Por Guilherme Henrique e Cristiano Navarro, publicado pelo Le Monde –
Aos 81 anos, Raduan Nassar, paulista de Pindorama, norte do estado, possui uma trajetória de inquietude. Abandonou a Faculdade de Direito do Largo São Francisco no quinto ano, já fisgado pela literatura. A filosofia e o jornalismo foram casas temporárias de um homem que aprendeu, na adolescência, a gostar de palavras, então aluno de uma de suas irmãs, professoras de português. O pendor pela palavra desembocou em Lavoura arcaica (1975), Um copo de cólera (1978) e uma coletânea de contos publicados de maneira esparsa ao longo dos anos, incluindo Menina a caminho, O ventre seco, Hoje de madrugada e outros.
Uma cadeira de couro levemente reclinada junto à mesa ampla de madeira, alguns papéis rabiscados, canetas e lápis à vontade, e um computador às suas costas. A claridade da pequena sacada inunda a sala do apartamento, desenhando em duas poltronas os riscos alaranjados de um sol quase poente. A biblioteca, que se limita a uma única fiada de livros ocupando o vão central de um móvel alto, guarda poeira, alguns clássicos e vários dicionários. Hastes de trigo, com espigas secas de um amarelo típico, despontam de um vaso. “O trigo é da fazenda”, revela Raduan, e a nostalgia da vida na Lagoa do Sino ajuda a preencher o espaço, com a brisa fria de um dia de inverno.
Aos 81 anos, Raduan Nassar, paulista de Pindorama, norte do estado, possui uma trajetória de inquietude. Abandonou a Faculdade de Direito do Largo São Francisco no quinto ano, já fisgado pela literatura. A filosofia e o jornalismo foram casas temporárias de um homem que aprendeu, na adolescência, a gostar de palavras, então aluno de uma de suas irmãs, professora de português. O pendor pela palavra desembocou em Lavoura arcaica (1975), Um copo de cólera (1978) e uma coletânea de contos publicados de maneira esparsa ao longo dos anos, incluindo Menina a caminho, O ventre seco, Hoje de madrugada e outros. A obra completa, ganhadora do Prêmio Camões, em 2016, e semifinalista do Man Booker International, na Inglaterra, também no ano passado, está restrita a um livro de 316 páginas, mas repleta de sentidos e significados.
A atração pelo campo e o gosto pelo trabalho braçal, alheios durante os anos dedicados à linguagem, fizeram Raduan chegar a uma fazenda abandonada. A casca das palavras e a semântica deram lugar à observação atenta do solo, citado tantas vezes em sua obra. A Lagoa do Sino, adquirida em 1984, tornou-se a obsessão de um sujeito curioso por entender como sol, chuva, vento e a mão do homem podem conceber os mais variados grãos. Raduan viveu em sua fazenda, sobretudo, o convívio com gente simples e solidária.
Distante da lavoura e mais ainda da literatura, Raduan Nassar abandona sua reclusão para empreender uma terceira batalha: a defesa da democracia e as críticas ao governo em exercício, com o ânimo de alguém que não se furta de dizer o que pensa.
Diplomatique – Quais são os significados – para o Judiciário, a democracia e a esquerda – implícitos na condenação de Lula?
Raduan – O Judiciário, em vários níveis, propiciou antes o golpe, liquidando com o Estado democrático de direito. Ao crivo crítico, a condenação de Lula agora é uma aberração: recorrendo a convicções, indícios e outros artifícios, arrolando até mesmo um documento apócrifo como “prova”, mas prescindindo das tidas por robustas, a força-tarefa da Lava Jato está cansada de saber que Lula não é dono do tríplex do Guarujá, condenando-o assim mesmo por motivação estritamente política. Os juízes dessa operação terão de se haver um dia com a História.
Conhecendo Lula, como você acredita que deverá ser a resposta política dele: um embate público, pela imprensa, em comícios e atos, ou ele ficará restrito à articulação com companheiros de partido e focado na elaboração da defesa com seus advogados para o julgamento no TRF?
