Assumindo quase todas funções dentro das lojas, funcionários encaram furtos e assaltos praticamente sem nenhum apoio.
Por Tatiana Merlino, compartilhado de O Joio e o Trigo
Em setembro de 2023, quando Erich* começou a trabalhar em uma unidade da rede de mercados OXXO, na região central de São Paulo, seu turno era o da noite. Na primeira semana de emprego, sofreu um assalto. “Eram três indivíduos, dois deles entraram na loja e um ficou do lado de fora, observando se vinha polícia”, relata. Depois, vieram o segundo, o terceiro, o quarto, o quinto… Foram sete assaltos desde o início do seu contrato com a empresa, ele me conta em uma entrevista por telefone, na qual pede para seu nome verdadeiro não ser publicado, por receio de represálias. “Meu intuito é sair da OXXO, mas enquanto não arrumo nada, não posso pedir contas assim, com uma mão na frente e outra atrás.”
Erich conta que passou meses trabalhando sozinho, entre setembro de 2023 e janeiro deste ano, e só então a empresa contratou um segundo funcionário para dividir as tarefas. “Mas, na primeira noite de trabalho, a loja foi assaltada”. No geral, explica, os assaltos ocorrem no meio da madrugada, principalmente entre duas e três da manhã. “Já teve um que foi com faca, outro com martelo, com arma de fogo…”
O último, relembra, foi o mais violento. “O cara estava com uma faca escondida no punho da camisa. Eu entrei em uma briga corporal com ele, que sacou a faca, mas consegui me desvencilhar. Foi feio, ele me deu um soco, fiquei um pouco machucado no braço.” O trabalhador diz que, por sorte, nunca se feriu gravemente, mas os ataques deixaram traumas. Quando está sozinho na loja, a entrada de qualquer pessoa o deixa nervoso. “Eu me assusto todos os dias, virei uma pessoa extremamente desconfiada. Não é normal você chegar no trabalho e já ficar aflito. A qualquer momento, quando chega alguém na loja, meu coração começa a acelerar. Eu atribuo isso à OXXO porque a gente não recebe nenhum tipo de tratamento de saúde mental. E quem sofre mesmo é quem trabalha de madrugada”, desabafa.
Assaltos, furtos e agressões
Erich é um dos 14 funcionários da OXXO com os quais a reportagem do Joio conversou para entender como são as condições laborais e de segurança nas lojas da rede. Nove deles trabalham na capital; dois na Grande São Paulo: Guarulhos e Santo André; outro, em Praia Grande, no litoral paulista, e dois no interior do estado: Campinas e Piracicaba. Todos pediram para não ser identificados e tiveram seus nomes trocados pela reportagem.
Uma das principais reclamações é a ausência de um funcionário de segurança nas lojas, sobretudo no período da noite, deixando-os, assim, vulneráveis a assaltos, furtos e agressões. Além disso, as queixas são de que o quadro de empregados é muito restrito, que eles são superexplorados e acumulam muitas funções para além da de atendentes, para a qual foram contratados. E a tensão que passam com assaltos, roubos e acúmulo de função afeta diretamente a saúde mental de quem trabalha na OXXO.
Taís*, atendente de uma unidade da região central de São Paulo, trabalha na rede desde janeiro deste ano. Segundo ela, até havia um segurança no período da tarde na loja para onde foi alocada, mas ele ia embora quando anoitecia. “A gente ia ficando com medo.” A sugestão dos superiores, diz, foi de que os atendentes se revezassem na porta, assumindo a função de segurança. “Eu neguei, falei que essa não era minha função, além de tantas outras que eu faço ali, porque a gente é contratado para ser atendente, mas executa várias outras tarefas e não é remunerado por elas”, denuncia.
