Assassinato de Bruno e Dom: a luta dos guerreiros do Médio Javari

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Um ano depois do crime, os Kanamari se organizam para enfrentar atividades criminosas e ilegais nas terras indígenas e na região

Por Amazônia Real, compartilhado de Projeto Colabora




Na foto: Cacique Mauro Kanamari, de cocar, (à esquerda) lidera grupo de Indígenas de Vigilância Territorial Kanamari durante monitoramento do Lago Caxias (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

(Elaíze Pires e Bruno Kelly* – TI Vale do Javari/AM) – Em 2022, os Kanamari estavam montando o grupo Guerreiros da Floresta, e ouviram de Bruno Pereira a promessa de que ele voltaria em 15 dias para ensiná-los a vigiar seus territórios. Em 5 de junho, o indigenista brasileiro e o jornalista britânico Dom Phillips foram assassinados dentro do Vale do Javari, mas os Kanamari seguiram em frente. Quase um ano após o crime, a reportagem da Amazônia Real esteve na Terra Indígena Vale do Javari, no Amazonas, onde ouviu relatos sobre invasões e também conheceu os esforços de enfrentamento das atividades ilegais e criminosos na região do Médio Javari.

Não é fácil para os indígenas da Terra Indígena Vale do Javari fiscalizar aquela imensidão de floresta e centenas de rios. No Médio Javari, um rio de fronteira, que divide Brasil e Peru, o narcotráfico e o roubo de madeira pressionam as aldeias. Para tentar combater a ilegalidade no Médio Javari estão os Kanamari, que criaram o grupo Guerreiros da Floresta, formado por 36 homens. Eles se alternam na vigilância da região em expedições periódicas, com recursos próprios, sem apoio de políticas públicas. Em vez de serem protegidos, eles têm de garantir a própria proteção.

Os Kanamari, que se autodenominam “Tükuna”, são hábeis conhecedores dos furos nas águas para cortar caminho entre galhos, folhas, pedaços de paus e cipós. Eles pisam em silêncio pelo emaranhado de árvores, procurando passagem debaixo de uma chuva fraca, depois de uma tempestade na madrugada. Era março deste ano, e a Amazônia Real foi convidada para participar de uma ação de fiscalização dos indígenas. Esta reportagem faz parte do Projeto Bruno e Dom e é uma investigação colaborativa que reúne 16 veículos de 10 países. O consórcio, coordenado pela Forbidden Stories, entidade que investiga o trabalho de jornalistas assassinados, foi constituído após a morte do jornalista britânico Dom Phillips, em 5 de junho de 2022.

Os meses anteriores haviam sido marcados por episódios de tensão e ameaças no Vale do Javari. Para entrarem na mata fechada, os indígenas Kanamari não dispõem de GPS ou qualquer outro equipamento que aponte os melhores trajetos. Na falta desse tipo de aparelho, eles são obrigados a se guiar apenas pelo conhecimento da floresta e dos caminhos nas águas. Não que eles não gostariam de ter amparo da tecnologia. Por isso também lutam para conseguir apoio para a estrutura de sua própria fiscalização.

Na mata fechada, os Guerreiros da Floresta não demoram para encontrar pelo menos duas árvores nobres derrubadas prontas para serem serradas pelos madeireiros. Os invasores não foram flagrados pela equipe. Uma das madeiras era a da árvore caferana, muito procurada na região, segundo os indígenas. A outra era maçaranduba.

“Derrubaram duas só daqui dessa área. Eles procuram mais nessa área porque tem menos gente e o rio fica bem longe. Eles serram dentro da mata para que a gente não ouça a zoada da motosserra e dificultar o trabalho da fiscalização”, declarou o líder Kora Kanamari, enquanto observava os troncos no chão. Naquela expedição, ele está acompanhado de outros sete membros dos Guerreiros da Floresta.

O tronco encontrado naquele domingo chuvoso de março foi deixado para trás porque os indígenas não têm como retirar e muito menos denunciar para uma apreensão emergencial da Polícia Federal (PF). Eles não possuem radiofonia. Sinal de celular ou internet são algo inteiramente inalcançável naquele lugar.