Embate político pela imprensa? Que imprensa? A dos telejornais diários, de certa mídia impressa? Certamente falará ao Brasil, cuidando ao mesmo tempo de sua defesa. São suas palavras: “Quem acha que é o fim do Lula vai quebrar a cara. Quem tem o direito de decretar o meu fim é o povo brasileiro”.
A possibilidade de inelegibilidade de Lula para as eleições de 2018 abre uma lacuna importante para a esquerda no pleito presidencial. Como interpretá-la?
Quem está sendo condenado? Um presidente que, em suas duas gestões, levou o Brasil a um indiscutível protagonismo internacional, contando com a contribuição do chanceler Celso Amorim e sua política externa ativa e altiva, jogada ao lixo pelo governo ilegítimo que está aí, um presidente que reverteu a situação de um Brasil que, em governos anteriores, ia de pires na mão junto ao FMI, tendo amealhado US$ 370 bilhões aos cofres públicos brasileiros, passando de lambuja ao FMI US$ 10 bilhões?
Quem está sendo condenado? Um presidente que, no campo da educação, criou dezessete universidades federais e uma na área de Itaipu – a Unila, com o objetivo de integrar os países latino-americanos –, enquanto Fernando Henrique Cardoso não criou uma única? Que criou 214 escolas técnicas, e FHC, somente onze, tendo inclusive extinguido por decreto a criação de novas, o que foi revogado por Lula assim que assumiu a Presidência?
Quem está sendo condenado? Um presidente que colocou em prática projetos extraordinários como o Luz para Todos, beneficiando o Nordeste, inclusive moradores do sertão, indo até a Amazônia, tirando 15 milhões de brasileiros da escuridão; o Bolsa Família que somente no estado de São Paulo chegou a mais de 5,7 milhões de pobres; o Minha Casa, Minha Vida; desencadeou com êxito a primeira etapa da transposição do Rio São Francisco; construiu 1,2 milhão de cisternas no semiárido nordestino, captando e armazenando a água de chuvas esporádicas?
Quem está sendo condenado? Um presidente que elevou o salário mínimo bem acima da inflação, mesmo se abaixo do merecido, que tirou 36 milhões de brasileiros da pobreza, sancionou a Lei Maria da Penha para proteção das mulheres, promulgou o Estatuto da Igualdade Racial contra a discriminação e pela igualdade de oportunidades, um presidente que, se recebia colarinhos-brancos, abriu as mesmas portas do Palácio à gente do povo, catadores de materiais recicláveis, profissionalizando-os e, compassivo, acolheu no mesmo Palácio os portadores de hanseníase, além de outras categorias?
Quem está sendo condenado? Um presidente que democratizou o acesso às universidades públicas, criando as cotas para estudantes das camadas desfavorecidas, brancos, negros e índios, e lançou o ProUni, propiciando que estudantes pobres cursassem universidades particulares, beneficiando-se de modo escalonado, de custo zero até 50%, dependendo da situação familiar?
Quem está sendo condenado? Um presidente que buscou com pleno êxito o petróleo no pré-sal, ao passo que o governo que está aí, ao entregar a Petrobras a estrangeiros, comete um crime contra o Brasil?
Quem está sendo condenado? Um presidente que, no plano geopolítico, estabeleceu relações especiais com países africanos, com os quais o Brasil tem uma dívida histórica e, sobretudo, associou o país à Rússia, Índia, China e África do Sul, os Brics, contrapondo-se ao mundo unipolar da superpotência que reivindica e decanta sua excepcionalidade?
É esse o presidente que está sendo condenado?
Raduan, durante um tempo você se dedicou à literatura; depois disso, foi agricultor na Fazenda Lagoa do Sino [no munícipio de Buri]. Agora, me parece, tem se dedicado à atividade política. Essa é a sua necessidade atual?
