Por Ligia Coelho, publicado em Projeto Colabora –
Mais de 1.700 casos foram registrados no País em 2018. Ações de combate ao crime alcançaram locais de difícil acesso
(Fotos de João Roberto Ripper) – Em 2018, em todo o Brasil, 1.723 trabalhadores foram encontrados oficialmente vivendo em condições análogas à de trabalho escravo, quase o triplo do que foi registrado em 2017, que chegou a 645 casos. As informações constam do Radar do Trabalho Escravo, elaborado pela Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT). O órgão, federal, é responsável pelas ações de combate a essa modalidade de crime, por meio da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae), e hoje, após o fim do Ministério do Trabalho e Emprego, está vinculado ao Ministério da Economia.
Segundo informações da subsecretaria, as ações de combate coordenadas pela auditoria fiscal do trabalho em 2018 foram executadas conforme planejamento prévio, sem restrições orçamentárias. Contudo, em 2017, houve um “contingenciamento de recursos que atingiu a Secretaria de Inspeção do Trabalho com um corte de 70% do orçamento entre março e agosto”. Além disso, o número de auditores fiscais do trabalho tem diminuído ano a ano em razão de aposentadorias. O último concurso de ingresso no cargo ocorreu em 2013.
Inteligência fiscal – A boa notícia é que o Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), criado em 1995 e coordenado pela auditoria fiscal do trabalho, realizou em 2018 ações de inteligência fiscal com o intuito de planejar operações em locais de difícil acesso e com maior número de trabalhadores possivelmente vítimas de trabalho escravo. Desse modo, foram encontrados mais trabalhadores vivendo nessa condição que nas operações com menor complexidade de deslocamento.
Essas circunstâncias explicariam o aumento substancial nos flagrantes de trabalho escravo em 2018, conforme observa o chefe da Detrae, Maurício Krepsky Fagundes. Segundo ele, por enquanto, as mudanças decorrentes do fim do Ministério do Trabalho e Emprego, após 88 anos de existência, não teriam alterado a atuação do GEFM, que continua sob a coordenação nacional da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho e coordenação operacional da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae). O auditor fiscal avalia que a condição análoga à de escravo tem forte relação com a informalidade e o desemprego.
Perfil – O perfil das vítimas de trabalho escravo divulgado pela secretaria demonstra que 45% dos trabalhadores maiores de 18 anos resgatados nunca possuíram um emprego formal antes, 57% não tiveram nenhuma ou apenas uma admissão no mercado de trabalho formal e 72% tiveram, no máximo, três admissões registradas no histórico laboral.
No curso da ação fiscal, no ano passado, 904 trabalhadores tiveram sua condição trabalhista formalizada, 224 estabelecimentos foram fiscalizados e 1.048 guias de seguro desemprego foram emitidas. As ações resultaram em quase R$ 3,5 milhões em verbas rescisórias recebidas pelos trabalhadores (R$ 3.439.735, 28).
Pecuária, café e produção florestal são campeões da lista suja
Segundo o Radar do Trabalho Escravo, em 2018, a pecuária bovina liderou as estatísticas das empresas relacionadas à lista suja, repetindo o que se verifica ao longo de toda a série histórica desde 1995. Em seguida vem o setor de produção de café, acompanhado de perto pelo de produção florestal (florestas nativas e plantadas) e pelas atividades de apoio à agricultura e de cultivo de soja, entre outros.
Chama-se lista suja a base de dados criada no antigo Ministério do Trabalho que reúne empresas e empregadores que violam a legislação e mantêm cativos seus empregados, trabalhando em condições degradantes ou presos por pretensas dívidas. Por meio de um pacto com o governo, as empresas se comprometem a atender determinados requisitos, podendo sair da lista após um ano se cumprirem os compromissos assumidos.
Pará é o estado com maior número de ocorrências
De acordo com o relatório anual da Comissão Pastoral da Terra (CPT), concluído na semana passada, o campeão nessa modalidade de crime, em 2018, foi o Estado do Pará, com 13.352 casos, seguido pelos Estados de Mato Grosso (6.169), Goiás (4.176), Minas Gerais (3.906), Maranhão (3.395) e Bahia (3.350).
Os dados também revelam um aumento substancial nos últimos dois anos no número de resgates. Em 2017, foram libertados 549 trabalhadores em todo o Brasil. Em 2018, esse número chegou a 1.154, mais que o dobro.
O número de libertados difere do número de escravizados entre outras razões porque, em alguns poucos casos, os trabalhadores se negam a deixar as condições degradantes em que vivem.
Quem explica é o frei Jean Marie Xavier Plassat, coordenador da campanha “De olho aberto para não virar escravo”, da Comissão Pastoral da Terra. Segundo ele, foi o que ocorreu em fevereiro de 2018, no Sul de Minas Gerais, quando a Polícia Federal flagrou mais de 300 trabalhadores escravizados por uma seita religiosa denominada “Traduzindo o verbo: a verdade que marca”, antes conhecida como “Comunidade Evangélica Jesus, a verdade que marca”.
Os responsáveis pela seita teriam aumentado em três vezes o número de fiéis, a maioria na área rural, mas alguns também na área urbana. A operação policial estendeu-se ainda à Região Metropolitana de Belo Horizonte e aos estados de São Paulo e Bahia. Apesar do flagrante, nem todos aceitaram abandonar a seita e as condições em que viviam.
Imagens de dor e sofrimento
Crescem tentativas de reduzir combate ao trabalho escravo
Na opinião do frei, o fim do Ministério do Trabalho, o aumento da informalidade e a flexibilização da legislação trabalhista são apenas alguns ingredientes na constante tentativa de grupos conservadores, em sua maioria ligados a latifundiários e grandes empreendimentos, de destruir ou minimizar o combate ao trabalho escravo, que vem alcançando êxito desde 1995. Naquele ano, por pressão internacional, o país foi obrigado a admitir perante a Organização dos Estados Americanos (OEA) a existência de trabalho escravo em seu território.
Entre essas tentativas, ele inclui a suspensão da lista suja por dois anos, entre 2014 e 2015, retomada no final de 2016, e as recorrentes propostas que visam alterar o conceito de trabalho escravo tal como constante no artigo 149 do Código Penal desde 2003. Esse artigo prevê pena de reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência, a quem “reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”. Os que não concordam querem modificar a redação, propondo eliminar expressões como “jornada exaustiva” e “condições degradantes”.
“Não podemos dizer que houve redução nas ações de combate ao trabalho escravo; ao contrário, em 2018 houve até um incremento na fiscalização, devido ao empenho dos agentes envolvidos. Mas há constantes ameaças, seja de redução de recursos, seja de mudanças na legislação, como a terceirização, o aumento de profissionais autônomos e a extensão da jornada”, lamenta o frei, lembrando que desde 1995, quando foi criado o GEFM, mais de 53 mil trabalhadores brasileiros que viviam em condições análogas à escravidão, foram libertados.
Sobre o receio de retrocesso manifestado por estudiosos e organizações ligadas à defesa dos direitos humanos, o auditor fiscal Maurício Krepsky Fagundes afirma que “as ações estão ocorrendo normalmente desde o início do ano e o Brasil possui compromissos internacionais em não permitir formas modernas de escravidão no território nacional”. Além disso, acrescenta, a própria Constituição Federal possui como fundamento a dignidade da pessoa humana e proíbe os tratamentos desumanos e degradantes”.