Por Breiller Pires, compartilhado de El País –
Clubes e dirigentes tratam jogadores como cobaias ao manter formato de competições na pandemia e relativizar riscos de contágio em massa
Não bastasse ter começado no mesmo fim de semana em que o país ultrapassou a marca de 100.000 mortos por coronavírus, o Campeonato Brasileiro se estabelece como um foco de propagação da doença diante de falhas no protocolo e a resistência de vetar jogos sob risco de contágio. No último fim de semana, a partida entre Goiás e São Paulo, mesmo com a confirmação de nove atletas infectados na equipe goiana, só foi suspensa minutos antes do apito inicial, quando as equipes já estavam em campo.
Sem contar com protocolo realmente seguro e confiável, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) decidiu liberar jogadores do Atlético-GO que testaram positivo para covid-19 antes do duelo contra o Flamengo, entendendo que, com base em estudo da agência de saúde norte-americana CDC, não há possibilidade de contaminar outras pessoas pelo fato de já terem testado positivo há mais de 10 dias e permanecerem assintomáticos. No entanto, até a semana passada, a entidade garantia que qualquer jogador positivado deveria ser vetado das partidas e colocado em quarentena.
Enquanto o Brasil se mostra incapaz de controlar a pandemia, o futebol se apega a certezas circunstanciais e convenientes para manter a roda das competições girando em uma engrenagem de normalidade. A CBF ignora, por exemplo, que as atualizações em estudos sobre a covid-19 têm sido constantes, como a recente mudança no parâmetro do tempo médio de incubação do vírus, que aumentou de cinco para sete dias. Ou até mesmo nas próprias pesquisas do CDC, que, em março, julgava como pouco provável o surgimento de sintomas graves em crianças, mas agora reconhece que a proporção entre as que manifestam formas severas da doença é semelhante à dos adultos. Inclusive, a investigação científica sobre o processo de transmissão por pessoas assintomáticas segue em aberto.
O fato, esse sim admitido pela CBF, é de que não há 100% de segurança ao se tratar de uma doença nova, ainda em análise pela ciência. Argumento que deveria ser suficiente para tornar proibitiva a realização de um campeonato extenso, com 38 rodadas, em distintas cidades de um país de dimensões continentais que acumula mais de 3 milhões de infectados pelo vírus. Mas, ao optar por expor atletas e funcionários de clubes a riscos, com a devida cumplicidade dos cartolas, para preservar a estrutura de seus torneios nacionais, a confederação reflete a postura de governos que insistem em negar a gravidade da pandemia e colocar interesses econômicos acima da saúde.
Ligas europeias —ao menos as principais— retomaram campeonatos em estágio de desaceleração estabilizada da pandemia, diferentemente do Brasil. Alguns torneios, como a Champions League, que confinou times em uma única sede (Lisboa), tiveram formato alterado e reduzido. Ainda assim, dois jogadores do Atlético de Madri, embora assintomáticos, foram cortados do jogo contra o RB Leipzig após resultados de teste positivo. A Espanha, um dos países mais afetados pelo coronavírus, registra novo aumento de casos e mortes nas últimas semanas.
O que torna ainda mais complexa a manutenção de um campeonato no Brasil em tempos excepcionais são os estágios diferentes da pandemia em cada Estado e as longas viagens impostas aos clubes, já que a CBF não abriu mão do formato de pontos corridos em turno e returno, e ainda espremeu o intervalo entre partidas para terminar a competição até fevereiro de 2021. Dirigentes da confederação resistem em adiar rodadas e, sobretudo, suspender o Brasileirão devido a casos de contágio em sequência. Pela Série B, o CSA teve seu jogo contra a Chapecoense adiado depois de 18 atletas, mais de 80% do elenco, testarem positivo. Porém, o confronto entre Cruzeiro e Guarani, clube que havia enfrentado o CSA na estreia do campeonato, aconteceu normalmente, desconsiderando a possibilidade de contaminação por atletas que possam ter contraído o vírus na janela de testagem ou apresentado carga viral indetectável em falso negativo.