Em razão das circunstâncias atuais, com certeza. Enquanto Lula esteve no governo, fiz algumas restrições, como no artigo para a Folha de S.Paulo [“Cegueira e linchamento”, 21 ago. 2016]. Cegueira dos que se recusavam a enxergar suas realizações e linchamento pelo artificioso esquema de que foi vítima depois de ter conduzido, até então, o mais amplo processo de inclusão social que o Brasil conheceu em toda a sua história. Cometeu erros, alguns até graves, e isso deixei claro, mas, tudo somado e subtraído, o governo Lula foi alta e absolutamente positivo.
E fui a Brasília para falar contra o impeachment de Dilma, fiz um curto pronunciamento e disse que aqueles que apoiavam o impeachment seriam execrados. Curioso é que uma das pessoas que se empenharam pelo impeachment de Dilma foi Janaina Paschoal, uma doutora que no jornal de uma rádio no fim da tarde esgoelava: “É um dia histórico! É um dia histórico!”. E veja: dizem que a golpista está propondo agora o impeachment do homem que ela ajudou a colocar ilegitimamente no governo. Está sempre buscando holofotes, não vejo outra explicação. Miguel Reale Júnior, ministro do Exterior de Fernando Henrique Cardoso, também se empenhou como a doutora, mas teve a dignidade de se desligar recentemente do PSDB, e isso é sintomático. Talvez pelas ambiguidades, para dizer o mínimo, do tucanato.
Essa conjuntura é o que te move a esse posicionamento político, então?
É do que não me furto, porque é um escárnio o que está acontecendo no Brasil.
Augusto Massi, professor de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo (USP), disse que você está vivendo um momento de rejuvenescimento, por estar aparecendo mais, se pronunciando publicamente. Você concorda?
Claro que ele disse metaforicamente. Seja como for, não abro mão de manter minhas posições políticas, que vêm desde a adolescência. Com todas as críticas que podem ser feitas à esquerda, penso que suas novas propostas rumo a uma nova sociedade seriam o melhor caminho, diante de um mundo tão desigual.
Como você tem avaliado a atuação do Supremo Tribunal Federal?
Acho que nós, brasileiros, estamos assistindo a um protagonismo do Judiciário, que assumiu o poder no país, mas superlativamente condenável, ressalvada uma minoria. Rasgaram a Constituição, é um casuísmo atrás do outro, inclusive na Operação Lava Jato. Quando barrado para assumir a Casa Civil no governo de Dilma Rousseff, Lula chegou a dizer que o STF estava acovardado.
Sendo réu na Corte, como esse Supremo não impediu que Eduardo Cunha, presidente da Assembleia Legislativa, instaurasse o processo de impeachment? Os ministros não se detiveram na tipificação das chamadas pedaladas fiscais. Um Supremo politizado, como de resto o Ministério Público. É preciso lembrar que, segundo a Constituição, ninguém está acima da lei, inclusive a magistratura.
Luiz Moniz Bandeira, historiador, cientista político e professor, que vive há anos na Alemanha, não deixou por menos: “Com um Judiciário politizado, o país acabou”. Vale lembrar também o que o físico e professor emérito da Unicamp Rogério Cézar de Cerqueira Leite afirmou com todas as letras, referindo-se ao juiz de Curitiba: “É absolutamente parcial e está a serviço das classes dominantes”. Portanto, um juiz que decide politicamente.
Esse cenário de instabilidade não era vislumbrado há três, quatro anos. Você concorda?
Ninguém imaginava. Uma vez perguntei ao Lula por que ele não se candidatou após o primeiro mandato de Dilma, que por sinal tinha sido bem avaliado. Acho que nada disso teria acontecido caso ele tivesse se candidatado em 2014. Quanto a Dilma, fiz sua defesa lá em Brasília, mas é preciso admitir que ela é uma pessoa fechada, além de bloqueada no seu segundo mandato por um Congresso em boa parte rabo-preso e visceralmente ligado a Temer. Íntegra, mas talvez faltasse também a ela um pouco de maleabilidade.
