A inclusão da história e cultura da África no currículo escolar do Brasil continua sendo disputada, mesmo havendo uma lei que determine o tema dentro das salas de aula
Por EDUARDO REINA, compartilhado de Ópera Mundi
Na foto: VII Feira Regional de Ciência e Cultura – CREDE II - Itapipoca
A educação no Brasil, país onde mais de 56% dos habitantes são negros, precisou de uma lei que determinasse a inclusão da história e cultura da África no currículo escolar, desde o fundamental até o nível médio. A lei nº 10.639/03, que completa 20 anos agora, é somente mais uma etapa desta batalha contra a invisibilização dos povos negros e da luta antirracista e pelos direitos humanos.
Essa é uma agenda desigual que chega hoje nos bancos escolares com a disputa entre uma pretagogia e o eurocentrismo. De um lado está o movimento negro na defesa do protagonismo, do respeito histórico e de um ensino antirracista. Do outro, há algumas escolas e parte da categoria do magistério que enfrentam dificuldades na formação e no ensinamento da história e da cultura da África.
A reportagem de Opera Mundi conversou com dezenas de professores, educadores, especialistas e editores de livros didáticos para conhecer o que os alunos estão aprendendo sobre a África e sua história nas salas de aula. Como resultado, fica evidente que o racismo ainda é sentido em algumas instituições escolares, públicas e privadas, e que a formação de acadêmicos continua deficitária em relação a este tema.
Em sua maioria, são os professores ligados aos movimentos negros que se desdobram para efetivar a aprendizagem da cultura e história do continente africado e afro-brasileira em todo país.
Combate ao racismo nas escolas brasileiras
Pretagogia é um referencial teórico-metodológico que contribui para o desenvolvimento do combate ao racismo nas escolas, que está associada aos valores da ancestralidade, tradição oral, o corpo enquanto fonte espiritual, religiosidade e a circularidade. É desenvolvida a partir da vivência e propostas de Sandra Haydée Petit, doutora em ciências da educação pela Universidade de Paris VIII, professora na Universidade Federal do Ceará e coordenadora do Núcleo das Africanidades Cearenses (NACE).
A pretagogia, segundo a própria Petit descreve, pode ser um aliado nas instituições escolares, já que há um déficit na formação dos professores quanto ao ensino de história e cultura afro-brasileira, que os impossibilita aplicar a Lei 10.639/03.
Essa nova pedagogia pode ser implantada no trabalho que tem como objetivo mudar a realidade de muitos negros brasileiros que negam sua identidade, e isso dentro da escola, que não permite a essas pessoas conhecerem sua própria história e saber quem são, conhecer suas origens.
20 anos depois de promulgada, o desafio de implementar a Lei 10.639 é muito grande. Há resistência por parte das escolas, dos estudantes e seus pais. O tema central da legislação ainda fica focado somente em efemérides, como a Lei Áurea, em maio, ou a semana da Consciência Negra, no mês de novembro, data que objetiva aumentar a reflexão da sociedade acerca da inserção do negro na sociedade brasileira. No restante do ano letivo, o estudo continua sendo negligenciado.
Mas há férteis e importantes trincheiras nesta batalha que se mostra desigual.
No Ceará, terra adotada por Sandra Haydée Petit – de origem caribenha, existe amplo plano de trabalho que envolve escolas públicas para o desenvolvimento dessas matérias. Cícera Barbosa é professora de história numa escola pública estadual e também militante do movimento de mulheres negras de Fortaleza. Ela conta a Opera Mundi que os professores que estão atrelados aos movimentos negros são mais comprometidos com essa pauta na sala de aula.
“Aqui no Ceará temos vários fóruns onde os professores trocam experiências. Trouxemos vários autores e há uma produção áudio visual na periferia, para atrair os estudantes”, disse.
A professora afirma que o currículo proposto pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para a cultura e história da África é apenas um dos pontos desenvolvidos no chão da sala de aula. “Falamos do Egito, do Reino de Cuxe, do Congo, etc. Mas precisamos melhorar o material extraclasse, ter selos de literatura com autores africanos”, defendeu Barbosa.
