Agrônomo Vicente Marques nota que 71% dos assentados se declararam pretos ou pardos, evidenciando o combate à desigualdade
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No percurso das suas 255 páginas, o estudo Estabelecimentos da reforma agrária no Censo Agropecuário 2017 traz algumas informações valiosas para se avaliar a contribuição dos assentamentos no panorama social e econômico do Brasil. Uma delas, por exemplo, indica que, em 82% dos municípios analisados, o número médio de pessoas ocupadas em assentamentos é “significativamente maior ou igual ao de seus vizinhos”. Outra aponta que o valor bruto da produção média foi também maior ou igual ao dos vizinhos em 55% dos municípios avaliados.
Concluído em 2020, com metodologia inédita e alcançando todos os estados, o levantamento resultou de um acordo entre o Incra e o IBGE. Foi tocado pelo agrônomo e doutorando em Desenvolvimento Rural pela Ufrgs, Vicente de Azevedo Marques, e seus colegas Caio Galvão de França e Mauro Eduardo Del Grossi.
Em 71% do total dos estabelecimentos da reforma agrária, o produtor ou produtora se declarou preto (a) ou pardo (a), algo que, nota Marques, “sugere uma contribuição importante da reforma agrária para a equidade de cor/raça”. É mais uma das novidades que traz o estudo.
Aliás, nesta conversa com o Brasil de Fato RS, o pesquisador enfatiza que a reforma agrária “pode ajudar o Brasil a democratizar o poder político e o acesso à terra e aos demais recursos naturais, especialmente por pessoas negras, mulheres, jovens e de povos e comunidades tradicionais”. Confira:
Brasil de Fato RS – Praticamente todos os países com grandes extensões de território fizeram uma grande distribuição de terra no século 20 ou mesmo no século 19. O Brasil é uma exceção. De que maneira uma reforma agrária profunda poderia ajudar o Brasil?
Vicente Marques – Uma reforma agrária “profunda” pode ajudar o Brasil a democratizar o poder político e o acesso à terra e aos demais recursos naturais, especialmente por pessoas negras, mulheres, jovens e de povos e comunidades tradicionais.
Deve estar associada ao reordenamento do uso da terra, da água, da vegetação e dos demais recursos naturais; à geração de empregos/ocupações qualificadas e renda; ao desenvolvimento e à multiplicação de conhecimentos e tecnologias apropriadas; à promoção da soberania e segurança alimentar e nutricional, especialmente por meio do estabelecimento de relações de cooperação entre produtores(as) e entre produtores(as) e consumidores(as); e à valorização dos patrimônios materiais e imateriais (históricos, culturais), entre outros aspectos.
O estudo da distribuição de terras em outros países – não só os de maior extensão territorial – pode ajudar na reflexão sobre as possibilidades e os desafios colocados para a realidade brasileira em uma perspectiva transformadora e inovadora.
“Assentamentos foram responsáveis por uma renda bruta total de R$ 11 bilhões”
BdF RS – Que evidências existem sobre a produtividade e a qualidade de vida nos assentamentos do MST?
Marques – O Censo Agropecuário não tem como objetivo pesquisar a qualidade de vida dos produtores e de suas famílias. É possível, no entanto, destacar outros aspectos:
– Em 2017, a área recenseada com atividade agropecuária em estabelecimentos da reforma agrária foi de aproximadamente 16 milhões de hectares, dos quais seis milhões estavam cobertos com vegetação nativa. Esses estabelecimentos ocuparam 1,6 milhão de pessoas na data de referência e foram responsáveis por uma renda bruta total de aproximadamente R$ 11 bilhões (cerca de R$ 15 bilhões em maio de 2023), além de outros rendimentos com programas governamentais, aposentadorias, pensões e atividades da agroindústria.
– Setenta e um por cento das famílias assentadas em 2017 estavam em centros locais, segundo a classificação do IBGE. Significa que os assentamentos estavam em territórios com fraca centralidade da gestão pública e das atividades empresariais e dependiam de outros centros urbanos para atividades cotidianas de compras e acesso a serviços.