Agora, tem isso: o juiz mais badalado pelas plutocracias brasileiras e estrangeiras, esse juiz será execrado, quem viver verá. Julga de modo escancaradamente seletivo e partidarizado, induzindo delatores a acusarem Lula. Repito: os procuradores da Lava Jato serão execrados, quem viver verá. Sua atuação contribuiu para a quebradeira de um número incalculável de empresas brasileiras privadas e também estatais, quando se sabe que o país necessita delas, ensejando que o capital estrangeiro as compre na bacia das almas. Destruiu nossa economia, desemprego nas alturas, causando, como disse Moniz Bandeira, um prejuízo maior que o suposto combate à corrupção.
Os procuradores da Lava Jato elegeram como modelo de sua atuação a Operação Mãos Limpas [Mani pulite] da Itália. E no que deu isso lá? O país perdeu riqueza, a economia despencou e a corrupção continuou, trazendo na bagagem Berlusconi…
Essa dificuldade das empresas brasileiras pode ser comparada com o modelo de privatização ocorrido na década de 1990?
Acredito que sim. O Brasil tem um potencial extraordinário. O que o governo de exceção vem fazendo é um tremendo retrocesso, que é mais do que sabido. Tratar o trabalhador segundo a reforma trabalhista já aprovada e sancionada, detonando a CLT [Consolidação das Leis do Trabalho], uma iniciativa de Getúlio Vargas? Onde eles estão com a cabeça? Para não falar dos esdrúxulos critérios propostos para a Previdência.
A crise política produziu uma sociedade dividida, parece que com medo um do outro.
De alguma forma, algumas pessoas estão se conscientizando, mas ainda há uma divisão maluca na nossa sociedade. E perigosa!
Você ainda acredita no espectro político dividido entre esquerda e direita?
A continuar nessa toada, caminhamos para o fascismo, a exemplo do que acontece na Europa, com Polônia, Hungria e sabe-se lá que países mais. Há por lá uma preocupação crescente com a possibilidade de uma guerra nuclear, o que não é impossível. A estupidez humana às vezes não tem limites. Segundo antropólogos, os símios, nossos ancestrais, eram de uma malandragem da pesada. Deixaram como herdeiro o neoliberalismo e sua insaciável sede de privilégios, o que vem desgraçando os pobres do mundo inteiro.
Voltando ao Brasil, como vê a participação popular e suas reivindicações?
Faltou um trabalho de base da esquerda no Brasil. E a participação popular ficou à mercê da mídia de direita, especialmente os telejornais diários.
Trabalho político de conscientização popular?
Exatamente. Quem insiste muito nisso é o Frei Betto.
Como é sua relação com o Movimento Sem Terra (MST)?
Tenho um bom relacionamento com João Pedro Stédile. Ele esteve na Fazenda Lagoa do Sino, está apoiando o Lula neste momento, ainda que o Lula não tenha feito o bastante pela reforma agrária.
E com o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST)?
Guilherme Boulos é uma liderança e tanto, que nos traz grande esperança.
Você se considera anarquista?
Vai ver que sou e ignorava. [Risos]
Plínio de Arruda Sampaio, por exemplo, dizia que não foi ele que ficou radical, mas que as pessoas foram mudando e ele ficou com os valores que já tinha.
É curioso como as pessoas viram a casaca. Muita gente que foi até da esquerda radical mudou de lado, foi para o tucanato.
Desses vira-casacas, você não quer falar do Roberto Freire?
Olha, ele até que teve uma atitude surpreendente, foi um dos primeiros a desembarcar do governo que está aí. Durante o evento do [Prêmio] Camões em São Paulo, fiz duras críticas ao governo ilegítimo de Temer, o que irritou Roberto Freire, então ministro da Cultura. Ele enfatizava o Estado democrático vigente, e tal e tal. Agora está fora desse governo que ele tanto defendeu na ocasião.
E como você avalia a possibilidade de Temer continuar até 2018?