Ela também critica a formatação do material didático e aponta vazio histórico contido em muitos livros e apostilas, Segundo a docente, parece haver um “lapso na história da África descrita nos livros didáticos”, dando o exemplo que, fala-se dos séculos 14 e 15, para “depois pula para o século 19 e 20”.
A interdisciplinaridade é uma das frentes de batalha para fazer valer a Lei 10.639. “Fico perturbando os professores de Português para que possam ter redação e leitura de autores negros”, afirma a professora cearense.
Além disso, também há espaço no currículo para mostrar que a África vai muito além do que consta nos livros didáticos. Em escolas públicas estaduais em Fortaleza, de acordo com Barbosa, procura-se mostrar a geografia física e social do continente africano.
“Os alunos sabem os nomes dos países europeus. Queremos fazer a geografia africana estar mais presente. A maioria dos alunos nem vê o mapa. Não sabem que houve reis e rainhas nesse continente. E nem mesmo conhecem sua riqueza. Na cabeça deles, a África é como o filme Rei Leão, Madagascar ou Simba Safari. Só que quando a gente mostra a tecnologia que é desenvolvida na África hoje ou os dados de saúde, os alunos ficam impactados. Mostramos filmes onde eles veem as avenidas largas nas grandes cidades, arborizadas, e passam a entender que não há só selva lá”, explicou ela.
A 135 quilômetros de Fortaleza, no município de Itapipoca, outro professor de história, que atua na educação básica da rede municipal, Régis Alves Pires aponta que a Lei 10.639 não pode ser encarada como uma disciplina, e que alegar falta de material didático é um falso discurso. “Há muito material didático que pode chegar no chão da sala de aula. Avançamos muitos nesses anos. Antes era imagem e reprodução com olhar eurocêntrico. Hoje tem um referencial quilombola. Nosso trabalho é para a criança se ver e não ter vergonha de se assumir preta, desenvolver o conceito de democracia racial”, explicou ele à reportagem.
Pires defende a necessidade de haver campanhas para fazer valer a lei e utilizar os mecanismos existentes para fiscalizar sua implementação. “Em 2017, o Ministério Público foi acionado para fiscalizar o cumprimento da lei. Foi criado o Grupo de Trabalho Educação Étnico-Raciais. O MP tem buscado dialogar com as prefeituras. Isso é importante”, disse.
O trabalho desenvolvido em Itapipoca levou os docentes da rede municipal a participarem da 1ª Conferência de História da África, em Cabo Verde, no ano de 2014. Para ele, é importante destacar que “não há uma África só”, que, na realidade, “são 54 países com diversidade cultural, política e religiosa. É preciso explicar o perigo de uma história única”.
Os trabalhos de Barbosa e Pires visam levar as crianças a se verem sem ter vergonha de se assumir pretas.
O Sul também é dos negros
A partir do Ceará, atravessando totalmente o território brasileiro e chegando em Porto Alegre, percebe-se que as aulas em uma escola particular com sistema construtivista de ensino transitam por muitos assuntos além dos exigidos pela Lei 10.639 e pela BNCC.
Há projeto que pretende mostrar como era a população que fazia parte do Rio Grande do Sul, como os lanceiros negros, linha de frente da Revolução Farroupilha, mas que sempre é estudada sob o olhar das elites que promoveram o levante separatista ainda no Brasil imperial. Os lanceiros negros, maioria de escravizados, combatiam as forças do Império. Eles ingressavam na frente de batalha em troca de liberdade. Por sua força e eficiência, o grupo se tornou um temor para as alas inimigas.
O referencial quilombola citado pelos professores do Ceará também recebe tratamento especial em Porto Alegre.
Descendente de quilombolas e sobrinha-bisneta do sambista Lupicínio Rodrigues, Amanda Rodrigues conta que o despertar de seus alunos para os povos negros que habitavam quilombos na capital gaúcha se deu após uma entrevista deles com uma cozinheira do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) da cidade, em 2021.
“Os alunos ficaram sabendo dos quilombos na cidade. A gente se deu conta que o material usado nos livros e textos se referiam somente aos negros escravizados vendidos na praça da Alfândega. Mas, por exemplo, havia um quilombo na Ilhota que foi transferido para o Areal da Baronesa, que existe até hoje”, conta Amanda, professora da 4ª série da rede particular.
O Quilombo Areal da Baronesa está localizado em uma região que era considerada um dos principais redutos negros de Porto Alegre, na avenida Luiz Guaranha, entre a Cidade Baixa e o bairro Menino Deus. Atualmente, é foco de especulação imobiliária. Cerca de 80 famílias ainda resistem e mantém a tradição do carnaval. É conhecido como o berço do samba e de sambistas consagrados como Lupicínio Rodrigues, Giba Giba e Bedeu.
“É um território negro modificado por obras da prefeitura. Eu não tinha ideia do que isso significava para a minha cidade”, refletiu Rodrigues, que junto a outros professores, em 2021, começou a realizar visitas guiadas por Porto Alegre para estudar a cidade sob outra perspectiva. A capital do Rio Grande do Sul abriga hoje nove quilombos, os quais, segundo ela, foram introduzidos nas aulas.
Esses passeios inicialmente foram realizados de modo virtual, devido a pandemia de covid-19. Mas depois houve a possibilidade de se realizar de forma presencial, segundo a professora. O sucesso foi tão grande que resultou na criação de um jogo: o Caminho do Tambor. Uma atividade lúdica com um detetive que tenta encontrar um tambor. Junto às peripécias da investigação há várias atividades culturais.
“Os alunos desconheciam a existência de quilombos na nossa cidade. Eles vivem num Rio Grande do Sul onde as pessoas pensam que a população veio da Alemanha, Itália, Polônia. Então eles perceberam que é preciso resgatar essa história porque essa história também é deles”, disse.
Ainda na região sul do país, no Paraná, também está sendo inserido no currículo de algumas escolas a história dos quilombos a partir de trabalho desenvolvido por Ellen Cris Leite de Lima, que é professora de história da rede estadual de educação básica. Em seu mestrado, ela desenvolveu pesquisas sobre memória, história pública, comunidades quilombolas, identidade social e ensino de história. O que gerou um site.
Trata-se do Paraná Quilombola, que objetiva ensinar história e que localiza no mapa do estado as 38 comunidades quilombolas certificadas no Paraná, agregando a cada uma delas conteúdos que contam sua história. O portal também apresenta a seção “Sala de Aula”, no qual há sugestões para que professores(as) possam realizar com seus alunos trabalhos com documentos, bem como um levantamento bibliográfico sobre o tema.
“Os alunos tendem a gostar muito, pois as ações geralmente são feitas em forma de projetos, exposições em que eles participam mais ativamente”, afirmou Lima, que aponta problema junto a muitos professores em desenvolver ações que vão além do que está contido nos livros didáticos.
A Opera Mundi, a também pesquisadora disse que sente um certo “comodismo” dos professores em “não querer aprender mais e acabam reproduzindo questões que já deveriam estar superadas”. Para ela, há uma boa vontade de todos os setores em promover as ações, “mas existem limites que são da própria estrutura da escola que impedem de avançar mais”.
Nesse sentido, o trabalho com as crianças do ensino básico é primordial nesta batalha entre pretagogia e eurocentrismo.
No Rio Grande do Sul, a professora da rede municipal Cláudia Elisa van Grol, na cidade de São José do Hortêncio, onde moram cerca de 5 mil pessoas, localizada na encosta da serra gaúcha, a 80 km de Porto Alegre, explica que o trabalho é árduo. Mas as novas gerações já passam a olhar a questão do racismo e do respeito à cidadania dos negros com outras atitudes.
“Aqui as pessoas são bem mais racistas. Nossa cidadezinha é uma zona de migração alemã. Ainda tem bastante preconceito, mas a coisa tá fluindo porque há anos se trabalha essa questão da história da África, o racismo, com os [alunos] pequenos. Percebe-se que essas gerações mais novas tratam melhor a questão”, revela a professora, que ministra aula de alemão.
Van Grol cita que a coordenação de ensino do município cobra a aplicação da Lei 10.639 e o que está definido na BNCC.
Material das aulas da professora Amanda Rodrigues, de Porto Alegre.
Material das aulas da professora Amanda Rodrigues, de Porto Alegre.
Material das aulas da professora Amanda Rodrigues, de Porto Alegre.
Reprodução
Professores utilizam materiais didáticos na promoção de atividades que olhem para o continente africano em Itapipoca, no Ceará
As escolas municipais de São José do Hortêncio trabalham projetos onde os professores apresentam elementos para despertar o interesse da criança para a cultura e história africana. São atividades não só em maio e novembro, por causa da assinatura da Lei Áurea e semana da Consciência Negra, respectivamente. “Conseguimos desenvolver projetos transdisciplinares. Trabalhamos para contribuir para a descolonização”, afirmou o coordenador Pedagógico da Secretaria Municipal de Educação de São José do Hortêncio, Cláudio Gerhardt.
A descolonização como aula nas escolas
A descolonização é uma ação que envolve muitas disciplinas e enfrenta barreiras a serem superadas, conforme afirma o professor Raphael Alberti, que ministra aulas de história para alunos do 6º ano do Ensino Fundamental II ao 3º ano do Ensino Médio em escolas particular e pública. Trabalha em torno de 160 alunos no interior de Pernambuco, na cidade de Caruaru.
A grade de Alberti inclui o Egito antigo, Guerras Púnicas – dentro de República Romana é abordado o conflito entre romanos e cartagineses que situavam parte de seu território na atual Tunísia, Reinos Africanos – povos do Sahel e África Atlântica – e em Islamismo e Idade Média quando é abordada a Guerra de Conquista dos islâmicos africanos que invadiram a Península Ibérica.
O currículo ainda aborda a descolonização afro-asiática e a escravidão moderna. Até a Segunda Guerra Mundial, tema que os alunos adoram, é usada para tratar da questão racial.
Dentro do cronograma atual, diz Alberti, sempre é possível ampliar os temas trabalhados. “Mas a alta demanda de conteúdos a serem ministrados acaba inviabilizando aulas mais extensas sobre esses assuntos. Principalmente no 3º ano do Ensino Médio, no qual temos uma revisão de todos os assuntos do Ensino Fundamental II. Acabamos intercalando temas variados numa mesma aula para contemplar todas as temáticas, mas muitas vezes não há um aprofundamento”, explicou a Opera Mundi.
Para ir além do básico, o professor lança mão de atividades que usam até a história contida em jogos eletrônicos. “Acredito que a didática do professor pode modificar isso. Lecionar história da África dando aulas expositivas no quadro, sem um diálogo com os estudantes e sem uma adaptação à sua realidade, promove o desinteresse. Analisar a mitologia egípcia através de uma música muito escutada e coreografada por jovens como ‘Faraó’, do Olodum, e utilizar games como ‘Battlefield’, que contam a história real de um destacamento de combatentes de colônias francesas que foram decisivos para a vitória contra os nazistas, mas apagados da história da França, ajudam a atrair a atenção dos estudantes para esta temática”, observou ele.
Mesma percepção e ação é parte das atividades desenvolvidas por Marianna Teixeira Farias, professora de história e que faz mestrado na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Ela dá aulas em um colégio estadual no bairro Costa Azul, que segundo a pesquisadora, é local privilegiado socialmente, perto da orla marítima de Salvador, mas que não evita a existência de preconceito e uma leitura distorcida da realidade.
“Hoje o adolescente é hiperconectado. É preciso produzir material com base na literatura, vídeos, palestras, jogos. Tento dinamizar meu material. É possível fisgar a atenção dos alunos quando se fala sobre sua realidade”, afirmou Farias.
A professora de Salvador conta que muitos alunos negros são tão colonizados que repetem discursos racistas e preconceituosos sem se dar conta, pois vivem numa realidade paralela no país. “Muitos alunos falam que há vitimização do negro. Dizem que os povos da África eram povos animalescos, burros, o que naturalmente teriam uma diferença cognitiva. Defendem que bandido bom é bandido morto. É um Brasil paralelo em que vivem, com distorção da história e da cultura”, declarou.
Realidades paralelas também são observadas pela docente ao comparar a disposição de professores na aplicação da Lei 10.639. Ela afirmou a Opera Mundi que são duas realidades diferentes: a do mundo acadêmico e a do chão da escola, da sala de aula.
