema, o Fanatismo e a Superstição foram decisivos para que a deusa Estupidez decidisse restaurar sua glória em Portugal. No Canto I, ambas lamentam o quanto o avanço da “reta razão” às afastou “dos corações dos povos” (p.53-57). No Canto III, porém, ambos sectários da deusa conseguem escravizar o reitor através de diversos recursos, como forjarem uma revelação divina por meio de uma aparição sobrenatural, convencendo-o a homenagear a deusa na Universidade de Coimbra (p.75). O fato de logo depois dessa passagem o Principal Mendonça discursar contra a ciência não é fortuito. A aversão ao progresso e a afirmação do fanatismo e da superstição andam juntos, na percepção do autor iluminista.
A Estupidez e seus fiéis Fanatismo e Superstição também poderiam encontrar um ambiente receptivo no Brasil de 2019. “Deus acima de todos, Brasil acima de tudo” tornou-se o slogan presidencial dentro de um país laico, afinal. “O país é laico, mas eu sou cristão” foi a frase dita pelo presidente antes de indagar se não seria a hora de termos um ministro do Supremo Tribunal Federal evangélico. A indagação se deu num contexto em que se questionava a interpretação, pelo STF, de uma lei que pune discriminação, para que essa abrangesse crimes motivados por ódio relacionado a sexualidade e gênero, indo a razão jurídica e do Estado contra a crença do presidente de que diferenças dessa natureza seriam “pecados contra a fé”.
No mesmo governo, há uma ministra que declarou ter “mestrado bíblico”.Dessa mesma ministra, Damares Alves, ficaram famosas as delirantes pregações sobre personagens de animação supostamente homossexuais. Importante lembrar, ainda, que há deputados que declaram apoio ao Estado de Israel devido ao Apocalipse bíblico, e não às relações internacionais brasileiras – além, claro, de tratarem o moderno Estado fundado em 1946 como sendo o antigo, da narrativa bíblica.
Como alguns pesquisadores mostram, as raízes do conservadorismo religioso no Brasil são muito anteriores ao governo atual [6]. Todavia, vejo que esse governo deu um passo além. Tenho por hipótese que se trata de um desdobramento local de uma ideologia neoconservadora, surgida nos Estados Unidos nos anos 1930 e fortalecida a partir dos anos 1950. Em algum momento, aparentemente, suas linhas gerais – formadas por um anticomunismo, pela exaltação de uma “herança ocidental” calcada num capitalismo ultraliberal e num cristianismo ultraconservador, e também pela recusa e mesmo combate a instituições liberais, como imprensa e universidades, que mediam informações e produzem contrapontos a seus sistemas ideológicos [7] – foram “traduzidas” e formaram substrato ideológico para militâncias Brasil afora.
De toda forma, as falas dos personagens Fanatismo e Superstição, de Mello Franco, caberiam coerentemente na cena em que se viu um padre, na manifestação em 26/05/2019, dizendo que Jair Bolsonaro não era aquilo que queríamos, mas foi o que Deus deu. Esse apelo providencialista, na política ou em quaisquer assuntos mundanos, afinal, era considerado signo de atraso para os pensadores do Iluminismo. Esse episódio indica que ele nunca foi absolutamente superado.
Raiva e a Hipocrisia: as chaves do bolsonarismo cultural
Com a furiosa e vingadora Raiva,
Quanto lhe sofre a natural
Ligeiramente marcha.
— ” Oh fortes Deusas”,
Soluçando lhes diz, — “se tantas vezes
Em tais empresas já me socorrestes
Não podereis deixar também agora
De dar-me a mão em tão aflito caso.
A soberba Minerva injustamente
Depois de meus domínios ter roubado,
Domínios que na Europa tanto prezo,
Por cúmulo de mal em feias selvas
De ninguém habitadas, me desterra.”
O fero coração das negras Fúrias,
Por ser causa comum, enterneceram
Da mole Estupidez as brandas queixas.
— “Deixai, amiga irmã” — somente dizem –
—”Vinde também conosco, e vingaremos
Essa injustiça que te faz Minerva.”