Seria desastroso. Pior ainda uma eleição indireta, que seria o golpe dentro do golpe. Isso se não tentarem o parlamentarismo, que seria o fim da picada com o Congresso que está aí. E estou achando também que o Rodrigo Maia, golpista de primeira hora, está sendo mordido pela mosca azul, babando pela faixa presidencial. Nunca vi tanto disparate ao mesmo tempo.
Há uma crise política que envolve não só o Brasil, mas também outros países da América Latina. Você tem acompanhado essas turbulências?
O que aconteceu no Paraguai agora é regra no nosso continente. Estão tentando revirar tudo de novo, com a mão generosa de uma superpotência. Ainda não conseguiram pegar a Bolívia. O Evo Morales é admirável, tem um vice ótimo, o Álvaro García Linera. E também no Equador não conseguiram nada. Ainda.
Raduan, gostaríamos de falar um pouco sobre seu período como agricultor. Como foi seu contato com os outros produtores e a comunidade local?
A gente teve esse contato nos primeiros meses, a equipe tinha pouca experiência. Eu contava com um colaborador ótimo, muito jovem, o Newton Santos Corrêa, que tinha feito somente quatro anos de grupo escolar, mas com uma inteligência bem acima da média e um vocabulário preciso, apesar do acento típico da região. Trabalhamos juntos trinta anos. Hoje ele é um produtor rural muito bem-sucedido, plantando em área própria depois do expediente no campus Lagoa do Sino, onde se ocupa da parte agrícola, mas não só, é um esteio do campus universitário.
No primeiro plantio de feijão, recorremos à orientação de terceiros. Ouvíamos agrônomos, mas com opiniões divergentes. Como bom empirista, eu insistia com o Newton: temos de partir da nossa experiência. Às vezes a gente incorporava uma ou outra opinião, mas, de modo geral, era a nossa própria que norteava tudo. Foi muito difícil no início, tivemos prejuízo, porque pegamos uma fazenda abandonada que, sem modéstia, foi transformada numa fazenda-modelo. Segundo o reitor da Esalq [Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”], Antônio Roque Dechen, uma fazenda de cair o queixo.
Você pode explicar como foi o processo de doação da Lagoa do Sino para a UFSCar, firmado em 2011?
É uma história com tropeços. Em 2006, tentamos a doação para a Esalq. O reitor Dechen foi quatro vezes à fazenda para examinar. Pedi como contrapartida que eles construíssem mais 7.500 m², além dos 3.500 m² que já se encontravam construídos. Acabei esgotado depois de quase três anos insistindo na doação, porque eles não se decidiam. Até que parti para um ultimato quando soube que a negociação havia sido barrada pelo governo de São Paulo: recorri à USP. Somente depois de onze meses a reitoria da universidade respondeu que ia montar uma comissão para estudar o caso, mas nunca mais se manifestou. Aí um amigo me disse para conversar com o governo federal. A fazenda foi oferecida também à Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária]; nem deram bola. Seja como for, não entendo certo o Brasil.
Um dia, em 2010, recebi uma ligação da escritora Marilene Felinto, que conhecia havia muitos anos. Dizia que queria conversar comigo naquela mesma semana sobre a doação da fazenda. Respondi: “Pode vir, mas a fazenda hoje está à venda”. Quinze minutos depois, ela ligou de novo: “Raduan, podemos ir agora?”. Ela veio ao meu encontro acompanhada de Sérgio Alli, assessor na época do ministro da Casa Civil, Gilberto Carvalho. Eles me perguntaram então se poderiam levar a proposta de doação da fazenda ao governo federal, com o que concordei. Lula tomou conhecimento e aceitou a doação no ato, sem titubeio. E passou o caso ao então ministro da Educação, Fernando Haddad. Eu tinha pedido que a Esalq construísse 7.500 m². O Haddad assumiu o compromisso de construir pelo menos 22.500 m².
