As notícias de 19/08 devem ser lidas como uma articulação movida por militares e, principalmente, pelo entorno de Bolsonaro.
Por Letícia Sallorenzo, compartilhado de Jornal GGN
A leitura dos jornais ontem (19/8) foi muito estranha, repleta de pressupostos, subentendidos e entrelinhas que mostram que exército e entorno de Bolsonaro estão se mobilizando. Mas a alteração de comportamento discursivo não se deu da noite pro dia. Veio num crescendo, desde o início da semana. As notícias de ontem devem ser lidas como uma articulação movida por militares e, principalmente, pelo entorno de Bolsonaro.
- Ibaneis blindado por Folha e Estadão
Vou começar a destacar o fato de que, de acordo com a coluna do Estadão, “aliados de Ibaneis [Rocha, governador do DF] correram para propagar que quem nomeou Klepter [Rosa Gonçalves, o comandante da PMDF preso ontem) foi Ricardo Capelli, e não Ibaneis” O mesmo Estadão que informou à pág. 2 da edição de hoje que se tratava de movimentação do entorno de Ibaneis deu meia página para o assunto na página A12 (imagens abaixo). Também a Folha destacou a “nomeação feita por Capelli”.
Mas da Folha eu vou falar por último, porque a movimentação do jornal dos Frias é de longe a mais assombrosa e assustadora do dia. Fato é que o entorno de Ibaneis está com receio de que o governador seja convocado a depor na CPI do 8/1, daí a movimentação – corroborada por Folha e Estadão (e não por Correio Braziliense ou Globo).
- Advogado de Cid acuado, Bolsonaro humildão
Aí chegamos no recuo do advogado do Cid, transmitido ao vivo ontem pela Globonews e repercutido hoje.
Ficou muito claro que Cezar Bittencourt foi pressionado, na madrugada de quinta para sexta-feira, por Paulo Amador da Cunha Bueno, advogado de Bolsonaro no caso das joias, a recuar do que ele disse à Veja. Esse recuo de Bittencourt foi ponto fora da curva, para muito além de “Veja malvada manipulou o texto do bondoso advogado de Cid”. Chamou a atenção a mudança radical de postura do advogado.
Uma notinha na coluna de Denise Rothenburg no Correio Braziliense de ontem dá a liga. O texto afirma (e essa afirmação não saiu do nada, se não foi apuração foi plantação) que Cid recebia ordens também de Augusto Heleno e Luis Eduardo Ramos. “Logo, nem tudo pode ser atribuído como ordem direta do Presidente da República”. O texto prossegue, afirmando sem modalizações ou suposições, que “o advogado Cezar Bittencourt vai seguir por essa linha, sem colocar tudo nas costas do presidente”. Quem deu a Rothenburg tamanha certeza dessas ações? A notinha vem curiosamente ilustrada com chuvas e trovoadas sobre um Bolsonaro respingado e, do nada, um ventilador que, embora aponte para a nuvem carregada, também serve para “espalhar merda”.
Some a isso o Estadão mostrando (em vídeo de 12 minutos) um Bolsonaro humildão, “comendo pão com manteiga e café com leite numa padaria em Abadiânia”, e repercutindo o “fato” (criado e plantado) em suas páginas de hoje. Ontem, o jornal fez com que seus leitores percebessem e pudessem experimentar as respostas esclarecedoras de um ex-presidente falando baixo, respondendo educada e respeitosamente a todas as perguntas feitas por dois repórteres, num vídeo feito de forma amadora (um celular gravando a conversa, não foi uma videorreportagem, com microfone a câmera profissional) que de fortuito não tem absolutamente NADA.
Nesse vídeo, para além do que já foi destacado pela imprensa, há duas falas de Bolsonaro que devem ser registradas e recortadas:
a) Eu continuo pautando a mídia – pra mim, isso significa que ele vai continuar com o ecossistema de desinformação – e tem verba para isso.
b) Pelo que eu sei, ele [Delgatti] não foi recebido por ninguém [do ministério] da Defesa – Essa frase se articula com outra nota de Denise Rothenburg, na edição de ontem (18/8) do Correio Braziliense, que informa que “a cúpula do ministério da Defesa (leia-se José Múcio) levantou, antes do depoimento de Delgatti(grifo meu), todos os registros de presença do hacker no prédio e nada foi encontrado” (não foi encontrado ou foi apagado?)
- Folha e a guinda pró-Bolsonaro; Monica Bergamo e os “apoiadores do ex-presidente”
Estou observando essa movimentação muito estranha da Folha desde o início da semana a partir da insuspeita Monica Bergamo.