Em Campinas, no interior de São Paulo, Larissa* iniciou o treinamento para ser vendedora da OXXO trabalhando em várias unidades da cidade. “Eu ficava o tempo todo muito em alerta, com medo. Logo depois que parei de trabalhar na primeira loja, ela foi assaltada”, conta. “E, aos domingos, quando não tem tanto movimento, me deixavam sozinha. É quando você está mais vulnerável. E eles não se importam. O foco é só vender e acabou.”
Larissa conta que também sofreu assédios e pressões. “Largavam a gente sozinha na loja e tínhamos que fazer tudo. Tem vários desvios de função. E ainda era obrigada a me proteger de alguém que poderia entrar na loja a qualquer hora, roubar e fazer alguma coisa comigo.”
Desde que abriu sua primeira loja no Brasil, em dezembro de 2020, a rede de mercados não para de se multiplicar. Hoje, a OXXO tem 500 lojas, está presente em 17 cidades do estado de São Paulo e emprega mais de 4 mil pessoas, de acordo com sua assessoria de imprensa.
Em março deste ano, a unidade de número 500 foi inaugurada, no bairro da Aclimação, na capital paulista. “O formato de proximidade conversa diretamente com o perfil do brasileiro, que preza pelo tempo e praticidade, perto de suas residências ou do trabalho. Por isso, direcionamos a nossa estratégia, nesses primeiros anos de atuação, em uma expansão rápida e eficiente. O processo é pautado por inteligência de dados e nas necessidades do cliente cotidiana”, disse, em entrevista à imprensa, Hugo Curriel, CEO do Grupo Nós, detentor das marcas OXXO e Shell Select.
Como o Joio contou em reportagem publicada em abril de 2022, o Grupo Nós nasceu de um consórcio entre a Raízen, licenciada da marca Shell, e a Fomento Económico Mexicano (Femsa) – empresa que é a maior engarrafadora da Coca-Cola do mundo.
Ações judiciais
Todos os funcionários entrevistados mencionaram que a empresa os contratou para o cargo de atendente, mas que, na prática, eram pressionados a assumir outras tarefas. “A gente tinha de cuidar da padaria, ser estoquista, entrar na câmara fria para arrumar estoque, fazer a limpeza da loja, limpeza dos fornos, lavar banheiro, operar o caixa e receber mercadoria…”, conta Larissa.
Regina*, atendente de uma loja da região Sul do município de São Paulo, diz que o ritmo de trabalho é “frenético”. “E os donos da OXXO só querem saber de números, só querem saber de abrir loja, só sabem falar de metas e nos pressionar. Como fica a cabeça dos funcionários?”, questiona.
O acúmulo de funções e as situações de violência e insegurança têm gerado demandas judiciais contra a OXXO. Uma pesquisa na página do JusBrasil, realizada no dia 1º de julho, mostra que a empresa é citada em 965 processos, a maioria deles como ré em ações trabalhistas no Tribunal de São Paulo – que abrange a capital, Guarulhos, ABC, Osasco e Baixada Santista – e no de Campinas, que abrange as demais cidades paulistas.
O advogado Fabricio Pires da Costa representa alguns funcionários que estão processando a OXXO por acúmulo de funções e insegurança. “No que eles mais pecam é na exposição ao risco de assaltos. Eles não oferecem segurança, dizem que tem uma empresa terceirizada de vigilância. Mas, na realidade, essa ronda que eles fazem lá quase não é efetiva, porque não protege em nada o trabalhador”, relata. Além disso, as condições são péssimas, diz. “Eles visam lucro e enxergam o empregado como um número.”
Uma das funcionárias que o advogado representa, Marina*, está processando a rede por danos morais. De acordo com a ação, além do acúmulo de funções, ela foi submetida “a situações de profundo abalo emocional ao passar por atos de violência e à exposição de diversos assaltos à mão armada”. Na ação, a defesa argumenta que a ausência de medidas de vigilância casada à intensa movimentação da loja em que Marina trabalha gera um paradoxo: ela precisa lidar diariamente com altos valores monetários, sem segurança para tal.