(Reino da Estupidez, Canto I, p. 52-53)
No trecho acima, a Raiva, em meio ao séquito da deusa Estupidez, reclama da humilhação que a deusa sofrera pelo avanço do progresso. A Raiva verbaliza o desejo de revanche para o resto do séquito e para a própria deusa. Talvez, aqui, a similaridade do anti-iluminismo da época de Mello Franco com o bolsonarismo esteja na raiva visceral que os sustenta. Ali, o iluminista português via a reação das forças obscuras contra a modernidade. Aqui, vemos algo similar. A diferença é que, no século XVIII, o avanço era contra o crescimento das ciências e do racionalismo das Luzes, que tocava, inclusive, novos ideais de religião distantes daquilo que definiam por supersticioso ou fanático. Agora, além do mencionado ódio à educação, ciências e ao progresso em si, e que se dirige mesmo às formas de religião que não reproduzam seu ultraconservadorismo, acrescenta-se um ódio a populações vulneráveis, como indígenas, população LGBTI+ e outras minorias, mas, sobretudo, um ódio aos pobres.
O avanço mínimo de qualquer direito dessas populações, ao que tudo indica, é alvo do ódio que, canalizado pela figura de Jair Bolsonaro, tornou-se força política e constitui a base de um bolsonarismo cultural. A deusa Estupidez não criou nenhuma doutrina política no poema, nem o atual presidente brasileiro, na contemporaneidade. Ambos apenas canalizaram vícios, como a raiva de uma parte das pessoas aos progressos que observam.
Mas há um elemento nessa articulação, e nisso entra a outra deidade do séquito da Estupidez: a Hipocrisia. Boa parte desse ódio à modernidade do bolsonarismo cultural vem embalado num invólucro de clamor por liberdade contra o “politicamente correto”, que nada mais é que uma roupagem aparentemente modernizada de exibição de preconceitos, sobretudo ódio de classe. O ressentimento enquanto força política, certamente, foi algo que todos os que lutavam contra o avanço da Estupidez do século XXI subestimaram.
Mas há também uma justificativa de que tudo isso se dá pelo ódio contra a corrupção, o que é um terreno receptivo à Hipocrisia. Afinal, o discurso do bolsonarismo cultural contra a corrupção escolhe corruptos bons e ruins. Quem critica os “bons corruptos” (aos olhos de quem professa o bolsonarismo cultural) é, muitas vezes, alvo do ódio. “Ele é meu malvado favorito”, disse Marco Feliciano sobre o agora preso por corrupção Eduardo Cunha. O cartaz sobre este último e Michel Temer, visto em Brasília, em 2016, dizendo “corruptos, mas íntegros”, talvez já nos prenunciasse a chegada da Estupidez.
A Estupidez é recebida no Planalto
Talvez, Francisco de Mello Franco, 234 anos depois de seu Reino da Estupidez, pudesse ver todos os seus personagens do épico-cômico concluírem sua tarefa novamente. Em 2019, a deusa Estupidez colocaria a faixa presidencial no candidato eleito em 2018, sendo certamente festejada em jantares nababescos como os dados pelo presidente anterior às vésperas de aprovar a emenda constitucional que congela investimento público. Superstição e Fanatismo seriam bem recebidos na Esplanada dos Ministérios, defendendo dogmaticamente uma reforma da previdência como solução de todos os males, combatendo quixotescamente um comunismo inexiste, o “marxismo cultural” e o “globalismo”. A Inveja, a Hipocrisia e a Raiva teriam grande aceitação nas militâncias virtuais, possivelmente administrando grupos de WhatsApp. Seria a República da Estupidez.
O final do épico-cômico do século XVIII era uma ironia, intencionada a ridicularizar o reitor. O nosso caso, porém, parece trágico, sobretudo para quem o vive. Mas há uma interpretação otimista da obra. A Estupidez, no poema de Mello Franco, é tudo aquilo que caiu por sua própria decrepitude no momento em que as luzes avançaram. Seu retorno, ali, era uma vingança dos ressentidos em aceitar sua própria queda. Essa deusa foi vencida uma vez, e quando era mais forte. Por isso, poderá ser derrotada de novo.
Igor Tadeu Camilo Rocha é Doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais.