Não se perca, leitora, leitor, como o Rio de Janeiro e o Brasil se perderam na Avenida Lucio Costa, tomando o caminho da República das Milícias, do Abafa, do Esquecimento.
Por Hugo Souza, compartilhado de Come Ananás
Grande parte da imprensa vem cometendo um engano sobre um detalhe do assassinato dos três médicos ortopedistas na avenida Lúcio Costa, na Barra da Tijuca, Cidade Maravilhosa, na madrugada da última quinta-feira, 5. Grande parte da imprensa vem dizendo que o crime aconteceu no Quiosque do Naná, mas na verdade os médicos foram executados no Quiosque do Naná 2.
Uma das vítimas, Diego Ralf Bonfim, de 35 anos, era irmão da deputada federal Sâmia Bonfim (Psol-SP), expoente da esquerda que acaba de protagonizar uma temporada de humilhações impostas ao bolsonarismo na CPI do MST. Diego era também cunhado do deputado federal Glauber Braga (Psol-RJ), marido de Sâmia. Parlamentar igualmente combativo, Glauber se notabilizou por chamar Sergio Moro, na cara do chefe da República de Curitiba, de “juiz ladrão”.
O Quiosque do Naná, administrado pelo próprio, é um quiosque da orla da Barra frequentado por Jair Bolsonaro, ainda que não seja o quiosque que fica imediatamente em frente à entrada do condomínio Vivendas da Barra, endereço de Bolsonaro no Rio – fica a 200 metros, e há um outro quiosque bem em frente ao condomínio. Nas redes sociais do Naná, há fotos de Bolsonaro e do general Augusto Heleno tomando água de coco na casa, cercados de apoiadores.
“Bolsonaro me fez ficar rico!”, disse Naná ao geógrafo norueguês Torkjell Leira. A declaração está no livro “A arte de matar uma democracia: A História do Brasil de Bolsonaro”, publicado em março pela editora Rua do Sabão. “Da última vez estava lotado isto aqui, polícia na rua e um helicóptero sobrevoando. Foi maravilhoso!”, disse ainda Naná ao brasilianista, referindo-se à vez mais recente que Bolsonaro tinha estado no Vivendas – e no quiosque.
Segundo o UOL, o Quiosque do Naná é também reduto de milicianos da comunidade de Rio das Pedras, onde Fabrício Queiroz se malocou quando estourou o caso da rachadinha de Flavio Bolsonaro na Alerj e onde um vizinho de Bolsonaro no Vivendas, Ronnie Lessa, autor dos tiros que mataram Marielle Franco, usava uma academia de ginástica como fachada para importar peças de fuzil AR-15.
Já o Quiosque do Naná 2, distante 100 metros do Quiosque do Naná, em frente ao Hotel Windsor e onde os médicos foram mortos, é frequentado por jogadores de futebol e estrelas de novelas da Globo. O Naná 2 é administrado por um filho de Naná, um ex-cabo do Exército que nas redes sociais faz elogios à ditadura, defende a cloroquina, a ivermectina, declama “Brasil acima de tudo”, protesta contra o “ex-presidiário” e repercute postagem de Luciano Hang dizendo que Marcelo Freixo “não gosta de trabalhar e odeia quem gosta”.
Na manhã da última quinta, o Naná 2 publicou em suas redes sociais uma “nota de pesar” que começa manifestando “indignação da Família Naná pelo ocorrido” e termina informando que a casa seguia funcionando normalmente. Na hora do almoço, horas após o triplo assassinato, clientes tomavam cerveja e comiam batata frita em mesas com marcas de tiro, com direito a um grupo de samba animando o palco do banho de sangue.
A principal linha de investigação da polícia para o crime é que um dos médicos assassinados teria sido confundido com um miliciano que cumpre prisão domiciliar em um endereço justamente na avenida Lúcio Costa. Os outros médicos teriam sido confundidos com seguranças e todos teriam sido mortos, portanto, por engano. São muitos, de fato, os milicianos residentes na Lucio Costa – os “Lúcio Costers”, outro lado da bitcoin “Faria Limers” – e o médico Perseu Ribeiro Almeida era, de fato, muito parecido com o criminoso Taillon de Alcântara Pereira Barbosa, filho do ex-sargento da PM e também miliciano Dalmir Pereira Barbosa.