– Cinquenta e dois por cento dos estabelecimentos possuíam área total de até 20 hectares, sendo que 24% estavam em unidades com até cinco hectares. Entre os vizinhos, essas proporções foram de 69% e 43%, respectivamente. Ou seja, embora os assentados possuam uma quantidade pequena de terra (29 hectares, em média), ela é superior à dos vizinhos semelhantes (22 hectares, em média).
“Em metade dos municípios, a receita média dos assentamentos foi igual ou superior à dos seus vizinhos”
– Em todas as unidades da federação houve proporcionalmente maior participação dos (as) produtores(as) de assentamentos em cooperativas e entidades de classe (45% do total) do que nos estabelecimentos vizinhos (37%).
– Em 71% do total dos estabelecimentos da reforma agrária o (a) produtor(a) se declarou preto(a) ou pardo(a). Entre os vizinhos essa proporção foi de 64%, o que sugere uma contribuição importante da reforma agrária para a equidade de cor/raça.
– Em 82% dos municípios analisados o número médio de pessoas ocupadas nos estabelecimentos da reforma agrária em nível nacional foi significativamente maior ou igual ao de seus vizinhos. Essa superioridade ocorreu em todos os estados, especialmente nas regiões Sul (91% do total) e Sudeste (90%).
– Em 55% dos municípios onde foram identificados estabelecimentos da reforma agrária, o valor bruto da produção médio foi significativamente maior ou igual ao de seus vizinhos. Essa vantagem foi maior nas regiões Sul (60%), Nordeste (59%) e Norte (55%)
– Em praticamente a metade (49%) dos municípios onde foram identificados assentamentos da reforma agrária, o valor médio das suas receitas foi significativamente maior ou igual ao de seus vizinhos. A desvantagem ocorreu em maior grau nas regiões Centro-Oeste (64%) e Sudeste (56%), mas foi revertida em 17 estados.
“Produtividade média superior com o milho e inferior na soja e no café”
BdF RS – Pode-se medir a produtividade média por hectare. Assim, é possível dar um exemplo de um hectare do agronegócio ou de grande propriedade, de um hectare da agricultura familiar tradicional e de um hectare da reforma agrária?
Marques – Os dados do Censo Agropecuário 2017 permitem cotejar a produtividade média dos estabelecimentos da reforma agrária com outros tipos de estabelecimentos (grandes, médios, pequenos etc.). No entanto, é preciso cuidar para que eventuais comparações não sejam indevidas (“alhos com bugalhos”).
No estudo realizado, os estabelecimentos da reforma agrária foram comparados com os estabelecimentos vizinhos semelhantes em área, trabalho e direção da unidade produtiva. Em relação a esses vizinhos, a produtividade média das lavouras varia bastante de acordo com o produto. Nos casos do milho, da mandioca, da abóbora, de alguns tipos de feijão, do cacau e da pimenta-do-reino, por exemplo, a produtividade média em nível nacional dos(as) assentados(as) foi superior à dos(as) vizinhos(as). Nos casos da soja, do arroz, da cana de açúcar, do café e da banana, por exemplo, ocorreu o inverso.
É preciso considerar que a produtividade isoladamente não é um indicador adequado para aferir o cumprimento da função social da propriedade prevista na Constituição. Isso porque as altas produtividades podem ocorrer – e geralmente ocorrem – em situações em que os demais requisitos da função social da propriedade não acontecem. Isto é, quando não há aproveitamento racional da terra, com uso adequado dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente ou quando não há observância das disposições que regulam as relações de trabalho e quando o bem-estar dos trabalhadores não é favorecido.
Infelizmente não existem parâmetros oficiais para aferir os demais requisitos da função social da propriedade, o que muitas vezes impede que essas condições sejam levadas em conta pelo Incra para iniciar processos de obtenção de terras e pelo Poder Judiciário para homologar desapropriações para fins de reforma agrária.