Ele conta que, nos últimos cinco anos, madeireiros brasileiros e peruanos voltaram a entrar no território indígena e o barulho recomeçou. “Voltou a caça, a pesca ilegal e a retirada de madeira. Chegou a questão das drogas, com envolvimento de parentes, que são aliciados nas próprias comunidades. Quando não, os traficantes acuam os caciques. ‘Se nós ficarmos sabendo que está tendo reunião contra a gente, vocês vão pagar’. É o que eles dizem.”

ndígena Kanamari flagra árvore derrubada durante fiscalização em uma área dentro da TI Vale do Javari (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).
Indígena Kanamari flagra árvore derrubada durante fiscalização em uma área dentro da TI Vale do Javari (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).

Madeira serrada

Kora comenta, um pouco deprimido, que o grupo Guerreiros da Floresta não tem como avançar nas fiscalizações porque faltam recursos. O combustível, doado, é sempre controlado e há o receio com a segurança dos indígenas porque eles não podem confrontar os invasores em um ataque com armas.

“Nós só conseguimos entrar aqui rapidamente. Não temos embarcações suficientes. Não temos canoas para entrar na parte mais estreita, nos igapós. Não temos bota para andar quilômetros. Aqui tem cobra”, diz ele, que pisava com os pés descalços nas trilhas de folhas úmidas e de espinhos enquanto vistoriava a área onde constatou a ação dos desmatadores e ladrões de madeira.

Segundo Kora, a madeira retirada da TI Vale do Javari tem um itinerário inusitado. Ela ‘sai’ do território, é levada para o lado peruano, onde é processada e vendida serrada no mercado brasileiro, nas cidades de Atalaia do Norte e Benjamin Constant, no Alto Solimões e na tríplice fronteira. Os Kanamari contam que os comerciantes que negociam com os criminosos são facilmente encontrados no lado brasileiro. Bastaria que as forças policiais investigassem.

“Essa é a estratégia deles. Antes da demarcação, levavam a madeira em toras. Agora ela já vai serrada. O que fazemos aqui é uma vigilância difícil. Nessa vigilância de hoje, com vocês, gastamos 160 litros (de gasolina). Mas o ideal era que fosse ao menos 400 litros por mês, isso para alguns dias, o que dá cerca de 1.200 reais. Não temos dinheiro. A Funai não ajuda. Temos alguns parceiros que dão pequenos apoios financeiros”, desabafa.

Kora Kanamari denuncia o roubo incessante de madeira, os ataques de forasteiros ao território e os assédios e as ameaças de narcotráfico há pelo menos quatro anos. Sem solução. Agora, em novo governo no Brasil, ele cobra uma ação emergencial, mas também permanente, para a TI Vale do Javari por parte do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Eles querem deixar para trás o período tenebroso do governo de Bolsonaro no território. E apontam a necessidade de protocolos e termos de cooperação entre Brasil, Peru e Colômbia, nos quais as forças de segurança dos três países atuariam conjuntamente.

“Temos a nossa equipe de vigilância, mas não contamos com apoio da Funai ou de outro órgão. A Polícia Federal não está sempre aqui. Agora, queremos que a Funai faça seu trabalho com a gente, em parceria. Não temos poder de polícia, não podemos prender, mas precisamos fazer uma ação periódica porque continua com muita invasão”, diz Kora Kanamari.

Indígenas do grupo de vigilância territorial Kanamari durante monitoramento no Lago Caxias, onde é realizado o projeto de manejo de pirarucu (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Indígenas do grupo de vigilância territorial Kanamari durante monitoramento no Lago Caxias, onde é realizado o projeto de manejo de pirarucu (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Intimidações e ameaças

A Amazônia Real esteve na região para visitar aldeias, entre elas São Luís e Lago do Tambaqui, e acompanhar a expedição de vigilância. Também esteve na base de monitoramento dos Guerreiros da Floresta, criada pelos Kanamari.

É no Médio Rio Javari, considerado o ‘início’ do imenso território indígena de 8, 5 milhões de hectares, que a aliança criminosa entre a extração ilegal de madeira e o narcotráfico cerca os povos Kanamari, Mayoruna e Kulina, três dos sete povos que habitam a TI Vale do Javari – os demais são Marubo, Matís, Korubo, Tyonwük Dyapah (também chamados de Tsohom Djapá) e grupos de indígenas em isolamento voluntário.

Naquela região, quem não aceita o aliciamento e a intimidação dos agentes do narcotráfico é ameaçado e até morto. Muitas destas violências sequer são relatadas oficialmente para evitar represálias e mais mortes. Outras vezes, os relatos são dispersos, com poucos detalhes. Nas raras vezes em que denunciam às autoridades, o medo de ser assassinado passa a fazer parte da rotina dos indígenas, pois as respostas das instituições demoram ou não vêm.

