Por Márcia Bechara, publicado em As Vozes do Mundo –
Elas são divorciadas, viúvas ou solteiras. A maioria tem filhos, netos, e todas possuem mais de 60 anos. Independentes, politizadas e ativas, essas mulheres decidiram que sua velhice seria exatamente do jeito que elas desejassem. “Nem marido, nem patrão, nem família, nem Estado” decidem no lugar delas como, onde e de que maneira envelhecer. Elas moram bem em seus estúdios modernos, pagando um aluguel baixo, criando projetos coletivos e viajando o mundo. A RFI foi conhecer a Maison des Babayagas, no município de Montreuil, na região parisiense, durante um domingo de sol e de atividades coletivas.
Baba Yaga, na mitologia eslava e russa, significa “fada”, “bruxa”, uma feiticeira solitária de mil disfarces, velha e poderosa, que monta dragões e se traveste sem restrições de gênero, tem um séquito de filhas e que pode ser “boa e má” ao mesmo tempo. O nome não poderia ter sido melhor escolhido para este projeto criado pela fulgurante Thérèse Clerc, mítica militante feminista francesa de Maio de 68, que morreu em Paris em 2016. Clerc é um nome conhecido do movimento feminista francês, muito antes das moças irem queimar soutiens em praça pública. Seus depoimentos figuram em documentários e documentos históricos como o filme Les Vies de Thérèse, do diretor Sébastien Lifshitz, lançado em 2017 sobre a vida da ativista.
Antes de partir, no entanto, Thérèse cimentou as bases de seu projeto coletivo em um documento, que todas as novas integrantes da Maison des Babayagas devem assinar junto com o contrato quando entram para a associação: uma lista de “valores” que todas devem subscrever e respeitar, até o fim da sua estadia no local.
No topo da lista, a palavra “autogestão” não deixa dúvidas. As senhoras devem se responsabilizar por sua vida, sua casa, seus projetos e seu futuro. Elas nunca estão sozinhas, e possuem uma infraestrutura mínima do Estado, mas a autonomia pessoal é um valor que não se coloca em dúvida neste coletivo de Montreuil, criado em 1999, e chamado de “anti-asilo” pelo jornal Le Monde. A Maison foi inaugurada em 2013, após uma longa luta coletiva, capitaneada por Thérèse.
Recusaremos o racismo, o antissemitismo, a homofobia, a lesbofobia, os extremismos de todos os tipos, os preconceitos de classe, de idade ou físicos
Não existe empregada nem faxineira à disposição no local. Como a maioria da população europeia, as Babayagas tomam conta da manutenção de suas moradias e das áreas em comum, como os três jardins coletivos. “Fazemos nós mesmas nossas compras, nossas refeições, lavamos nossa roupa, pintamos nossos apartamentos quando precisamos”, conta a presidente. “Este prédio em que moramos fica no centro da cidade, temos cinema, mercados à disposição, o teatro, restaurantes, o metrô fica na nossa porta. Não envelhecemos rápido aqui”, diz.
“Todo mundo fala que é preciso preparar a sua aposentadoria, é verdade. Mas quando chegamos lá, a verdade é que nos sentimos um pouco perdidas. Aqui, mesmo se não tenho amizade próxima com todas as moradoras, fazemos coisas juntas, construímos essa cabana, cuidamos do jardim, temos projeções de filmes e projetos de verão, yoga, tango. Ainda não estamos prontas para entrarmos em um Ehpad”, diz. “A verdade é que gostamos da nossa liberdade e da nossa autonomia, queremos isso até o fim, e nossa aposta aqui é envelhecer melhor, com mais qualidade”, completa Catherine, que mora há seis anos no local.
A solidariedade parece ser moeda corrente entre essas senhoras, que dividem entre si a dor e a delícia de suas escolhas pessoais. “Passamos tempo consolando companheiras que estejam passando por um momento difícil, é normal. Visitamos, tentamos levantar o moral”, diz Kerstin, que acaba de passar duas semanas de férias em Los Angeles em companhia de outra Babayaga, Catherine. Neste domingo de sol, as duas conversam com a RFI no jardim coletivo, administrado em detalhes por essas feiticeiras modernas. “A política é importante”, pontua a secretária-geral da associação. “Não podemos nos esquecer que esta casa tem o apoio da prefeitura de Montreuil, que é comunista”, diz.
“É desse jeito que eu quero viver”
“Sou divorciada. Tenho duas filhas, uma de 50 anos, e uma de 47. Eu tenho 75. Um dia, já aposentada, mas ainda trabalhando esporadicamente, vi uma reportagem sobre as Babayagas, e nesse momento eu disse: É assim que quero viver. Em um apartamento independente, numa associação feminista, ecologista. Era tudo o que eu sonhava”, conta Kerstin. “Sabe, não podemos viver sem projetos”, ensina a sueca, que mora há mais de 50 anos na França. “Antes de vir morar aqui, eu já era membro da associação”, conta.