“Aqui trabalhamos com cultura e história afro-brasileira e também indígena. Já realizamos projetos como o Axé Saúde, com palestras sobre medicina incluindo perspectiva antirracista. Mas isso não é a realidade de todas as escolas”, disse. Ainda à reportagem, ela conta que há uma parcela de professores, com mais de 20 anos de ensino, “que não tem mais pique de estudos e nem acesso à formação continuada”.
As universidades não têm um currículo que permita uma formação mais sólida do professor sobre a cultura e história da África. “Não é toda universidade que tem disciplina sobre o tema. Já muitas escolas trabalham isso, mas não como diz a lei. Há muitos professores sem compromisso, uma vez que não há fiscalização efetiva. Assim, fica a critério de cada escola moldar a grade”, explica Alex Santana França, da Universidade Estadual de Feira de Santana na Bahia, a Opera Mundi.
“Na universidade há disciplina de relações étnico-raciais, de literatura afro-brasileira, mas nenhuma é obrigatória. Assim, como o professor que não tem essa formação específica vai para a sala de aula sem uma formação adequada?”, questionou.
E no coração da capital baiana, no centro histórico, está uma escola pública que pulsa o tempo todo a pretagogia e a cultura africana. Salvador tem hoje, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 80% de pessoas negras. “O jeito africano de ser está nas nossas vidas, nas ruas. Trabalhamos a história da África com a valorização do cotidiano das vidas das crianças em Salvador”, afirmou Maria Patrícia Figueiredo Soares, que é professora rede pública educação infantil.
Já há muito tempo o centro histórico de Salvador é um lugar de resistência da cultura africana. Além da questão de linguagem, eles se apropriam do conhecimento que está em todo o entorno. Há uma relação com museus que contam a história dos povos africanos, que todas as crianças usufruem didaticamente. “É uma forma de resistência contra o racismo”, explicou a docente.
Essa escola infantil municipal do Pelourinho reúne crianças de até quatro anos que têm aulas de capoeira, aprendem a tocar instrumentos musicais e outras atividades que incluem a vivência da ancestralidade de uma forma lúdica.
É o Projeto Erês de contação de histórias, com a participação de senhoras de terreiro de candomblé. “As crianças adoram. Elas querem ouvir histórias da floresta, de animais, histórias de medo. São seis senhoras que participam”, disse a professora. Depois as histórias ouvidas pelas crianças se transformaram num livro ilustrado por elas mesmas.
Para aprofundar a questão da ancestralidade, há o envolvimento das avós, as baianas de tabuleiro do acarajé. Assim, a identidade racial das crianças é trabalhada o tempo todo.
“Com quem parece meu corpo, meu cabelo. Mostramos histórias infantis que fortalecem essa identidade”, declarou Soares.
Fora da Bahia, a luta continua
Distante do Pelourinho, na zona sul da capital paulista, no bairro do Ipiranga, a professora do ciclo Fundamental II da rede municipal de São Paulo Sueli Rodrigues Pontes lança mão também de atividades extracurriculares para trabalhar a descolonização e a conscientização dos alunos sobre o racismo estrutural da sociedade brasileira.
Ainda para este semestre, Pontes e outros professores preparam mais uma edição de um “slam literário” para tratar a questão da resistência. As batalhas de poesia falada e ritmadas por uma batida musical conseguem reunir dezenas de alunos e são atividades importantes na aprendizagem.
“Nossa origem é bem diversa, é e importa mostrar a diferença da realidade aqui, das minorias e de todos. Na sala de aula trabalhamos os laços familiares, com oficina de bonecas africanas de pano. Trabalhamos com material paradidático, já que a escola tem uma sala de leitura bem completa”, contou ela.
Outro aspecto nesta batalha enfrentada nas escolas, observa Diego Penholato, professor de história do Ensino Médio e Fundamental II em escolas privadas nas cidades paulistas de São Caetano do Sul e São Bernardo do Campo, é o engessamento do currículo e o pouco avanço do tema no material didático. “Nas escolas privadas, sobretudo com material apostilado ou livro adotado, o conteúdo já vem definido”, disse. Penholato.