Os indígenas têm pouquíssima estrutura de proteção; dependem apenas de sua coragem. Suas aldeias estão a quilômetros distantes das instituições de segurança que deveriam lhes proteger. Os chefes das aldeias vivem boa parte do tempo incomunicáveis para denunciar qualquer ameaça por falta de estrutura de comunicação. Nem mesmo um simples aparelho de radiofonia, conforme atestou a Amazônia Real.

Na principal linha de enfrentamento às ilegalidades no Médio Javari estão os Kanamari. Eles são a principal barreira contra a destruição da floresta na região. O grupo Guerreiros da Floresta foi criado em 2020 e, com ele, os Kanamari também iniciaram projetos para garantir seu sustento com o manejo de pirarucu. A equipe de vigilância e monitoramento, denominada na língua Kanamari de Kana-An (onça ou ‘o protetor’) é a única da TI Vale do Javari composta e coordenada exclusivamente por indígenas.

Kora Kanamari lembra que as invasões aumentaram no Médio Javari pelo menos desde 2019. Em agosto de 2022, apenas dois meses depois dos assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips, os Kanamari estavam instalados na sua modesta base de vigilância, quando um grupo de invasores ligados ao roubo de madeira na terra indígena e ao tráfico de drogas disparou três tiros contra eles. O jeito foi recuar e assistir de longe aos fogos que os invasores soltaram em comemoração. Eram estrangeiros, possivelmente peruanos, constataram os indígenas.

O episódio, embora divulgado pelos indígenas, teve pouca repercussão e apenas serviu como um sinal de que aquela área da TI Vale do Javari é uma das mais representativas da conexão entre o narcotráfico e outras atividades ilegais. “O Médio Javari é uma região diferente de outras partes da terra indígena. Aqui passa muita gente. Pessoas que não conhecemos navegam 24 horas por dia nele, transitam dia e noite”, diz Kora.

As lideranças ouvidas pela Amazônia Real alertam que nos últimos cinco anos aumentou também o assédio aos seus parentes. Alguns são aliciados em suas próprias comunidades. “Os traficantes dizem: ‘pago tanto para você’ para colher a folha , para caçar, dar comida’. É muito fácil migrar para o Peru”, afirma o líder Kora.

A liderança indígena lembra de outro episódio em que os invasores pegaram um cacique de uma das aldeias do Médio Javari e o ameaçaram. “Disseram: ‘se nós ficarmos sabendo que estão fazendo reuniões contra a gente, vão pagar um preço com sua vida’. Em novembro levaram duas meninas da comunidade Lago do Tambaqui para trabalhar no lado do Peru. Os traficantes levaram elas. Passaram meses. Como elas foram tratadas, não sabemos. Depois voltaram.”

Cacique Mauro chegando na base dos Guerreiros da Floresta, no Médio Javari, após fiscalização para identificar desmatamento na TI Vale do Javari (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Cacique Mauro chegando na base dos Guerreiros da Floresta, no Médio Javari, após fiscalização para identificar desmatamento na TI Vale do Javari (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Apreensão de madeira

Em abril deste ano, a Associação dos Kanamari do Vale do Javari (Akavaja) denunciou que quatro homens falando espanhol e portando fuzis chegaram na aldeia Irari II, também no Médio Javari, e ameaçaram o cacique. O episódio, como um todo, resume a fragilidade em que vivem os indígenas.

A ida dos criminosos aconteceu logo após a apreensão pela Polícia Federal de madeira retirada ilegalmente da terra indígena. A apreensão aconteceu no dia 15 de abril, após denúncia da Equipe de Vigilância da União dos Povos Indígenas Vale do Javari (EVU), que identificou uma grande balsa contendo pelo menos 300 toras de madeira em 11 daquele mês. A EVU é outro grupo de indígenas que faz a autodefesa de seus territórios e ficou conhecida mundialmente por estar ao lado de Bruno Pereira e Dom Phillips até o dia em que foram assassinados. Um grupo de indígenas Kanamari também fazia parte da EVU. Alguns deles se retiraram da equipe, após o crime.

Ainda em abril, a PF comunicou à imprensa sobre a apreensão e disse ter identificado três suspeitos que prestaram esclarecimento ao delegado do caso e prometeu “expedir um laudo em breve”. O que a PF não informou é que a madeira apreendida foi retirada dias depois e levada pelos autores da extração ilegal de madeira. Eles estavam revoltados com a apreensão e suspeitaram que teria sido o cacique o autor da denúncia.

