Ayana

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Por Thelma Kai, Facebook – 

– Moça, (inaudível).




– Não tenho dinheiro, só cartão.

– Então me paga uma marmita, por favor! Estou com fome, moça.

Era mentira que eu só tinha cartão. Parei a caminhada apressada e olhei. Era uma travesti. Bem vestida, não muito maltrapilha. Gostei do sapato: uma sapatilha baixa, preto e branco, clássica.

– Então vem, eu pago a marmita.

Ela veio, animada. Eu ia até a papelaria mesmo, comprar uma sacola para colocar o chocolate do amigo secreto da minha filha, antes de ela entrar na aula. Yara ia comigo, mão na minha.

– Nossa, obrigada! A gente pode comprar ali, um frango com arroz? Acho que fica até mais barato.

– Ali onde?

– Do lado da farmácia, virando ali. Não fica nem 20 reais.

Era o China in Box, eu sabia. Mais barato nada. Mas lembrei que por 10 anos eu comera lá, em Brasília, e sempre sobrava, e eu sempre jogava tanto fora. A culpa é mobilizadora… Concordei com ela em ir até lá, mesmo que fosse custar o dobro da marmita.

– Consegui comer, agora quero ver se consigo dormir. Algum dia eu vou dormir mais que quatro horas por noite.

– E por que você não dorme? – a vontade de perguntar, perguntar, perguntar, vindo forte.

– Medo, amiga. Eu dormi essa semana toda na rua e não confio. Estou procurando emprego, ontem fui a pé até Osasco, em um lugar onde estão fazendo ficha. A mulher me olhou de cima e disse que não tinha emprego. Eu vendo aquela fila, todo mundo de currículo na mão… Mas não ia brigar por causa disso. Vim embora. Estava tão cansada do tanto que andei, mas ainda assim não consegui dormir direito.

– A tolerância das pessoas anda baixa. Perigoso mesmo dormir na rua.

– Sabe que Deus me salvou, né? Acordei com dois caras que nunca vi me batendo. Sabe quem socorreu? Um morador de rua. Eu, que sempre tive medo de morador de rua, olha só. Não tenho nada contra, mas tenho medo.

Não entendi bem. Ela também não morava na rua? Chegamos. Pedi a comida, paguei e disse ao moço do balcão que era para entregar a ela quando eu saísse. O moço me deu dois biscoitos da sorte. Dei um para Yara, outro para ela.

– Vamos ver a minha sorte! – ela riu, feliz.

– A sorte desses biscoitos é incompreensível.

– Verdade. Tem é que jogar os números – o cara do balcão entrou na conversa, rindo.

Assim está bom, pensei. Gosto assim. Conversando com todo mundo que eu vejo. Rindo. Vontade de puxar mais conversa com ele. Quando parei de fazer isso mesmo? Até pouco tempo eu entrava em um elevador e saía falando com quem estivesse dentro dele…

Pensei um pouco. Olhei para ela e disse:

– Sabe? Também estou sem emprego.

Ela parou de abrir o biscoito e me olhou, surpresa. Mas sorriu, despreocupada, e vaticinou:

– Ah, mas você logo arruma!

– Faz seis meses que eu escuto isso.

– Mas você é simpática. E é linda demais. Mas olha, escuta o que eu tô dizendo. Isso vai mudar pra nós duas. Antes do Natal desse ano. 2016 e 2017, tudo que aconteceu não importa. Eu perdi tudo. Eu perdi minha barraca, minhas coisas estão todas em uma caixa ali na rua. Antes do Natal vai mudar. E eu vou ter a minha casa.

Uma caixa. Todas as coisas dela. Em uma caixa. 2016 e 2017. Curioso. Anos emblemáticos para ela também. Senti vontade de perguntar tanto. O que aconteceu com você nesses dois anos? Como foi parar na rua? Qual a sua história? Quem é você? Essa vontade de saber as histórias todas. De absorver todas, como se as vivesse enquanto as escuto.

Estalo: foi por isso. Por isso sou jornalista. Para ouvir as histórias. Para escrevê-las de modo que outras pessoas também as conheçam. Todas as histórias.

Mas terminei de pagar e não perguntei nada. Olhei para ela. As mãos dela tão sujas. Apertei a mão de tanta gente canalha e falsa nessa vida… Estendi a mão: “Vou indo. Boa sorte”.

Ela me deu a mão, apertou e segurou a minha:

– Qual o seu nome?

– Thelma. E o seu?

– Ayana (ela tem cara de Y…). Thelma, muito obrigada. Vai dar tudo certo.

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