“Alta capacidade de geração de emprego e renda mesmo em condições desfavoráveis”
BdF RS – Ao depor na CPI do MST, o agrônomo e político Xico Graziano Neto citou a sua pesquisa, mas cometeu, no seu julgamento, uma grande quantidade de equívocos e distorções. Qual foi o maior desses erros ou a maior lacuna no depoimento?”
Marques – Xico Graziano citou a pesquisa dos estabelecimentos da reforma agrária a partir dos dados do Censo Agropecuário e considerou seus dados válidos cientificamente. O principal problema da sua apresentação foi a falta de esclarecimento sobre o que consta, de fato, no estudo e o que foi dito a partir da sua própria elaboração, sem a citação de critérios, referências e fontes científicas conhecidas.
Além disso, houve a omissão dos resultados do estudo que mostram a elevada capacidade dos assentamentos de gerar emprego e renda, inclusive em comparação com outros tipos de organização da produção. Os resultados omitidos são um contraponto às convicções dele, de longa data, e de outras pessoas sobre a reforma agrária.
BdF RS – Na pesquisa chama a atenção a presença de cultivos que não são comumente associados à produção dos assentamentos da reforma agrária como, por exemplo, a de cana de açúcar com mais de 775 mil toneladas colhidas. Ou a de bovinos de corte em milhares de assentamentos. Qual o dado obtido que mais lhe chamou a atenção?
Marques – Entre vários aspectos revelados pela pesquisa, posso destacar que a elevada capacidade dos assentamentos gerar emprego e renda, se dá mesmo em condições desfavoráveis de localização (centros locais, com vulnerabilidades acentuadas de educação) e de escassez de terras (lotes pequenos para assegurar a sucessão familiar). Porém, a principal novidade para mim foi o fato de que, em 71% do total dos estabelecimentos da reforma agrária o(a) produtor(a) se declarou preto(a) ou pardo(a) enquanto entre os vizinhos semelhantes essa proporção foi de 64%. Esse aspecto é bastante relevante e relativamente pouco discutido na sociedade e no meio acadêmico.
A pecuária de corte e a pecuária de leite são as principais atividades em termos de número de estabelecimentos. A participação da pecuária em geral é semelhante à observada para o conjunto da agricultura familiar, abrangendo 48% do número total de estabelecimentos. A produção de cana de açúcar nos assentamentos é expressiva e está bastante concentrada em estados do Nordeste e do Sudeste, onde se localizam importantes usinas de produção de açúcar e etanol. Essa produção é inferior, porém, à produção da soja, por exemplo. Esses dados sugerem que há uma interface entre a produção dos assentamentos e a produção de commodities, o que merece atenção para novas investigações.
“Há um importante papel do MST e do poder público para a melhoria na educação dos assentados”
BdF RS – Na sua opinião, qual é o papel do MST na educação dos acampados e assentados?
Marques – O estudo mostra que 86% das famílias assentadas na data de referência do Censo Agropecuário 2017 estavam em municípios com baixo ou muito baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) específico para educação. Cerca de 63% dessas famílias estavam em municípios com alta ou muito alta vulnerabilidade conforme o Índice de Vulnerabilidade Social – Capital Humano (IVS-CH) que trata da escolaridade e da mortalidade infantil.
Os dados do Censo Agropecuário 2017 mostram que 27% dos(as) produtores(as) assentados(as) eram analfabetos(as), 19% deles(as) não tinham frequentado a escola e 66% completaram ou estavam, no máximo, no ensino fundamental. Essas porcentagens são inferiores aos seus (suas) vizinhos(as), entre os quais 30% eram analfabetos(as), 20% não haviam frequentado a escola e 64% completaram ou estavam, no máximo, no ensino fundamental. Ou seja, nessa situação crítica há um importante papel do MST e do poder público para a melhoria na educação das pessoas assentadas.
Matéria do Brasil de Fato RS.
Foto: Alex Garcia.