De acordo com o Ministério Público do Trabalho (MPT), há alguns processos contra a OXXO sob sigilo e alguns arquivados. Existem duas denúncias de não cumprimento de cota de contratação de aprendiz e reserva de cargo para pessoas com deficiência. Procuramos a Secretaria de Segurança Pública (SSP) do Estado de São Paulo para solicitar dados de boletins de ocorrência por assalto nas lojas da rede da capital, pedido que foi feito também por Lei de Acesso à Informação, mas a SSP não forneceu informações a respeito.
Visitas diárias e roubos
Além dos assaltos, os funcionários também lidam quase diariamente com os furtos que acontecem nas lojas, conta Regina. Ela diz que é a segunda vez que trabalha na rede de mercados. A loja onde é funcionária recebe “visitas” diárias de um homem, sempre segurando uma faca ou uma chave de fenda. “Ele rouba garrafas de Heineken. Consegue levar um fardo de 24 unidades”, diz.
A orientação da OXXO, afirma, é para deixar levar a mercadoria e, depois, “abrir um chamado, um protocolo”, que é um registro interno dos funcionários, dos itens que foram furtados. “Perdi as contas de quantos chamados já abri, o caderno está lotado”, desabafa Regina. Seu medo, revela, é ser agredida.“Já ouvi relatos de funcionários que foram baleados, então nosso receio é esse”, diz. “Eu tenho ansiedade desde a minha primeira passagem pela empresa. Recentemente, estava insustentável, eu tremia, eu chorava, para você ver o nível da minha ansiedade.”
Erich também perdeu as contas de quantos chamados abriu, e afirma que a loja não se preocupa com a integridade dos funcionários. “Quando acontecem assaltos e furtos, os nossos líderes não perguntam se você está bem, eles perguntam se você abriu um chamado e o que levaram”, denuncia. “Líderes” são como os supervisores são chamados dentro das unidades do mercado.
Outra ação que corre na Justiça do Trabalho contra a OXXO é movida por Gisele*, que trabalhou numa filial em Santo André. De acordo com a ação por dano moral e adicional de insalubridade, a jovem trabalhava sob “extrema pressão e rigor excessivo, pois recebia da líder e da encarregada a orientação de reagir a eventuais furtos e assaltos que viessem acontecer dentro da loja, colocando-a em acentuado risco.”
O advogado Rafael Vassoler conta, em entrevista, que Gisele também foi submetida a acúmulo de função, pois além de atuar como atendente de loja, trabalhava como auxiliar de limpeza, lavando banheiros, vidros e até limpando fornos e fermentadoras.
“Ela esteve exposta a produtos como cloro, água sanitária, detergentes, desengordurantes, saponáceos e demais produtos de limpeza que continham álcalis cáusticos, mas nunca teve adicional de insalubridade e, tampouco, recebeu equipamentos de proteção individual (EPI).” Além disso, ela teria levado um tapa no queixo dado por sua líder. O teor das ameaças era sempre de agressões: a supervisora teria dito que “se trabalhasse no horário dela ia bater nela de manhã, de tarde e de noite.”
Portas trancadas, “barreiras” e tensão
Numa noite fria do mês de junho, rodei pelo centro de São Paulo e visitei diversas lojas da OXXO. Começo pela unidade da rua Major Sertório, depois sigo para a da Rego Freitas, largo do Arouche, avenida São Luís, Major Diogo, Maria Paula, Libero Badaró… A ideia é ver se as lojas têm ou não segurança, quantos funcionários há em cada uma, e tentar marcar alguma entrevista com trabalhadores. Em algumas, apenas entro, observo e saio. Em outras, onde há pouco movimento ou quando o funcionário está em um local onde a abordagem é mais fácil, puxo assunto, explico a pauta e peço o telefone para uma futura entrevista. Alguns são receptivos, outros já dizem que preferem não falar.
