Por Oscar Valporto, compartilhado de Projeto Colabora –
Estudo de pesquisadores da UFMG mostra que redução drástica no julgamento de processos por desmatamento e no número de propriedades embargadas
Entre 2019 e 2020, houve uma redução de 43,5% na média anual de autos de infração contra a flora lavrados na Amazônia Legal em relação ao período de 2012 a 2018. Estudo recém-lançado do Centro de Sensoriamento Remoto (CSR) e do Laboratório de Gestão de Serviços Ambientais (Lagesa), ambos da UFMG, aponta que, neste intervalo, foram lavrados, em média, 4.620 autos anuais; nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro, foram apenas 2.610 autuações, apesar de aumento nas taxas de desmatamento em 2019 (10,1 mil km2) e 2020 (10,9 mil km2), a maior já registrada em 12 anos.
No documento, os pesquisadores destacam que também houve uma redução substancial no julgamento dos processos de infração, “cuja letargia aumenta o risco da prescrição punitiva”. As mudanças no rito de sanções tornaram o processo mais lento e centralizado. “Houve paralisia dos julgamentos. Enquanto de 2014 a 2018 eram julgados anualmente em média 5 mil processos, em 2019 foram julgados 113 e em 2020 apenas 17”, afirmou o pesquisador Raoni Rajão, professor de Gestão Ambiental da UFMG.
O estudo ‘Dicotomia da impunidade do desmatamento ilegal’ – assinado, além de Rajão, pelos pesquisadores Jair Schmitt, Felipe Nunes e Britaldo Soares-Filho – alerta ainda que o número de multas pagas caiu de uma média de 688 entre 2014 e 2018 para 73 e 13 em 2019 e 2020. Os pesquisadores também frisam que 2020 foi o primeiro ano da série histórica em que o número de desembargos foi superior ao de embargos, com uma redução drástica no número de embargos ambientais que caíram de 2.589 em 2018 para 385 em 2020. “Essa redução ainda mais acentuada nos embargos do que nas infrações é preocupante, pois indica a adoção de uma estratégia de fiscalização que evita causar sanções econômicas imediatas para os infratores”, alerta o documento.
Punição ao desmatamento a partir de 2004
Os pesquisadores fazem uma análise da evolução da responsabilização administrativa ambiental no âmbito federal, com base em dados do Ibama, principalmente, e também do ICMBio, criado em 2007. O documento enfatiza que, a partir de 2004, com a criação do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia (PPCDAm), foram realizados significativos investimentos para fortalecer a capacidade de fiscalização ambiental do Ibama, como foco em conter o avanço do desmatamento, na sua maioria ilegal. “Foram contratados e treinados centenas de servidores para atuarem como fiscais, houve reforço na dotação orçamentária e financeira, foram adquiridos materiais e equipamentos, melhorados os sistemas de monitoramento e ampliado o rol de infrações e de sanções punitivas”, afirma o estudo.
Esses investimentos tiveram como consequência a reversão das taxas de desmatamento, com o crescente número de autos de infração, registrados entre 2004 e 2012. Em 2012, quando foi registrada a menor taxa de desmatamento na Amazônia, também foi aprovado o novo Código Florestal. A nova legislação resultou na anistia de 58% de todo o desmatamento ilegal realizado até 22 de julho 2008. “A aprovação do Código Florestal e a suspensão de grande parte dos 28 mil autos de infração, que totalizam R$ 4,8 bilhões aplicados por danos contra a flora cometidos antes de 2008, aumentou o sentimento de impunidade”, destacou o professor Raoni Rajão.
O estudo mostra que, a partir de 2013, passou a ocorrer uma flutuação nas taxas de desmatamento com alternância de redução e elevação. Nos anos seguintes, o Ibama fazia entre 4 e 5 mil autuações por ano – número que caiu a partir de 2015, com a crise econômica, que reduziu o orçamento do órgão, e com as mudanças nas superintendências regionais, com indicações políticas, promovidas pelo governo Temer. “Também houve troca de muitos gestores, o que repercutiu em perda de qualidade e continuidade do trabalho como resultado, o desmatamento na Amazônia chegou a 7,5 mil km2 em 2018”, afirmam os pesquisadores.
Autuações, multas e embargos em queda
O estudo constata o desmonte acelerado das políticas de controle do desmatamento, após a eleição do presidente Jair Bolsonaro que, desde a campanha, vinha criticando as multas ambientais, e a nomeação de Ricardo Salles para o Ministério do Meio Ambiente. “Um dos efeitos mais expressivos foi a redução vertiginosa dos autos lavrados por infração contra a flora nos anos de 2019 e 2020, cujos quantitativos são os menores já registrados nos últimos 21 anos nos estados da Amazônia Legal”, afirma o documento, citando a redução de 43,5% na média anual de autuações.