O presidente da Akavaja, que pediu para não ter seu nome identificado nesta reportagem, divulgou uma nota informando a ameaça e pedindo apoio das autoridades, entre elas a PF, o Ministério Público Federal e a Funai. “A PF fez uma apreensão e deixou a madeira no local com algum responsável que não sabemos quem era. Os próprios invasores depois foram pegar elas de volta”, lembra o presidente da Akavaja à Amazônia Real.

Quase dez dias depois da ameaça sofrida pelos indígenas, ele esteve na aldeia Irari II, acompanhando policiais federais. Imaginou que era o início da proteção, mas não foi bem o que ocorreu. Ao chegar na aldeia Irari II, os indígenas correram para o mato, já que pensavam que os narcotraficantes tinham voltado, explica o líder.

“ Ficaram só umas quatro horas, fizeram perguntas, queriam saber os nomes dos bandidos, tiraram fotos. Você acha que bandido diz o nome? Mas indicamos onde poderiam ser encontrados. A tropa da PF não foi lá. Falaram que não tinham a ver com o Peru. E se esses invasores matassem o cacique? O que aconteceu é que acabou em nada a nossa denúncia e os parentes continuaram desprotegidos”, denuncia.

O cacique da aldeia Irari II foi retirado posteriormente da aldeia, está traumatizado e recebendo apoio psicológico. Ainda assim, segundo apurou a Amazônia Real, ele continua sendo perseguido pelos criminosos.

Para o presidente da Akavaja, não basta ter uma base de vigilância da PF em Atalaia do Norte, onde fica localizada a maior parte da TI Vale do Javari. É preciso um trabalho permanente com instalações de barreiras para bloquear o acesso ao território indígena.

Em carta escrita no dia 25 de abril, a Akavaja detalhou como se deu a ameaça ao cacique, e fez críticas à forma como a PF lidou com o caso. “Eles apreenderam a balsa, retiraram da terra indígena, mas não puderam movimentá-la até Atalaia do Norte. A balsa ficou então ancorada na margem do Javari. Em menos de três dias, a balsa desapareceu, provavelmente levada pelos próprios criminosos”, diz documento da Akavaja. A liderança esteve no Acampamento Terra Livre, em Brasília, em abril, participou de reunião no Ministério dos Povos Indígenas e entregou mais cartas de denúncia ao órgão.

“Não basta apenas fiscalizar. É preciso barreiras para ‘tapar’ a boca dos rios. A Funai e a PF têm que tapar a boca do Itacoaí, tapar a boca do rio Curuçá. Só assim vai impedir que os invasores entrem”, frisou Raimundo Roberto Kanamari, outra liderança da etnia, ensinando como se monitora dentro de grande dimensão territorial. Os indígenas defendem que uma base equipada da PF fique dentro da TI, preferencialmente no Médio Javari.

Embarcação de pesca navega pelo lado peruano do Médio Rio Javari (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Embarcação de pesca navega pelo lado peruano do Médio Rio Javari (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Fronteira fluida

Quando esteve no Vale do Javari, a Amazônia Real viu como a travessia do lado brasileiro para o peruano leva não mais que alguns minutos. Os furos que cortam o rio são caminhos rápidos entre os dois países. É tenso navegar pelo Médio Javari, pois no lado peruano existem comunidades ribeirinhas onde, suspeita-se, há plantações de cocaína destinadas ao tráfico. Os indígenas sempre procuram se manter reservados sobre esse assunto, porque eles possuem uma relação de cordialidade com os moradores do lado do Peru. Nessas comunidades peruanas são comuns pontos de comércio de produtos alimentícios, como arroz, bolacha, pão e remédios.

Um ano atrás, os avós de um indígena Kanamari foram mortos por invasores na mesma aldeia Irari II. O indígena não terá seu nome revelado nesta reportagem. “Eles entraram na aldeia para pescar e invadiram a aldeia. Só estavam meus avós e mataram eles”, lembra.

O indígena, um dos mais experientes do grupo Guerreiros da Floresta, contou que em fevereiro deste ano alguns homens desconhecidos encostaram na Base de Vigilância dos Kanamari dizendo que iam “pescar”. Sem armas e sem segurança, os indígenas optaram apenas por ficar observando.