Duas das lojas onde fui estavam com as portas trancadas. Um dos mercados tinha uma espécie de barreira formada por uma mesa com alguns produtos em cima. Algumas lojas chegam a fazer vendas de portas fechadas mesmo, atendendo os clientes por uma pequena janela aberta. Em outras lojas, havia mais de um funcionário, mas apenas em duas havia a figura do segurança. O clima de abandono das lojas combina com o abandono do centro e das pessoas em situação de rua que vivem ali.
De acordo com Ricardo Patah, presidente do Sindicato dos Comerciários de São Paulo, a entidade foi procurada pelos trabalhadores, que reclamaram da falta de segurança nas lojas da OXXO. “Começamos a ter denúncias de que as lojas muitas vezes eram assaltadas e as pessoas se sentiam inseguras. Então, desde o ano passado nós tivemos três ou quatro reuniões de trabalho com a empresa no sentido de ter alguma solução razoável”, diz.
Segundo Patah, a partir das negociações do sindicato, iniciou-se, por parte da OXXO, um processo de monitoramento e ronda. “Desde então, começou a ter uma melhora. A empresa só começou a mudar sua postura graças ao sindicato”, afirma.
A ronda à qual o presidente do sindicato se refere é um funcionário de segurança que passa pelas lojas de moto. Além dele, a outra modalidade de segurança é o fiscal, que fica no período da noite e da madrugada em algumas das lojas. De acordo com os funcionários entrevistados, no entanto, a ronda não é efetiva, já que há apenas um funcionário responsável pela segurança de várias lojas.
A reportagem teve acesso à ata de uma reunião realizada entre o sindicato e o Grupo Nós, em junho deste ano, na qual a empresa afirma estar executando “o plano apresentado quanto à medidas para a mitigação de riscos existentes, como colocar portas de vidros nas lojas, conectando câmeras integradas junto à Polícia Militar”. No documento, também consta a promessa de instalação de uma central de monitoramento. Por meio da assessoria da Secretaria de Segurança Pública, a PM de São Paulo informou que não recebeu tal solicitação.
O sofrimento do precariado
Mesmo sendo contratados sob o regime de CLT, os funcionários da OXXO podem ser enquadrados no conceito de precariado. A avaliação é do sociólogo Ruy Braga, professor e chefe do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, estudioso do mundo do trabalho e autor de livros sobre o precariado, que é, na sua definição, a camada da população que vive nas condições mais precárias dentre os trabalhadores.
“Essa mistura de flexibilização da jornada, com condições muito precárias de inserção nos postos de trabalho, acúmulo de funções e, sobretudo, exposição à violência urbana tem um impacto bastante flagrante, principalmente nesses negócios espalhados pela cidade”, analisa. O sociólogo acredita que a forma de contratação laboral dentro na rede de mercados, que chegou ao Brasil em 2020, três anos depois da reforma trabalhista entrar em vigor, foi beneficiada pelo afrouxamento da legislação.
Mesmo sem ter feito pesquisa específica sobre a OXXO, Braga afirma que estudos de outros países e setores demonstram que os efeitos psicológicos desse tipo de ocupação são “devastadores”. “Há um nível muito alto de estresse, e há síndromes ligadas ao trabalho precário, como a síndrome de burnout”, diz, citando a Síndrome do Esgotamento Profissional, distúrbio emocional com sintomas de exaustão extrema, estresse e esgotamento físico resultante de situações de trabalho desgastante. “É muito compreensível que a gente observe o aumento de ações na Justiça do Trabalho – e também reclamações nas redes sociais”, avalia.
Procurada, a OXXO disse, por meio de sua assessoria, que “está ciente dos problemas da sociedade e busca diariamente novas estratégia de segurança, além de investir em tecnologia e inteligência para desenvolver ações preventivas nas unidades, bem como parcerias com os órgãos públicos, instituições do setor e demais players do varejo para contribuir na construção de um ambiente cada vez mais seguro para nossos colaboradores, clientes e comunidade”.