Documentário em animação conta a história de músico desaparecido, numa viagem ao berço da Bossa Nova e à ditadura militar, período onde estão as raízes do conflito armado carioca
Por Oscar Valporto, compartilhado de Projeto Colabora
Na foto: O jornalista de Atiraram no Pianista na paisagem do Rio de Janeiro: documentário de animação é “carta de amor ao Brasil” nas palavras do diretor (Divulgação)
Era uma quinta-feira sombria e não porque o dia nasceu nublado e com chuva. Na madrugada, três médicos de São Paulo haviam sido executados quando bebiam cerveja num quiosque na orla da praia da Barra da Tijuca, em frente ao hotel onde participariam de um congresso internacional de ortopedia. Uma tragédia devastadora e descomunal para as vítimas e suas famílias; uma desgraça para a cidade, para seus moradores, para seu modo de vida, para a economia do turismo.
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Quando entrei no cinema, às 10h, ainda tateava-se em busca de alguma explicação. O horário era incomum: uma exibição para jornalistas do filme que abriria o Festival do Rio à noite, outro evento internacional na cidade. Entrei na sala escura com poucas informações sobre o filme: uma animação sobre o desaparecimento de um pianista brasileiro, tendo como pano de fundo a bossa nova. Não mais do que isso. Mas Atiraram no Pianista era muito, muito mais do isso: tem formato de documentário apesar de ser uma animação; o pianista, Tenório Jr, é um personagem real que acompanhava Vinicius de Moraes em Buenos Aires quando foi sequestrado pela ditadura argentina às vésperas do golpe militar de 1976; o Rio de Janeiro é o cenário da maior parte do filme; e a bossa nova faz parte da trama e da trilha sonora.
Ficou fácil, muito fácil, para o carioca mergulhar no filme e esquecer do mundo lá fora – como convém numa viagem cinematográfica. O docudrama começa com um jornalista americano – personagem fictício – lançando Atiraram no Pianista, numa livraria de Nova York. E contou que o livro nascera após ser convidado a escrever sobre a Bossa Nova, ritmo pelo qual era apaixonado. “Aceitei na hora porque amo essa música e teria a oportunidade de vir pelo menos três vezes ao Rio de Janeiro, minha cidade favorita no mundo”, afirma o jornalista Jeff (com a voz do ator Jeff Goldblum) à sua plateia na livraria.
A partir daí, o personagem incorpora um tanto do diretor espanhol Fernando Trueba (Oscar de melhor filme estrangeiro por Belle Époque, Sedução no Brasil). Após descobrir a música de Francisco Tenório Jr., um virtuoso pianista, mergulhado na cena da bossa nova desde os anos 1950, os dois são atraídos pela história de seu desaparecimento em Buenos Aires. Trueba levou mais de 10 anos e dezenas de entrevistas para montar seu documentário, que tem como estrelas as vozes e as respectivas figuras em animação de Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Milton Nascimento e, em momentos particularmente emocionantes, o poeta Ferreira Gullar (1930-2016) e o pianista e compositor João Donato (1934-2023).
O documentário em animação – com sua parte ficcional ambientada em 2009 – divide-se em três vertentes. Conta a história da Bossa Nova (era o tema inicial do livro do jornalista), com direito a entrevista com o empresário Alberico Campana (1927-2017), dono do Bottle’s e do Litte Clube, boates do Beco das Garrafas, em Copacabana, que viraram reduto da Bossa Nova. A animação permite que o filme refaça o famoso encontro de Vinicius de Moraes com Tom Jobim no Villarino, que deu início à parceria, e a gravação de Jobim com Frank Sinatra. No Rio de Janeiro de 2009, Jeff, hospedado em Ipanema, e seu amigo brasileiro João (com a voz de Tony Ramos) vão não apenas ao Villarino e ao Beco das Garrafas, mas também ao Jobi e à (hoje fechada) Toca do Vinicius.
Até o golpe de 1964, o Brasil era um país moderno, vanguardista. Como seria hoje se os militares não tivessem interrompido aquela evolução?
Fernando Trueba
Cineasta e co-diretor de Atiraram no Pianista
Seu tema principal, entretanto, é a história de Tenório Jr: da gravação de seu único disco, Embalo, em 1964, com a participação do trombonista Raul de Souza e do saxofonista Paulo Moura, até o desaparecimento em Buenos Aires com entrevistas com o violonista e compositor Toquinho e do baterista Mutinho, que também acompanhavam Vinicíus em 1976 – o depoimento de Ferreira Gullar é importante porque ele estava exilado na Argentina na época do golpe e ajudou a procurar o pianista desaparecido. A mulher, Carmem, e três dos cinco filhos de Tenório Jr. também dão depoimentos – sempre audio original e personagens animados no filme.
Atiraram no Pianista – que estreia nos cinemas no dia 26 de outubro – também abre uma vertente para contar mais dos anos de chumbo na América Latina, com os golpes articulados com a ajuda da CIA, e as ditaduras instaladas na região, com entrevistas com o jornalista John Dinges, autor de livro sobre a Operação Condor (um consórcio das ditaduras sul-americanas), o advogado brasileiro Luiz Eduardo Greenhalgh e o ex juiz Eduardo Luis Duhalde, secretário dos Direitos Humanos da Argentina por 10 anos, dois defensores das vítimas da repressão em seus respectivos países. O documentário reproduz ainda a entrevista de um ex-militar argentino a uma revista brasileira, em que ele relata o sequestro, tortura e assassinato de Tenório Jr.
Em entrevista ao jornalista e crítico Carlos Heli de Almeida, Trueba diz que Atiraram no Pianista é “uma carta de amor ao Brasil, à sua cultura e à sua música”. Eu diria que é também ao Rio de Janeiro – co-diretor do filme, o designer e ilustrador Javier Mariscal veio à cidade para o festival e fez questão de conhecer o Jobi. “Até o golpe de 1964, o Brasil era um país moderno, vanguardista. Como seria hoje se os militares não tivessem interrompido aquela evolução?” – é a pergunta deixada por Trueba na entrevista ao Heli, que leio após voltar à cidade nublada.
Ao sair do cinema, já corre a versão – mais tarde confirmada – que os médicos foram executados por engano em mais um capítulo da guerra em curso na Zona Oeste do Rio há pelo menos um ano, que envolve traficantes aliados a milicianos de um lado a milicianos aliados a traficantes do outro, sem que a polícia seja capaz de proteger a população.
E termino aqui explicando como a violência na cidade também tem raízes na ditadura: as milícias são filhotes dos esquadrões da morte, grupos de extermínio surgidos durante a ditadura que serviam como linha auxiliar na caça a opositores do regime, vendiam segurança a grandes comerciantes e empresários (inclusive de atividades ilegais como jogo do bicho e contrabando) e extorquiam os pequenos. E o Comando Vermelho, maior facção criminosa no Rio, nasceu no presídio da Ilha Grande na década de 1970, onde a ditadura trancafiou, juntos, criminosos perigosos e presos políticos. Alguns autores afirmam que os bandidos viram as vantagens da atuação organizada nos grupos de resistência ao regime.