“Nem marido, nem patrão, nem família, nem Estado decidem o que vou fazer da minha vida”, diz a sueca. Ela conta que, ao chegar na França, em janeiro de 1968, antes da eclosão do movimento revolucionário em maio, teve a impressão de ter “voltado à Idade Média”. “As mulheres não podiam nada”, resume a escandinava, cuja região é conhecida mundialmente pelo pioneiro empoderamento feminino, muito antes do resto da Europa. “As coisas mudaram depois, mas não foi rápido. Eu me lembro de ter 50 anos e me sentir muito melhor com francesas de 25, achava as mulheres da minha idade muito caretas aqui”, conta.
A francesa Catherine, 10 anos mais nova, se lembra de Maio de 68. “Eu era adolescente e estava em Paris, foi um momento que me marcou bastante. A sociedade francesa na época era muito rígida, lembro que não tínhamos o direito de ir ao colégio de calça comprida, era ridículo”, conta. “O feminismo para mim é a independência absoluta. Não precisamos de um cara para construirmos nossa vida. Aqui estamos entre amigas, não estamos na ausência de ninguém, é uma escolha nossa. Nada aqui é proibido”, afirma a secretária-geral, professora aposentada.
E namorar, pode? “Pode, mas não pode morar junto”, afirma Kerstin. “O motivo é simples, a Maison des Babayagas é destinada exclusivamente a velhas de baixa renda, que não conseguem pagar seu aluguel. Quando um casal vai viver junto, somam-se também as aposentadorias, o que seria desonesto com as outras moradoras”, explica.
Valores
A lista de valores do documento oficial das feiticeiras de Montreuil continua: além de autonomia, constam também cidadania, ecologia, feminismo, laicidade e solidariedade. “Recusaremos o racismo, o antissemitismo, a homofobia, a lesbofobia, os extremismos de todos os tipos, os preconceitos de classe, de idade ou físicos. Somos feministas e lutaremos contra a opressão das mulheres e pela igualdade entre os gêneros”, subscrevem as velhinhas da Maison, antes mesmo de entrarem para o coletivo.
Como funciona?
Para se tornar uma Babayaga, é necessário ser uma mulher com mais de 60 anos, e, se de nacionalidade estrangeira, ter no mínimo uma permissão de residência em território francês permanente. Atualmente, segundo as integrantes entrevistadas pela RFI, todas as estrangeiras residentes no projeto possuem dupla nacionalidade, incluindo a francesa, o que facilita o processo de admissão. A burocracia é importante, uma vez que a Maison é administrada em parceria com a prefeitura de Montreuil, que oferece subvenções financeiras, apoio logístico e propõe candidaturas.
Entre os pré-requisitos para se morar na Maison des Babagayas consta ter um perfil compatível com a etiqueta Habitat Social, “porque se trata de um imóvel social”, explica Catherine, referindo-se aos prédios habitacionais destinados pela administração francesa a pessoas de menor renda comprovada.
Respeito à diversidade
No prédio, moram atualmente 20 Babayagas. Uma das vagas dentro do imóvel, no entanto, é obrigatoriamente destinada a um morador jovem de baixa renda, por exemplo, alguém que esteja em seu “primeiro emprego”. O critério obrigatório é uma exigência da prefeitura de Montreuil, que determina que as moradias sociais respeitem a “diversidade”. “Hoje temos um jovem casal aqui na Maison”, diz Catherine.
Além das moradoras da comunidade, gravitam em torno da casa um universo de 50 membros da associação, que participam das atividades coletivas e contribuem com a iniciativa, mas não habitam dentro do complexo em Montreuil.
“Quase todos os continentes estão representados aqui”, conta Kerstin, a atual presidente da Maison des Babayagas. “Europa, Américas, Ásia, só não temos a Oceania”, emenda Catherine. “Temos uma do Chile e outra da Argentina, que chegaram este ano, mas ainda não recebemos ninguém do Brasil”, diz. “Guarde um lugar para mim”, peço, e elas explodem em risadas.
Mas, alegrias à parte, nem tudo são plumas e paetês feministas nesse coletivo feminista da terceira idade. “Claro que nem todas respeitam os preceitos de solidariedade”, diz Catherine. “Mas, de modo geral, temos muitos planos em comum”, diz. “No verão, lançaremos nosso próximo projeto: churrasco de merguez [salsicha típica do sudoeste francês] com champagne. Você vem? ”, convida Kirsten.