Estudo apontou que 77% das jovens brasileiras já sofreram algum tipo de abuso nas plataformas ou redes sociais
Por Guilherme Silva, compartilhado de Projeto Colabora
Internet perigosa: pesquisa apontou que 77% das entrevistadas (entre 15 e 25 anos) já haviam sido assediadas ou abusadas online (Ilustração: Batian Lu / Pixabay)
Jéssica*, 24 anos, encontrou um espaço para se expressar, se conectar com pessoas que compartilhavam seus interesses em jogos, construir amizades e uma pequena comunidade: a plataforma de streaming Twitch. Apesar de não ganhar nada financeiramente com as transmissões, dedicava ao menos duas horas por dia após o expediente do seu trabalho – ela é supervisora de atendimento, sua única fonte de renda – aos jogos online que eram transmitidos pela plataforma.
Foi nojento e assustador. Meu hobby, talvez até um sonho, morreu ali; eu não estava esperando aquilo
Jéssica
Supervisora de atendimento
Em 2021, tudo mudou. “Eu cheguei em casa bem cansada e estressada do meu trabalho, não via a hora de começar a jogar e transmitir” disse Jessica. Em certo momento da transmissão, recebeu uma raid (termo usado nos chats quando uma transmissão está para terminar e o criador do conteúdo direciona seu público para outro criador) de outro usuário e notou novos visualizadores que a acompanhavam – cerca de 40 desconhecidos estavam a assistindo jogando. Todos, apesar de serem usuários cadastrados, estavam sem foto, com nomes ofensivos e totalmente anônimos — muitos deles se identificaram como homens em seus perfis; outros eram bots (robôs). A partir de certo momento, começou uma enxurrada de comentários machistas, misóginos e racistas. “O anonimato deixa todo mundo corajoso, comentaram tudo sobre mim. Desde a forma como eu jogava até coisas da minha aparência”, disse Jéssica.
Leu essa? Inteligência Artificial multiplica casos de exploração sexual infantil online
O relato de Jéssica não foi isolado e não se limitou àquele momento. Nas redes sociais, não é difícil encontrar relatos de streamers que denunciam mensagens de ódio, morte, perseguição, racismo, e saudações nazistas. A hashtag #TwitchAjudaAsMina foi criada especialmente para buscar um posicionamento e uma ação da Twitch sobre os diversos casos como esse em que a plataforma não assegura a segurança das suas streamers.
As contas que participam desses ataques são, geralmente, novas e sem seguidores ou foto de identificação. Muitos são bots criados especialmente para o envio simultâneo de uma ou de várias mensagens diferentes em um determinado espaço de tempo com o intuito de manter o engajamento, um assunto ou, no caso de Jessica, o assédio direcionado.
Apesar de continuar seus jogos naquele momento, os comentários anônimos foram escalando radicalmente até que Jéssica notou que vários usuários começaram a assediar sexualmente. “Para mim, ali foi o limite. Eu já estava em um dia ruim, então eu engoli o choro, me despedi e desliguei a transmissão”. No dia seguinte, ela excluiu o seu canal e nunca mais voltou a transmitir. “Foi nojento e assustador. Meu hobby, talvez até um sonho, morreu ali; eu não estava esperando aquilo”, relatou Jéssica.
Jéssica resolveu levar o seu relato para as redes denunciando o que sofreu, mas excluiu a postagem não muito após ter o caso relativizado por outros usuários. “Comentaram que eu poderia ter limitado as mensagens, que eu deveria estar acostumada, que a comunidade é assim mesmo. Em todo o momento, me culpavam pelo assédio que eu sofri”, contou.
No Brasil, oito a cada dez jovens já sofreram com assédio online
Um estudo da organização Plan International, realizado com 14 mil meninas de 15 a 25 anos em 22 países, incluindo o Brasil, revelou um panorama desolador: no mundo, a pesquisa apontou que 58% das meninas entrevistadas na pesquisa já foram assediadas ou abusadas online. No Brasil, o número de vítimas de assédio online chegou a 77%, bem acima da média global.
O estudo ainda revelou que meninas usuárias de mídias sociais em países de renda alta e baixa estão constantemente expostas a mensagens explícitas, fotos pornográficas, perseguição on-line e outras formas perturbadoras de abuso.
No estudo abrangente, o tipo de comportamento mais prevalente é o uso de palavras ofensivas e depreciativas, mencionado por uma grande proporção das jovens que enfrentaram assédio, seguido por situações de desconforto intencional e pressões relacionadas à sexualidade.