De acordo com o protocolo, os jogadores devem ser testados 72 horas antes de cada jogo. Entretanto, como não há obrigação de ficarem confinados, ainda podem ser infectados e, consequentemente, infectar outras pessoas até que se submetam a um novo teste na rodada seguinte. Vetores potenciais do vírus, colocam em risco seus familiares, funcionários de clubes e profissionais envolvidos na logística de deslocamentos em hotéis, concentrações e aeroportos. Ao consentir que ajustes no protocolo serão feitos da mesma maneira que se “troca pneu com carro andando”, a CBF chancela o experimento egoísta do futebol para alcançar uma questionável imunidade de rebanho. O Corinthians, por exemplo, já teve 23 atletas infectados —Gil e Léo Natel foram afastados da delegação para a partida contra o Atlético, nesta quarta, mesmo enquadrados na regra improvisada pela entidade dos positivos assintomáticos há mais de 10 dias.
Afrouxando o protocolo e fechando os olhos para as brechas de contaminação, logo o campeonato terá boa parte de seus jogadores “zerados”, livre da obrigação de se submeter a testes por já ter pegado a doença, a ponto de que a competição transcorra como um universo paralelo em meio à pandemia. Porém, até que se verifique a forçada imunização coletiva nessa bolha repleta de furos, quantas pessoas envolvidas na organização do futebol terão sido infectadas pela relativização do poder de contágio do vírus? A quantas outras, de fora do circuito, terão transmitido a doença? Quantas vidas, direta ou indiretamente, serão ceifadas pela pressa de retomar uma atividade não essencial?
Um custo que, definitivamente, tem sido excluído dos cálculos para bancar testes e garantir a entrega das competições aos patrocinadores. Em maio, o Flamengo perdeu um funcionário, o massagista Jorginho, para o coronavírus. A morte não freou o ímpeto da diretoria rubro-negra, principal avalista da volta do Campeonato Carioca. Com o maior faturamento do país, o clube consegue fretar aviões para seus jogadores e disponibilizar testes rápidos a toda a delegação, além dos previstos pela CBF. Realidade oposta à da maioria das equipes, sobretudo os de terceira e quarta divisão que dependem de voos comerciais para os deslocamentos de longa distância.
Quando se anunciou a retomada do futebol, houve jogador de time grande agradecendo políticos e dirigentes por ser feito de cobaia no pico da pandemia, alheio às limitações de equipes menores para cumprir integralmente os protocolos. Alexandre Pato, do São Paulo, chegou a questionar as pressões para acelerar o início dos jogos, mas não hesitou em defender o presidente que já demitiu dois ministros da Saúde durante a crise sanitária. Entusiasta da volta das competições desde abril e bajulado por vários boleiros, Jair Bolsonaro os enxerga como ratos de laboratório que testam a letalidade do vírus em nome da saúde financeira dos clubes e da flexibilização das medidas de isolamento social. Contribuíram para eleger um negacionista que joga contra a estabilização da pandemia, acabou com o Ministério do Esporte e prega a política de exposição à doença por parte daqueles que ostentam “histórico de atleta”.
Em julho, o atacante Roberto, da Chapecoense, ficou quatro dias internado por complicações do coronavírus. Ao todo, 26 funcionários do clube testaram positivo, o que resultou na suspensão do Campeonato Catarinense. Tanto na esfera esportiva como em qualquer região do país, a imunidade de rebanho não deveria passar de uma ilusão distante, tão surrealista quanto o próximo experimento em vista dos dirigentes, que, não satisfeitos em mandar jogadores a campo como se fossem gado de teste, já pressionam pelo retorno das torcidas aos estádios. No jogo do desprezo pela vida, o futebol desponta como franco favorito.