Atualmente o campus está funcionando parcialmente, mas agora estou tratando de um Termo de Repactuação, porque a UFSCar [Universidade Federal de São Carlos, à qual o campus Lagoa do Sino está vinculado] argumentou que não consegue concluir os 22.500 m² nem pode contar com liberação de verba do governo que está aí. Na repactuação, fiz uma exigência: que a UFSCar se comprometesse com o ensino público e gratuito, engajando-se contra qualquer tentativa de privatização do campus.
Você sente falta da vida na Lagoa do Sino?
Sinto, porque tinha ótimo convívio com o pessoal com quem trabalhava. Eram dez funcionários, formavam uma equipe de primeiríssima. Mas foi muito difícil no início, com prejuízo. Depois, quando acertamos a mão, disparou, com resultados muito bons.
Dá vontade de voltar?
Até certo ponto, pois a idade pesa, afinal sou um ancião, não tenho a mesma energia.
Raduan, como você viu a aprovação de cotas raciais na Universidade de São Paulo? Você gosta da ideia?
Claro que sim. Em todas as universidades federais há cotas. Existem muitos estudantes na Lagoa do Sino que foram beneficiados. Filhos de famílias humildes, inclusive de pequenos agricultores, fazendo universidade. Eles não tinham condições de se deslocar para uma cidade grande, pagar pensão etc. Penso ter dado, sem sombra de dúvida, o melhor destino à Lagoa do Sino.
Sobre o jornalismo, que você exerceu entre 1967 e 1973, como era sua atuação no Jornal do Bairro?
O jornal tinha claros posicionamentos, pautava também política internacional. Fizemos uma consulta para ver quantos leitores o assinariam e o resultado foi muito bom, mas um dos meus irmãos não concordou, justamente quando eu estava decidido a me dedicar exclusivamente ao jornalismo.
Aí você voltou para o Lavoura arcaica, certo?
Não vou dizer que voltei, porque não tinha quase nada. Tinha lá umas pequenas anotações quase esquecidas. Mas foi aí que peguei a coisa pra valer.
Sua obra, aliás, tem sido muito traduzida. Um copo de cólera foi semifinalista no Man Booker International. João Cabral de Melo Neto não gostava de ler as traduções dos livros dele em idiomas que ele dominava. Você tem a mesma opinião?
O Lavoura e o Copo foram publicados pela Gallimard em 1984, traduzidos por Alice Raillard. Mas, na primeira versão do Copo para o francês, a Alice, ainda que uma excelente tradutora, escamoteou palavras de baixo calão, gírias que vertidas ao pé da letra não faziam sentido em francês. Parece que agora eles arrumaram [risos], pois a Gallimard acaba de relançar Un verre de colère, acompanhado de uma cinta na capa em que aparece a palavra Culte, apesar de toda a baixaria que é o texto. Com o espanhol aconteceu alguma coisa parecida. É até bom que não leio húngaro, sueco etc. Línguas que não entendo, tudo bem, mas as que eu arranho, aí a coisa se complica…
Mas você gosta de ver sua obra traduzida, a despeito de ler ou não?
Nesta altura do campeonato, já não toca meu ego. Certa falta eu sinto é do tempo em que estava lá na lavoura, na terra, bem entendido.
Ainda sobre o Lavoura arcaica, você gosta do filme?
Sim, gostei muito, com algumas pequenas observações. Eu acompanhei a edição do filme com o Luiz Fernando Carvalho. Eu dizia: “Luiz, corta”. Ele cortava. “Corta mais”, falava depois. Quando chegou a duas horas e 45 minutos, eu falei: “Luiz, corta mais”. Aí ele me expulsou da sala de edição.
A relação com o Luiz Fernando é boa? Vocês parecem entrosados.
Ele é talentosíssimo. Agora, ele e o Augusto Massi querem filmar a única narrativa que lamento não ter escrito: As três batalhas.
Querem filmar sem estar escrita?
Desde que eu dê as coordenadas, eles se encarregariam de roteirizar. Na minha opinião, que é bem suspeita, As três batalhas seria uma narrativa razoavelmente boa.
Dá para contar um trecho?