Monica é jornalista de longa data, não é deslumbrada com o poder, sabe quando está sendo usada para passar recados e sabe se desvencilhar dessas saias justas. Por isso me chamou a atenção o excesso de notícias do entorno de Bolsonaro (“apoiadores do ex-presidente”) passando recados a torto e a direito via coluna de Monica Bergamo.
Na terça-feira (15/8), a colunista informou que Bolsonaro discutiu com aliados a possibilidade de convocar manifestações de direita ara o 7 de setembro, pois eles acreditam que ele é capaz ainda de “colocar milhões nas ruas”, mas o ex-presidente avaliou que é melhor ficar comportado, pois as manifestações podem pesar contra ele na Justiça”. Bergamo também informou na terça que a história das joias “deixou o presidente baqueado” (pausa para você se lembrar quantas vezes, entre novembro e dezembro do ano passado, você leu que Bolsonaro estava deprimido, e as notícias de hoje deixam claro que ele estava é conspirando contra a República).
No dia seguinte (16/8), cinco dias depois da busca e apreensão contra Mauro Lourena Cid – o pai, Bergamo volta a falar de Bolsonaro: “Mauro Lourena Cid começou a se afastar de Jair Bolsonaro depois que o filho foi pra prisão. O clima entre ele e Bolsonaro é de tensão. (…) apoiadores do ex-presidente creditam a frustração e atenção do general ao fato de ele não ter nenhuma noção de política e, portanto, não entender os rumos que as coisas tomaram”.
Levando-se em conta os valores reacionários e machistas de Bolsonaro, ele busca se apresentar superior a Cid pai. Este, por sua vez, “não compreende e não tem noção de política”. Bolsonaro está tratando Cid pai como mulherzinha, subjugando-o e diminuindo sua importância, numa relação tóxica típica de homens agressivos como ele. Construção discursiva como essa foi percebida por mim ao longo dos últimos três anos contra membros do Supremo Tribunal Federal. Lembre do discurso de Bolsonaro contra Alexandre de Moraes no 7/9/21 (“Qualquer decisão do senhor Alexandre de Moraes, este presidente não mais cumprirá!”) e, no dia 31/3/22, Bolsonaro defenderia a ditadura e, mais uma vez, viria a agredir ministros do STF, como conta Guilherme Amado no livro Sem Máscara, na pág. 418: “Se não tem ideias, cala a boca. Bota a tua toga e fica aí. Não vem encher o saco dos outros.” Depois de Alexandre de Moraes, Luis Roberto Barroso e Edson Facchin, é a vez de Mauro Lourena Cid ser tratado por Bolsonaro como uma mulherzinha.
Mas, voltando a Mônica Bergamo, ontem à tarde, Bergamo publicou nota (que saiu na edição impressa de hoje), após ouvir os “apoiadores do ex-presidente”, que dá conta de que o grupo “não acredita que o ex-presidente possa ser preso nos próximos dias (…) Eles acreditam que Alexandre de Moraes (…) não teria a coragem de prendê-lo sem um motivo muito bem fundamentado. (grifo meu)
A escolha da construção “não teria coragem de” na redação do texto não foi fortuita, e não foi sem querer. Foi deliberada, e mostra um Bolsonaro trucando Alexandre de Moraes (o que Bolsonaro se esquece é que, nesse metafórico truco político, a Justiça sempre sai com o zap na mão. Não se truca com a Justiça – e ele já teve várias oportunidades de aprender essa lição.)
Para além de Mônica Bergamo, a reportagem da Folha de hoje sobre a homenagem que Bolsonaro recebeu na Assembleia Legislativa de Goiás traz para o lead (ou seja, o assunto mais importante e de maior relevo) o fato de que o ex-presidente “corre risco no Brasil”. Esse “Corre risco”, sem maiores explicações, pode aludir até mesmo a risco de vida. Mas o texto explica que o risco que ele corre é o de ser preso.
Resumindo: Folha e Estadão estão dando palco para Bolsonaro E para militares. Isso não é pouca coisa, e isso demonstra a movimentação, na sombra, de atores políticos que só se movem nas sombras.
Leticia Sallorenzo – Mestra em Linguística pela Universidade de Brasília (2018). Jornalista graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1996). Graduaçao em Letras Português e respectivas Literaturas pela UnB (2019). Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Jornalismo e Editoração. Autora do livro Gramática da Manipulação, publicado pela Quintal Edições.