A propósito
Citado 28 vezes na CPI das Milícias, Dalmir Barbosa foi preso em 2020 sob a acusação de ser um dos líderes de um esquema miliciano-imobiliário de grilagem, construção, venda e locação ilegais de imóveis em Rio das Pedras e na Muzema, na Zona Oeste. Nesta mesma área, segundo o MPRJ, Flávio Bolsonaro lucrou com a construção ilegal de prédios erguidos pela milícia e financiados com dinheiro da rachadinha na Alerj.
(Parêntese para lembrar que Marielle foi assassinada no início da Intervenção no Rio e que no fim da Intervenção o general Richard Nunes, na época secretário da Segurança do estado, afirmou à imprensa que a vereadora do Psol tinha sido morta porque foi percebida como uma ameaça a negócios de grilagem de terras na Zona Oeste. No ano passado, o general Richard foi um dos generais do Alto Comando do Exército chamados de “melancia” por bolsonaristas, por supostamente não aderir às articulações entre Bolsonaro e outros generais, como o ex-interventor Braga Netto, para tentar um golpe de Estado. Não se tem notícia sobre se a tese que o general Richard apontava como “muito sólida” chegou a ser, nos anos subsequentes e até hoje, a principal linha de investigação sobre quem mandou matar Marielle).
Voltando a de onde, como veremos a seguir, nunca saímos: as investigações que levaram à prisão de Dalmir Barbosa, pai do miliciano parecido com o médico Perseu Almeida, foram baseadas em conversas telefônicas entre o também ex-sargento da PM Ronnie Lessa e um policial civil corrupto. Essas conversas foram interceptadas no âmbito da Operação Lume, que prendeu Lessa e um terceiro ex-sargento da PM, Élcio de Queiroz, pelo assassinato de Marielle e Anderson Gomes. Élcio, como se sabe, dirigiu para Lessa matar.
Não se perca, leitora, leitor, como o Rio de Janeiro e o Brasil se perderam na Avenida Lucio Costa, cheia de enganos mil, tomando o caminho da República das Milícias, do Abafa, do Esquecimento, em cuja orla salpicada de quiosques todo crime de execução é, portanto, em certa medida, um crime político.
‘Eles avaliaram mal’
Pontuar que existem o Quiosque do Naná – reduto de milicianos de Rio das Pedras – e o Quiosque do Naná 2 – reduto de jogadores e artistas -, ou seja, informar com precisão o local da execução dos médicos na Barra, é importante porque, caso esteja correta a principal linha de investigação da polícia, os médicos foram mortos por causa não de um, mas de dois enganos dos assassinos e do seu informante: um de fisionomia, outro de quiosque.
Assim como anos atrás o porteiro do Vivendas da Barra disse ter se enganado não uma, mas duas vezes no dia da morte de Marielle, após ser publicamente ameaçado pelo ministro da Justiça à época, o juiz ladrão: quando registrou a visita de Élcio de Queiroz à casa 58, de Bolsonaro, em vez da casa de Ronnie Lessa, e quando disse que a entrada de Élcio no condomínio tinha sido autorizada não por Lessa, mas pelo “Seu Jair”.
Nesta linha – não de investigação, mas de recorrências -, vale lembrar a declaração insólita sobre o caso Marielle dada pelo general Braga Netto após o fim da Intervenção. Em janeiro de 2019, em uma entrevista à revista Veja, Braga Netto, referindo-se ao assassinato de Marielle como “aquilo”, disse que “aquilo foi uma má avaliação deles. Avaliaram mal, acharam que ela é um perigo maior do que o que ela era”.
Braga Netto nunca mais tocou publicamente no assunto para dizer quem eram “eles”. Segundo o ex-interventor, vice da chapa de Bolsonaro em 2022 e pré-candidato do PL à prefeitura do Rio em 2024, quando Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz deixaram o Vivendas da Barra, pegaram a Lúcio Costa, passaram pelo Quiosque do Naná, pelo Naná 2, pelo Alto da Boa Vista e cometeram no Estácio o crime político mais grave da história recente do Brasil, cumpriram missão dada sob “má avaliação”.
Ou seja, por engano.