As três Tetês

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Mais um episódio da coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Neste capítulo, Cícero fala de singeleza, da graça de três menininhas na sala de aula, as três Tetês.

“Quando eu tinha 15 anos sabia desenhar como Rafael, mas precisei de uma vida inteira para aprender a desenhar como as crianças” (Picasso)




“Por vezes, os professores se esquecem de vocês, três Tetês.

É que vocês são miúdas, quietas, esforçadas, inteligentes, mas ficam no canto da sala, ao dever, enquanto os professores dão conta dos tempos. De cinquenta minutos cada, e que parecem cem.

Como vocês nos ouvem se há tanta algazarra?

Os professores separam brigas. Os professores organizam a ida ao banheiro.

Os professores são uns chatos.

Os professores dão o visto nos cadernos.

Os professores gostariam de trabalhar melhor.

Os professores resmungam e também sentem vontade de fazer xixi antes do intervalo.

E vocês, três Tetês falam pouco, desenham bem. Como se expressam pelo desenho, cheio, redondo, colorido. Como são criativas, inteligentes.

As três Tetês estão sempre de uniforme, limpo, imaculado – a mãe deve exigir.

Entretanto, o professor sabe, deduz, que alguma tristeza há em tanto capricho, em tanta introspecção.

O professor tem faro de doberman.

Eu prometi uma história para as três Tetês.

Eu perguntei o nome de cada uma, para que não me esquecesse. Ganhei um abraço no final do dia que circundou algumas vezes o mundo.

Tetês, eu quero que as três sejam felizes. Mais do que foram, mais do que são, mais do que serei.

Eu quero que, a partir de hoje, o olhar do professor reconheça as singularidades das crianças.

Estamos combinados?

Os professores querem cada coisa!

Escrevam no caderno, Tetês!

Tetês, hoje eu mesmo pego do lápis de cor.

É por isso, Tetês, que há matérias esquisitas, sem função, para que vocês, em silêncio, em quietude, se sobressaiam?

Eu não quero notas altas, nem sempre: eu quero o sonho, eu quero a vida, deem-me vida, Tetês.

Na bagunça dos meus filhos, no desalinho do dia a dia, no torvelinho dos acontecimentos, digam-me o que é preciso ser feito, para além dos livros, para além dos corredores, para além das mesas, para além das escolas.

Porque, Tetês, não sei, mas talvez um dia eu também tenha sentido falta da mão amiga, do sorriso, de me reconhecer no gesto dos outros, furtivo que fosse, furtivo que seja.

Isso não é ser bobo, Tetês! É que é preciso saber como.

Tetês, há professores que, ainda bem, estão dispostos a lhes ensinar os mistérios da matemática, da ciência, as regras da ortografia, as concordâncias, os mapas.

Eu só posso lhes ensinar esta mão no rosto, esta simpatia.

Eu sei tão pouco. É tudo que tenho para lhes dar. Perdoem-me.

Eu, que tenho tão pouco a oferecer, em virtude dos tempos.

Eu, que não preciso lhes dar asas.

Quem sabe, Tetês, este mundo é cheio de imprevistos.

Não há nada de certo, apenas esboços.

Por vocês, não esqueço de meus filhos.

Por vocês, cubro os dois de mimos e, por vezes, de carões.

Sou um homem bruto, Tetês.

Embrutecido, Tetês.

Não há lembrança sem esquecimento.

Porque, de agora em diante, vocês são as três Tetês. 

E eu, um rabisco, uma promessa.”

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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