“Falei para o guerreiro que estava comigo: ‘se apronta que vamos ver quem é esse cara aí’. A gente abordou e eles falaram que queriam apenas pescar. Era 11 da noite, passaram e voltaram. Não podíamos revidar. Eram oito e eles estavam com metralhadoras. O que a gente podia fazer além de apenas tentar conversar? Eu disse a eles: ‘A gente está protegendo a nossa terra’. Depois, eles foram embora”, salientou. Conforme o indígena, o grupo invasor permaneceu pouco tempo e sua presença foi “para assustar”.

“Aqui é fronteira, corremos perigo. Os assaltantes peruanos ameaçam a gente quando passamos no rio, na frente das comunidades deles. Os ‘drogueiros’ ameaçam. A gente vê barcos de 60, de 200 HP, tudo com arma pesada”, completa essa fonte indígena. “É por isso que queremos que a Funai faça alguma coisa. Estamos aqui para cobrar esse novo governo. Funai é para cuidar do indígena.”

Vista aérea da Aldeia São Luís, do povo Kanamari, localizada na região do Médio Rio Javari, na TI Vale do Javari (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Vista aérea da Aldeia São Luís, do povo Kanamari, localizada na região do Médio Rio Javari, na TI Vale do Javari (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Covid atrasou vigilância

Há quase três anos, a aldeia São Luís ficou marcada por ter sido a primeira comunidade da TI Vale do Javari a ser contaminada pelo novo coronavírus. São Luís é a maior comunidade do Médio Javari, com cerca de 250 indígenas Kanamari. A chegada da Covid-19 paralisou as ações de vigilância que os Kanamari haviam acabado de iniciar.

Na ocasião, o medo da desconhecida doença levou os moradores de São Luís a correr para o meio da floresta, na tentativa de se refugiar e escapar da doença. Não deu certo. Muitos já haviam sido infectados. Os indígenas se trataram apenas com os remédios da floresta e com seus conhecimentos tradicionais. Não houve mortes, mas as sequelas são sentidas até hoje.

“A gente estava fortalecendo a criação da equipe Guerreiros da Floresta. Iniciamos a construção da base. Mas em 2020 veio a Covid e isso nos deu uma enfraquecida. A gente passou uns seis meses sem fazer vigilância. Ninguém podia pegar sol, era muita dor de cabeça, era difícil caçar, pescar. Foi muito difícil naquela época”, lembra Kora.

São Luís é uma espécie de ‘capital’ do Médio Javari, onde há outras sete aldeias. Nela está localizado o polo-base de saúde e um único telefone público. É um ponto de encontro das ações de vigilância e do projeto de manejo de pirarucu iniciado há três anos e que tem como ponto de partida o Lago do Caxias, tributário do Médio Javari.

“Temos nossa terra e nosso ar. Estou cuidando para não entrar pescadores, madeireiros e outros invasores. O meu povo é animado, tem cultura, bebemos ayahuasca. Mas não adianta lutarmos sozinhos. Precisamos de apoio. Uma vez pedi da Funai: ‘Libera pra gente 40 litros de gasolina para a gente cuidar da nossa terra’. Não conseguimos nada”, conta Mauro Kanamari, cacique da aldeia.

Naquela tarde de sexta-feira chuvosa à margem do Lago do Caxias, o cacique conversava com a reportagem da Amazônia Real em uma pequena embarcação quando decidiu, junto de outras lideranças, visitar a Base Etnoambiental Curuçá, a cerca de uma hora da aldeia São Luís. A base do Curuçá é uma das quatro dentro da TI Vale do Javari construída para monitorar ameaças a indígenas isolados no território. Eventualmente serve como ponto de apoio de denúncias de invasões.

“Queremos conversar com o pessoal”, disse o cacique, antes da decepção que teve ao chegar no local, onde encontrou apenas quatro funcionários da Funai e três policiais da Força Nacional.

Mesmo contrariados por estarem em um trabalho em área tão inóspita, os agentes públicos ouviram os indígenas. Na ocasião, a Coordenação Regional Vale do Javari, vinculada à Funai, ainda estava sem titular nomeado. Semanas depois, foi nomeado Wacirley Durte, do povo Marubo, para a coordenação. Para a Frente Etnoambiental do Vale do Javari foi nomeado ltercley Chagas Rodrigues.

Após quatro anos de um governo desastroso que estimulou invasões das terras indígenas, os Kanamari esperam agora que a gestão de Luiz Inácio Lula da Silva modifique de forma radical as ações de proteção e vigilância.