De acordo com ele, há “lacunas muito grandes” na produção do material didático. No entanto, ele reconhece que houve algum avanço, “porque a história da África deve obrigatoriamente estar no material didático”.
O problema, segundo o professor de História e editor de livros didáticos Daniel Orlando da Silva, vai além dos livros didáticos e ensino de história. “É problema estrutural da cultura brasileira, no sentido de não compreender, entender a cultura afro-brasileira”, afirmou.
Silva aponta também que há alguns problemas nos livros e apostilas didáticos com relação a esse tema, pois a maioria dos profissionais que produzem tais conteúdos é formada nas décadas de 1980 e 1990, quando não existia no currículo universitário a história da África como obrigação.
“Eu me formei em história em 2012 e em todo curso tive uma grade muito reduzida das disciplinas de África e de história cultural afro-brasileira. São 80 horas/aula da primeira e 40 horas/aula da outra”, explicou.
Autor e estudioso do tema, Silva afirma que até hoje todos os livros de história mantêm a mesma estrutura. Do 6º ao 9º ano é acrescentado um capítulo desse tema por ano. Cada capítulo tem entre oito e 10 páginas onde estão contidos texto, imagem, mapa e duas páginas de atividades.
A dissertação “História e cultura afro-brasileira nas obras didáticas de Gilberto Cotrim (1996-2020)”, apresentada por Silva na Universidade Federal de São Paulo em 2022, mostra que a quantidade de páginas com esse conteúdo é pequena. Antes de 2003, o conteúdo que apresenta o continente africano perfazia 3% das páginas desses livros didáticos. Após a promulgação da Lei 10.639 subiu para 7%.
Importante destacar também que até 2003 os livros didáticos tinham entre 140 e 180 páginas. E as edições nos anos seguintes passaram a ter de 240 a 280 páginas por livro de cada ano escolar.
“Não há nada de extraordinário nos novos conteúdos, apenas meia página que amplia o livro. Nenhum discurso profundo. O novo ensino médio, então, foge totalmente dessa estrutura. Foi exigido livro para atender conteúdo de formação comum, além dos itinerários informativos. E o conteúdo da cultura e história da África ficou mais diluído ainda. Direitos humanos e cidadania ficam de lado. Trata a história da África sob o mote da escravidão. Ficou diluído e desconexo”, disse.
Para ele, o livro baseado na história convencional eurocentrista vende mais, pois ele acredita trata de um “problema cultural e estrutural”, além de uma “questão política”. Já o editor de livros didáticos e literários, Salvador Barletta Nery é duro ao analisar a composição dos livros didáticos brasileiros e o ensino da história da África nas escolas.
“Há uma epistemologia branca, eurocêntrica. Não se fala de intelectualidade negra. O preto construiu o Brasil, e a epistemologia branca foi apagando essa história. O preto é apagado da história”, criticou ele a Opera Mundi.
Nery defende que os livros precisam adotar pessoas pretas como protagonistas, sob pena de que os jovens não se identifiquem mais com a história, apontando que essa invisibilidade revela a falsidade da própria história que destrói todo o saber.
“O primeiro processo é ter um ensino antirracista na formação de professores. Tem escola onde o livro didático dita todo o ensino. Há um processo de desqualificação do conhecimento, pois o preto precisa pedir licença para entrar no livro didático”, afirmou o editor.
Na apresentação do livro Superando o racismo na escola, o antropólogo Kabengele Munanga, que trabalha para a conscientização e sensibilização dos docentes, defende que a educação cidadã é primordial para enfrentar o racismo.
“Não precisamos ser profetas para compreender que o preconceito incutido na cabeça do professor e sua incapacidade de lidar profissionalmente com a diversidade, somando-se ao conteúdo preconceituoso dos livros e materiais didáticos e as relações preconceituosas entre alunos de diferentes ascendências étnico-raciais, sociais e outras, desestimulam o aluno negro e dificulta seu aprendizado. O que explica o coeficiente de repetência e evasão escolar altamente elevado do alunado negro, comparativamente ao do alunado branco”, afirma o especialista.