Os pesquisadores lembram também que houve explícitas manifestações de presidente e ministro contra a destruição de equipamentos usados no desmatamento ilegal pelo Ibama previsto no Decreto nº 6.514 de 2008, ainda em vigor. “Com essa mudança de orientação, houve uma redução substancial no número de equipamentos destruídos, seja em termos absolutos, ou em relação ao número de autos de infração”, apontam. Entre 2014 e 2018 foram emitidos em média 242 termos de destruição ao ano; em 2019 e até novembro de 2020, o número de termos de destruição caiu para em média 180 ao ano, o menor valor da série histórica.
O estudo também identifica mudanças nos procedimentos para punições administrativas, estabelecidos por medidas infralegais – as famosas boiadas de Ricardo Salles. Os pesquisadores destacam: a unificação dos procedimentos de apuração das infrações ambientais entre Ibama e ICMBio, que até então ocorriam de maneira independente, e foram submetidos a maior interveniência do ministério; a modificação no decreto de regulamentação da Lei de Crimes Ambientais com a criação do núcleo da conciliação ambiental, uma nova instância na apuração de infrações ambientais, prévia ao julgamento; e a criação de equipe de instrução processual, em nível nacional e não mais vinculadas às unidades locais e central, tanto para primeira como para segunda instâncias de julgamento.
O estudo do CRS e do Lagesa indicam os impactos criados pelas novas regras. “Passados mais de dois anos da criação do núcleo, foram concluídas somente 252 audiências de conciliação, menos de 2% dos autos de infração realizados no mesmo período (26). Isso indica que a quase totalidade de autos de infração realizados entre 2019 e 2020 seguem suspensos”, afirmam os pesquisadores sobre a nova instância de conciliação.
Eles também criticam a criação da equipe de instrução. “As autoridades julgadoras voltaram a ser uma atribuição exclusiva das funções de superintendentes nos estados (em primeira instância) e presidentes (em segunda instância), retornando ao modelo semelhante ao adotado até 2008 que gerava gargalos no processo de julgamento”, apontam.
O estudo reitera os impactos negativos: o número de decisões em 2020 para processos de infração contra a flora caiu de uma média de 5,3 mil anuais entre 2014 e 2018 para somente 113 julgamentos em 2019 e 17 em 2020; e a quantidade de multas pagas foi reduzida de uma média de 688 entre 2014 e 2018 para 74 multas pagas em 2019 e 13 multas em 2020. “As alterações repercutiram negativamente na capacidade coercitiva e dissuasória dos órgãos ambientais”, enfatizam os autores.
O levantamento dos pesquisadores da UFMG aponta ainda que o total de embargos nos nove Estados da Amazônia caiu 85% no ano passado em relação a 2018. Foram registrados 2.589 embargos no último ano do governo Temer, 2.413 em 2019 e apenas 385 em 2020 – apesar da presença de mais de 3 mil militares na Amazônia, a partir de maio do ano passado, com a deflagração da Operação Verde Brasil 2.
O embargo de áreas desmatadas é considerado pelos pesquisadores uma das medidas mais eficazes de combate ao desmatamento por causar restrição econômica imediata ao infrator: ao ter uma área embargada, o proprietário rural fica impedido de vender produtos derivados do local onde ocorreu o dano ambiental. “A fiscalização dos crimes ambientais e a redução da impunidade foi um edifício normativo construído com cuidado durante anos. E agora usa-se o conhecimento da planta desse edifício para implodi-lo”, afirmou Raoni Rajão.
Para os pesquisadores, a redução da capacidade de responsabilização pelos danos causados ao meio ambiente no Brasil é a falta de analistas ambientais no Ibama. Desde 2012, o órgão não realiza novos concursos; em 2020, o Ibama registrava um déficit de 2.311 no seu efetivo – d970 de analista ambiental, 336 de analista administrativo e 1.005 de técnico administrativo, todos da Carreira de Especialista em Meio Ambiente. O estudo indica ainda que, no ano passado, haviam apenas 591 fiscais, redução de 54,9% em comparação com 2010 quando o número de servidores do Ibama na fiscalização era 1.311.
De acordo com os autores do documento, “o desmonte em curso nos órgãos ambientais federais é bastante profundo” e será preciso mais do que recomposição do orçamento e apoio das Forças Armadas e de efetivos policiais, enfatizando a necessidade de contratação de gestores técnicos e experientes para tornar as ações de fiscalização mais efetivas e retomar a estratégia de descapitalização dos infratores com a destruição de equipamentos, apreensão de gado e o embargo das áreas desmatadas ilegalmente. “A continuidade da atual estratégia de fiscalização e normas infralegais afeta não só a capacidade do Estado em punir novos danos ambientais, mas também contribui para o aumento da impunidade e redução do efeito do trabalho acumulado da fiscalização na última década”, concluem os pesquisadores.