“A gente votou no Lula e estamos pedindo ajuda dele agora. Queremos que ele fortaleça a Funai, que mande a Funai cuidar da nossa terra. O pessoal da Base está com medo do madeireiro e do traficante. Estamos aqui para ajudar a Funai também. A Força Nacional é mandada para as bases, mas eles precisam ajudar também”, diz o cacique Mauro. “Queremos paz, poder fazer nossa dança, nosso canto, nos livrar dos invasores.”

Liderança indígena Kora Kanamari dirige voadeira na região do médio rio Javari, na TI Vale do Javari(Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Liderança indígena Kora Kanamari dirige voadeira na região do médio rio Javari, na TI Vale do Javari
(Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Autonomia e vigilância

“Meu avô Arlindo dizia: ‘Essa terra é nossa’. O Médio Javari iria ser tirado da demarcação, mas ele lutou muito para incluí-lo. Com a homologação em 2001, tudo silenciou. Acabou o barulho da motosserra. Os não indígenas foram embora. Os parentes isolados voltaram para a beira do rio, sem serem perturbados”, lembra Kora Kanamari.

Nos primeiros anos da década de 2000, a Funai estava fortalecida e havia fiscalização da PF. “Foi bom até 2006. No primeiro mandato do Lula vivemos em paz. No segundo não foi tanto. Nos mandatos da Dilma e do Temer foi um caos. Nos últimos anos, no governo Bolsonaro, voltamos à estaca zero, foi fogo. Ficou como antes da demarcação. Invadido, com a Funai quase fechada e as bases de proteção sem recurso”, afirma o líder Kanamari.

Em 2018, com o retorno das grandes invasões, foi iniciado o projeto de sistema de governança territorial. O governo de Jair Bolsonaro só fazia recrudescer a violência na região. Dois anos depois, os indígenas Kanamari começaram a construção da sua própria base de vigilância, inspirados em um patrulhamento desenvolvido pelos indígenas Ashaninka, no Acre, e em um projeto do povo Deni, no Amazonas. E é aqui que a história se une a um personagem emblemático, o indigenista Bruno Pereira.

“O finado Bruno ajudou em apoio de logística, de conscientização. Ele falou pra gente que não esperássemos do governo naquele momento. Que éramos muito inteligentes para cuidar de nosso território”, lembra Kora Kanamari.

Os Kanamari são conhecidos por seu temperamento festivo. São cantadores e brincalhões. Não é à toa que costumam cantar quando estão na floresta e foi em um desses momentos que ensinaram Bruno Pereira uma música Kanamari, cujo vídeo correu o mundo após seu assassinato, há quase um ano.

Até hoje, falar de Bruno Pereira é muito difícil para os Kanamari. Eles se emocionam quando o nome dele é mencionado. O cacique Mauro Kanamari ficou entristecido quando lembrou da música e emudeceu ao ser indagado pela reportagem. Quando se recompôs, disse:

“O Bruno era melhor para a gente. Ele gostava da nossa terra, andava com a gente. Ia para um lugar, por cima, e varava lá adiante. Era bem dizer nosso irmão, nosso parente. Ele cantava, brincava, tomava ayahuasca junto com nós, comia com a gente”, lembra Mauro Kanamari.

“Ficamos muito tristes quando ele morreu. A aldeia toda chorou muito. Muita gente pensou: ‘Será que vamos conseguir fazer o manejo de pirarucu sem o Bruno?’ Não, vamos continuar, somos guerreiros, vamos cuidar da nossa terra”, rememora Kora.

Indígenas cercam posto da Funai no Vale do Javari: lembranças de Bruno e Dom (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Indígenas cercam posto da Funai no Vale do Javari: lembranças de Bruno e Dom (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Reencontro prometido

No último encontro, Bruno Pereira prometeu aos Kanamari que iria passar 15 dias com a família dele e depois voltaria para o Vale do Javari e daria uma atenção especial às ações no Médio Javari. Queria ensiná-los a como fazer com que o grupo Guerreiros da Floresta pudesse enfrentar as ameaças, tal como havia ensinado aos integrantes da EVU. Mas em 5 de junho ele e o jornalista Dom Phillips foram assassinados.

Os indígenas seguiram em frente. A área escolhida pelos Kanamari para manter uma base é estratégica e cercada por sete lagos. O local é rico em diferentes espécies de peixe (pirarucu, tambaqui e surubim). A estrutura está 50% construída. Tem a moradia principal, um pequeno alojamento, cozinha, ponte de madeira e uma cabine para instalar radiofonia. Toda a estrutura é de madeira e com cobertura de palha.

