Estudantes que passaram pelo curso conversaram com o BdF sobre a experiência e a busca por um SUS mais igualitário
Por Nara Lacerda, compartilhado de Brasil de Fato
na foto: Estudantes plantaram um Baobá na Unicamp para celebrar o marco histórico - Keyla Sacramento
A formatura da turma de medicina da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em 2024 foi marcada por um componente histórico e simbólico. Nela estava o primeiro grupo de estudantes que ingressou no curso por meio da política de cotas étnico-raciais, no ano de 2019.
No grupo das três melhores universidades da América Latina e segunda mais renomada do Brasil, a Unicamp figura entre 20% das instituições mais reconhecidas do mundo. No entanto, também teve sua história marcada pelas contradições e desigualdades estruturais do Brasil.
O simbolismo da formatura é ainda mais expressivo na medicina, profissão tradicionalmente elitizada no país. Durante a cerimônia de colação de grau, a importância da jornada ficou explícita na fala do estudante Álvaro Almeida – integrante do coletivo Quilombo Ubuntu, criado por estudantes como espaço de acolhimento, escuta, debate e resistência contra a o racismo.
Aluno do sexto ano, ele fez uma homenagem aos pioneiros e pioneiras que se formaram. Nas palavras do futuro médico, o grupo que concluiu a jornada acadêmica fez histórica na defesa das cotas, no combate a fraudes e na abertura do diálogo para uma medicina mais inclusiva, diversa e humana.
“Estamos aqui não apenas para celebrar uma conquista acadêmica, mas para reconhecer um marco de luta e revolução. Ser negro no Brasil é enfrentar não apenas desigualdades econômicas e sociais, mas também carregar o peso de uma história marcada pelo apagamento e pela exclusão. É saber que o corre é dobrado pra gente. É transformar dor em força e silêncio em voz. Formar-se medicina sendo negro nesse país significa compreender que cada conquista pessoal é também ao mesmo tempo, um ato de resistência coletiva.”
Foi nesse contexto de mudanças e lutas que a turma vivenciou o curso de medicina. O novo momento exigia e ainda exige políticas de permanência e combate à violência racial e a construção de uma coletividade voltada para a diversidade. As experiências narradas por quem viveu de perto essa jornada mostram que enfrentar o racismo e a exclusão no ambiente acadêmico é ir além da garantia do ingresso na faculdade.
Integrante da primeira turma, a médica Mirella Menaque da Paz lembra que, no início do curso, era preciso lidar com as afirmações de que a qualidade do curso iria cair com a entrada de pessoas negras pelas cotas.
“Fomos obrigados a ouvir relatos de que o rendimento da faculdade ia cair, porque pessoas pobres, pretas e pardas entrariam. Esse foi o maior impacto que eu sofri. Eram [manifestações de] pessoas que não queriam que estivéssemos ocupando esse espaço. A partir do momento em que mudamos o perfil da medicina, nos acusam de ocupar um espaço que não é nosso.”
O papel da representatividade na permanência e no período acadêmico é explicitado por Juliana Ferreira Rosa da Silva, também médica formada na turma. “O que me deixou mais confortável foi ver pessoas na minha sala que são semelhantes. Quando eu entrei e vi que tinha pessoas parecidas comigo, que dividem a mesma noção da nossa vida, do que conversamos e vivemos.”
Segundo ela, o período na universidade trouxe reflexões sobre o acesso desigual imposto à população negra no Brasil. “Fizemos atendimentos em prisões femininas e a maioria das mulheres eram negras. No contato com elas, ouvindo as histórias, lembrei de situações semelhantes de pessoas que conheci quando era mais nova. Poderia ter sido eu se não tivesse a oportunidade de fazer a faculdade.”
Mudança, mas ainda em luta
O impacto das cotas na Unicamp nos últimos anos é considerável. Entre 2016 e 2018, antes da implementação da política, a porcentagem de pessoas pretas e pardas que ingressavam anualmente na instituição era de 22%. Em 2019 o índice subiu para 35%.
Neste mês de dezembro, a Faculdade de Medicina da USP também celebrou a formatura da sua primeira turma com ingresso por cotas raciais em dezembro de 2024. A iniciativa reserva 50% das vagas para cotas, sendo 36% para pretos, pardos e indígenas. A cerimônia também contou com a presença coletiva e popular por meio do Núcleo Ayé, movimento de apoio aos estudantes.
Mas a mudança ainda precisa ser estrutural, segundo a médica Maitê Vasconcelos, que também se formou na primeira turma com inclusão de cotas. Ela não ingressou pelo sistema de cotas, mas fez parte do Profis, um programa de inclusão da Unicamp voltado para alunos de escola pública de Campinas.
Vasconcelos diz ter presenciado alguma diminuição nas manifestações diretas do racismo no ambiente acadêmico ao longo do tempo em que esteve no curso. No entanto, ela considera que a transformação ainda não é profunda.
“Eu consigo dizer com certeza que essa noção foi criada, mas não é porque as pessoas acham que o que pensam é errado, é simplesmente uma noção para não ser cancelado. É como se pensassem: ‘sobre isso aqui eu vou ficar quieto’.”
O relato da veterana repete a percepção das próximas gerações sobre a importância da coletividade no processo. Ela cita o peso do Quilombo Ubuntu: “é um lugar em que você sabe que vai encontrar os seus”.
Estudantes do segundo ano da faculdade de medicina, Marília Isabel Araújo da Silva e Pedro Henrique Ramos da Silva integram a coordenação do coletivo atualmente. Eles conversaram com o Brasil de Fato sobre como a iniciativa também abre espaço de reflexão para um novo Sistema Único de Saúde (SUS), que se contraponha ao legado social racista do país.
Segundo o futuro médico, esse caminho exige mudanças no currículo, que hoje não leva em consideração questões raciais e perpetua um sistema de saúde que negligencia as necessidades da população negra. “O que fez eu me engajar foi a percepção de que algumas coisas que aprendemos nas aulas, o que vai chegar na ponta do SUS é a perpetuação do genocídio negro.”
Marília Isabel questiona o papel do “título branco” da medicina sem essa mudança. “Para a minha população, o que significa eu me graduar da forma como essa graduação quer que eu me gradue? Nada.”
Após a implementação das cotas, a resistência à discussão da temática racial no ambiente acadêmico surge como um dos principais obstáculos para a consolidação do processo de inclusão.
O professor Erich Vinicius de Paula, diretor associado da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, reconhece o desafio. No mesmo dia em que os diplomas da primeira turma com cotas foram entregues, a direção lançou a campanha “A diversidade é nossa força”.
Segundo ele, a ideia é transformar a presença de pessoas negras na universidade em uma oportunidade e uma força da instituição e não mais um desafio a ser vencido. Na cerimônia de colação de grau da turma 57, ele ressaltou que esse é um trabalho que envolve toda a comunidade acadêmica em mudanças estruturais.
“Esse trabalho envolve comunicação, aprendizagem, tolerância, humildade, luta, desconstruções de alguns modelos e estruturas, mas também respeito e compreensão a outros tantos. Envolve os direitos, envolve os deveres. Como curso de um rio, a tarefa não será retilínea, mas temos o dever de conseguir”, afirmou