Descobri que nesses fóruns tinham fotos minhas em dias comuns, que eu postava nos stories, mas que sexualizavam meu corpo em qualquer mínima ação. Até deep nude meu tinha ali, foi assustador
Marta
Criadora de conteúdo digital
Em âmbito nacional, os dados apresentaram algumas variações: a forma de assédio mais comum ainda é a linguagem abusiva e insultuosa, mas os assédios incluem comentários sobre aparência, sexualidade e questões raciais. “Eu não estou dizendo que não acontece em outros países, mas o que foram muito citados e estão é em graus muito altos é o racismo e comentários LGBTfóbicos”, explica Ana Nery Lima, especialista em gênero e inclusão na Plan International Brasil.
Mais da metade das jovens brasileiras pertencentes a grupos étnicos minoritários e que foram vítimas de abuso afirmam que foram atacadas devido à sua raça ou origem étnica, enquanto uma proporção das que se identificam como LGBTIQ+ relatam ter sofrido assédio em função de sua identidade de gênero ou orientação sexual. “A maioria desses insultos tem comentários homofóbicos, racistas e, sobretudo, sobre características físicas das meninas”, explica Ana.
Muito além do assédio: os fóruns e as deepfakes
Marta*, 21, é outra vítima do assédio online. Há um ano, em uma live no YouTube, conversando com seguidores, até que recebeu uma mensagem de cunho machista e misógino por meio de uma doação no LivePix com um valor baixo. “Assim que a mensagem subiu, o bot leu em voz alta a mensagem e, apesar de eu seguir com a transmissão, não aguentei dois minutos até começar a chorar na frente de todo mundo e encerrar”, contou Marta, que também faz transmissão de seus jogos online no Youtube.
Diferente de Jéssica, ela tentou buscar mais informações sobre seu agressor e acabou descobrindo que o assédio foi direcionado: seu nome, usuários na rede e fotos estavam circulando em fóruns anônimos. “Descobri que nesses fóruns tinham fotos minhas em dias comuns, que eu postava nos stories, mas que sexualizavam meu corpo em qualquer mínima ação” relatou Marta. “Até deep nude meu tinha ali, foi assustador”, acrescentou.
Deep nudes são imagens manipuladas com inteligência artificial para mostrar a nudez falsa de uma pessoa e configuram uma forma de violência digital. Por meio de softwares, qualquer usuário pode criar deep fakes. Além disso, fóruns e comunidades online facilitam a disseminação desses conteúdos sem o consentimento da vítima. Combater essa prática exige medidas como conscientização sobre os perigos da violência digital, leis que tipifiquem e punam a criação e compartilhamento dessas imagens e proteção da privacidade online.
Para Ana Nery Lima, da Plan Brasil, apesar de muitos avanços no combate ao abuso sexual, a tecnologia anda em passos mais largos – e perigosos. “A gente tem ONGs e terceiro setor trabalhando com essas questões. A Safernet, por exemplo, disponibilza um canal em seu site só para denúncias online”, lembra, citando ainda iniciativas na esfera pública. “Temos também operadores do direito, Ministério Público, a nova lei de LGPD…”, acrescenta. Mas, para ela, parece não ser o suficiente: “enquanto a gente tem uns avanços nesse sentido, a inteligência artificial já praticamente estabilizou força total.”
Regulamento das plataformas
A Twitch diz proibir o assédio sexual em suas diretrizes. Em regulamento disponível no site, a plataforma informa que não aceita assedio sexual “independentemente dos comentários serem direcionados para outros dentro ou fora dos nossos serviços”, e não permite investidas e solicitações sexuais indesejadas, objetificação sexual ou ataques degradantes relacionados às supostas práticas sexuais de uma pessoa, independentemente de seu gênero. “Consideraremos indicações de indivíduos afetados pelo comportamento para entender quando investidas e outras declarações são indesejadas, mesmo que não sejam claramente pejorativas”, acrescenta o regulamento. A Twitch, entretanto, nunca se pronunciou sobre a hashtag #TwitchAjudaAsMina e nem comentou sobre os casos relatados nessa reportagem. A plataforma também não tem uma diretriz clara sobre bots e não limita ou bloqueia as contas de diretamente após a denúncias, deixando grande parte o controle das interações para os próprios streamers.
Já o YouTube, em sua política contra assédio e bullying virtual, afirma que não permite conteúdo destinado a pessoas contendo ofensas ou injúria com base em características físicas, status de grupo protegido, como idade, deficiência, etnia, gênero, orientação sexual ou raça e oferece ferramentas e guias para denúncias. Além de incentivar a denúncia do caso diretamente ao órgão local responsável pelo cumprimento da lei.
*Os nomes foram alterados para proteger as identidades das vítimas