Eles também pretendem construir uma estrutura de água potável, caixa d’água e ampliar o alojamento. Querem ter uma balsa e para isso estão em busca de suporte financeiro. Conseguiram alguns apoios, como o do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), que doou recursos para a compra de “cotas” de 600 litros de gasolina, machado e terçado. A União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), principal organização da terra indígena, doou duas embarcações de 15 e 13 HP, lentas se comparadas aos motores mais potentes dos criminosos, mas já representam um começo. A Funai, que nunca lhes deu apoio, foi procurada nos últimos meses, já sob o governo Lula.

Os Kanamari também estão em fase de formalização da Cooperativa de Preservação Etnoambiental Autônoma dos Kanamari, na aldeia São Luís (Copeaka). Isso permitirá a eles terem meios de receber apoio financeiro diretamente, sem intermediários.

Fuga para o mato

Navegar pela região é perigoso, mas também é deslumbrante. O Médio Javari é um rio tranquilo e com pouca correnteza em meio a uma floresta fantástica e interminável. Um vento gelado da estação chuvosa bate no rosto de quem desce por suas águas. Na mata, os mosquitos fazem companhia aos humanos. O mais temido é o “pium”. A diversão são os banhos e os mergulhos, as pescarias, as brincadeiras de pega-pega, o futebol – que os Kanamari amam -, e os alimentos da mata.

No dia da chegada da reportagem, as mulheres Kanamari capinavam e limpavam a entrada da aldeia São Luís. As crianças ajudavam e brincavam. Era uma tarefa árdua e cansativa, mas o labor em nada se compara ao período ameaçador do governo Bolsonaro, que elas lembram muito bem. As mulheres Kanamari gostam de se enfeitar nos momentos de lazer e fazem comentários animados. Mas basta mencionar o ex-presidente para voltar a lembrança dos quatro anos horríveis que viveram.

“A gente ficava com medo de qualquer invasor encostar aqui na aldeia. Se isso acontecesse, os moradores fugiam para o mato. Agora, estamos mais alegres, pois o novo governo vai tirar os invasores. Queremos nossa terra livre para nossos filhos e netos”, diz Tereza Kanamari, mulher do cacique Mauro.

Elisabeth Kanamari, sobrinha de Tereza, lembra de quatro anos de medo que todos tinham, especialmente quando seus maridos estavam na base de vigilância Guerreiros da Floresta para defender o território. “A gente achava que os brancos iam matar a gente. Nossos maridos vão sem arma para a base para nos defender. Agora não temos mais medo por causa do novo presidente”, destacou.

Ilda Kanamari, mãe de Kora, é mais implacável. Para ela, a Funai está demorando para agir. “Tivemos um governo que não prestava, que era o Bolsonaro. Por que a Funai ainda não começou a fazer vigilância agora, aqui na nossa terra?”

Indígenas tratam peixe para o jantar na base da vigilância territorial Kanamari, na região do Médio Rio Javari, na Ti Vale do Javari (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Indígenas tratam peixe para o jantar na base da vigilância territorial Kanamari, na região do Médio Rio Javari, na Ti Vale do Javari (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Manejo do pirarucu

Quando não estão em serviço, os Kanamari se divertem nos momentos animados e relaxantes. No dia a dia, raramente voltam da caça sem uma paca, um mutum ou uma anta. São excelentes pescadores e caçadores. Há muitas espécies de peixe no Médio Javari, mas o maior e mais cobiçado está proibido. Há três anos, eles iniciaram um projeto de manejo de pirarucu inspirado em outros exemplos indígenas.

Pela recém-criada Copeaka, e com apoio de especialistas do Instituto Mamirauá, eles encontraram uma forma de evitar a redução do pescado, sobretudo do pirarucu: manejar. Desde 2021, os Kanamari e os Mayoruna deixaram de capturar a espécie para que a população do peixe volte a crescer.

“Na primeira contagem, deu 1.500 pirarucus nos nossos lagos. Fizemos mapeamento e zoneamento. Fizemos uma segunda contagem e vimos que aumentou, chegando a 1.650. Agora, vamos encerrar a terceira”, diz. O Instituto Mamirauá é um centro de pesquisa de diferentes áreas localizado no Amazonas. Uma delas é na prática de projetos de manejo de pirarucu.

Ao término dessa terceira etapa, os Kanamari querem abrir uma cota de pescaria junto ao Ibama (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis) para comercializar o pescado em feiras do município de Atalaia do Norte e, posteriormente, para outros mercados.