Em outra oportunidade…
Raduan, estou vendo Grande sertão: veredas na sua estante. Guimarães Rosa diz em um trecho que o bonito do homem é que ele está longe de estar pronto. Sartre é um pouco mais pessimista e diz que somos sub-homens se debatendo para alcançar relações humanas. Você está mais próximo do otimismo de Guimarães Rosa ou do pessimismo de Sartre?
A humanidade ficar pronta, no sentido de sem conflitos? Francamente, acho que pronta nunca.
Você relê Lavoura arcaica ou Um copo de cólera?
Não. Inclusive no evento recente da revista Cult, tive de ler um trecho sobre resistência, com alusão à política, e não sabia onde encontrar no livro. Foi um vexame.
O evento estava bem cheio, aliás. Há uma necessidade de muitas pessoas saberem mais sobre você ou sobre um autor de quem elas gostam. Você imagina de onde vem essa necessidade?
Não tenho ideia.
Tem uma fala sua nessa entrevista ao Cadernos de Literatura, do Instituto Moreira Salles, de questionar um pouco as coisas que vêm embalsamadas na História, em que você cita Francis Bacon, que questionou Sócrates, Platão… Você ainda acha que estamos envoltos por dogmas ou avançamos no quesito senso crítico?
Fui até um pouco mal-educado quando falei do Bacon, falando dos seus supostos calotes, o que seria uma lenda. Foi um empirista que cultivei.
Você acredita que a observação da vida é a parte fundamental para qualquer escritor?
Quando escrevia, privilegiava muito mais a experiência da vida do que a experiência livresca. Era um olhão na vida, na sua pulsação, vibração mesmo, e um olhinho nos livros.
Em Memórias do subsolo, na primeira parte, Dostoievski fala sobre a razão como fio condutor das relações humanas. A razão em algum momento tentou se sobrepor à passionalidade encontrada na sua obra?
Fiz de Dostoievski uma leitura atenta. Está vendo aqueles vermelhos ali? [Aponta a estante.] É Dostoievski. Veja: no Copo, fiz uma afirmação um tanto ousada. A personagem feminina diz ironicamente: “mocinho que usa a razão”. Depois, num momento avançado da novela, seu parceiro diz: “só usa a razão quem nela incorpora as suas paixões”. O que chamam de racionalidade, acredito, está eivado de passionalidade. Ninguém é só racional. Suponho que as paixões interfiram na racionalidade. O juiz de Curitiba que o diga.
Ainda sobre o tema da razão, no Mito de Sísifo, de Camus…
Está ali também [aponta na estante e ri]. Camus começa esse livro afirmando que a única questão filosófica importante é o suicídio, saber se vale ou não a pena viver. Li o Camus, apesar da sua muito questionável posição política. Escreveu O estrangeiro tratando o árabe de modo nada positivo. Tanto que agora saiu um livro, parece que de um argelino, contestando O estrangeiro, de uma perspectiva diametralmente oposta, que teria sido muito bem recebido pela crítica.
Voltando ao livro, ele diz que “começar a pensar é começar a ser atormentado”. O granjeiro, em Um copo de cólera, diz que é impossível ordenar o mundo dos valores, que ninguém arruma a casa do capeta.
É impossível ordenar o mundo dos valores, é mesmo a casa do capeta.
Literatura com certa dose de reflexão existencial pode alterar as relações de leitores, ou isso é dar demasiado poder às palavras?
Caberia a cada leitor responder.
Você escreveu o Lavoura pensando em política?
Veja, dentro daquela trama, daquela oposição entre pai e filho, há muitas afirmações políticas, que hoje estão sendo percebidas.
Você já disse que escrever era como exorcizar demônios, que funcionou como psiquiatria. Depois, disse que se tivesse feito um balanço rigoroso talvez nem tivesse começado.
De fato, fiz o balanço e concluí que não devia sequer ter começado. Já foi.
*Guilherme Henrique e Cristiano Navarro são jornalistas.
[Publicado na edição 121 do Le Monde Diplomatique – agosto de 2017]
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