“Este é um projeto de cuidado e proteção com nosso território. E também de sustentabilidade para os parentes. Em julho, vamos ter apoio dos parentes Paumari , que vão nos ajudar nesse projeto. Queremos ter autonomia, caminhar com nossos passos, ocupar nosso território. Era o que nossos avós faziam antes da demarcação: ocupavam nossa terra originária. Isso também é uma forma de afastar os invasores”, diz o líder indígena.

Pescadores ilegais representam uma ameaça, porque eles não respeitam os limites das terras indígenas e sabem que nas áreas de manejo encontram pescado farto. Os assassinos de Bruno e Dom negaram, à Polícia e à Justiça Federal, que invadiram o território dos indígenas.

Vista aérea da Base da Funai de Proteção Etno-Ambiental do rio Curuçá (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Vista aérea da Base da Funai de Proteção Etno-Ambiental do rio Curuçá (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Ministério quer nova base no Vale do Javari

Em respostas às perguntas da Amazônia Real, a Funai afirma que “o Médio Javari é uma região fronteiriça com o Estado Peruano e que a Funai está realizando o planejamento de ações com instituições parceiras (Ibama, PF e Exército) para coibir a invasão de pescadores, caçadores e a retirada de madeira ilegal”.

A Funai adverte, em nota, que “com relação ao narcotráfico será necessária uma ação conjunta de articulação binacional entre os Estados brasileiros e peruanos para coibir o narcotráfico na região do Médio Javari buscando-se uma resposta à altura da complexidade dos fatos regionais.” (Leia a nota completa)

Desde março, a PF mantém uma base em Atalaia do Norte, mas o órgão não dá detalhes dessa atividade. A Amazônia Real solicitou entrevista com o superintendente da PF no Amazonas, Umberto Ramos, mas não teve retorno. Também enviou perguntas à assessoria de comunicação do órgão referentes aos assuntos tratados nesta reportagem. As questões foram encaminhadas para a delegada Daniela Aparecida Martins Vales, lotada na Polícia Federal em Tabatinga.

A delegada informou que responderia as perguntas que “forem possíveis resguardando os sigilos operacional e estratégico do trabalho da Polícia Federal”. Ela reiterou que a base da PF está instalada na cidade de Atalaia do Norte, nas proximidades da TI Vale do Javari e que a atuação “se deu em algumas diligências”, como monitoramentos nos rios (que ela não identificou por “questões operacionais”).

Daniela ressaltou a “importância das atividades da PF na localidade, de modo a aumentar a segurança da região, com diminuição da criminalidade, articulação com órgãos e representantes das comunidades indígenas da região, entre outros”. A respeito das madeiras apreendidas, a delegada informou que “não houve prisões, mas ocorreram apreensões de supostos ilícitos ambientais, dando início a investigações que estão em curso”.

Em 27 de fevereiro, uma comitiva do governo federal composta pela ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, e pela presidenta da Funai, Joenia Wapichana visitou Atalaia do Norte. As autoridades receberam um grupo de indígenas e uma carta entregue pela União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja). Foi prometida a inclusão de indígenas ameaçados em programas de proteção e ações dentro do território.

O MPI informou à Amazônia Real que está articulando, no âmbito do Comitê Interministerial de Coordenação, Planejamento e Acompanhamento das Ações de Desintrusão de Terras Indígenas, um grupo de trabalho específico para lidar com a questão de segurança no Vale do Javari. Além de tratativas, junto ao Ministério da Justiça, para ter o apoio da PF e também da Força Nacional de Segurança Pública para combater os ilícitos no Rio Javari e nos rios tangentes à TI.

“Estamos em tratativas para aumentar recursos, com o objetivo de fortalecer as estruturas das bases físicas de proteção etnoambiental da Funai”, disse em nota enviada.

O MPI disse ainda que está em tratativa para aumentar o efetivo de recursos humanos, além de recursos orçamentários para reformar as estruturas físicas das Bases. O órgão disse que é necessário construir uma nova Base no Vale do Javari.

Quanto à balsa da PF em Atalaia do Norte, o MPI diz que solicitou ao órgão para que ela seja deslocada para área mais próxima da terra indígena e solicitou rondas regulares. Em relação às melhorias estruturais nas comunidades, o MPI disse que está criando um GT para acompanhar as ações de proteção territorial na região.

*Elaíze Pires é jornalista e editora de conteúdo da Amazônia Real; Bruno Kally é fotojornalista

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