Por Márcio Alves de Oliveira, publicado em Jornal GGN –
Mas o foco central de Bacurau não é a violência aberta do sistema de lucros através de uma distopia consumada bem ao desinfecto gosto comercial das massas que nos deixamos fazer
Bacurau, pássaro-fílmico tinhoso, filmaço que avoa do começo ao fim. Alegoria da resistência a um Brasil violentado anos a fio por esse espírito bolsominion psicopata, mal disfarçado pelo seu caricatural natural, que atualmente nos governa; instrumento fascista mais uma vez usado historicamente por um projeto de poderosos interesses do Capital em crise, e que não pode deixar de compulsivamente enriquecer à custa da miséria crescente de populações inteiras literalmente descartáveis. Futuro distópico anunciado filmicamente num atemporal alguns anos depois, pois afinal não se sabe bem se é ameaça distante ou se já estamos lá e mal percebemos.
Faz décadas que o tema da distopia toma conta de nosso imaginário e o apagamento do futuro e do passado nos violenta até o limite do ressentimento que, numa primeira camada fílmica de consciência, ameaça explodir o tempo inteiro para dentro de cada personagem e para esse fora que se faz extensão de um mundo hostil a toda experiência de reconhecimento. O Transe coletivo da subjetividade perplexa que não reconcilia nem para dentro nem para fora descentra reflexivamente até mesmo para fora da tela, para dentro do expectador arrebatado pelo transe épico da quarta parede explodida bem à sua frente. Não há como ficar indiferente ao que está acontecendo na tela, não há tempo de tomar fôlego e se refugiar num lugar seguro típico da classe média abstratamente acima da violência; é preciso viver a contradição de seu tempo e achar a justa medida. E não é assim, afinal, que deveria ser a grande arte?
A grande arte não é e nunca foi fatalista; ela deixa isso para as distopias fílmicas comerciais que habitualmente nos fazem girar em falso diante da violência consumada que consumimos com perverso prazer compensatório, e que de tempos em tempos explode em violência gratuita para a nossa subjetividade um tanto cinicamente perplexa.
Em Bacurau, a violência contextualizada de quem resiste deixa sintomaticamente uma parte da crítica perplexa em suas desfocadas críticas que gostariam talvez da desinfetada arte pela arte. A violência sistêmica dos poderosos impede lá, e em todo lugar, o elementar acesso à água de uma transposição prometida que jaz lá como imagem retalhada, desfocada e distante, tempo outro de promessas de inclusão social violentamente abortado. Contexto no qual se prepara, lá como também em todo canto, a banal aniquilação pura e simples de quem ocupa o lugar de uma futura oportunidade comercial transnacional.
Mas o foco central de Bacurau não é a violência aberta do sistema de lucros através de uma distopia consumada bem ao desinfecto gosto comercial das massas que nos deixamos fazer. Uma segunda camada fílmica se contrapõe imanente desde o início para nos recordar que somos mais do que massa manipulada e descartada aos sabor dos ventos das crises do Capital e de suas psicopatias. É na tensão entre esses dois focos, irresolvível na arte, pois se resolve na vida, que tudo se descentra e torna o filme perigosamente vivo, apagando epicamente a quarta parede até o ponto de incomodar quem quer enfrentar apenas retoricamente a violência em suas várias camadas e sobretudo no seu centro irradiador Capital.
Arrebatados, regressamos a um local aonde tudo poderia e mesmo deveria fazer sentido, e justamente por isso dói mais o regresso no meio de tantos sinais de violenta distopia. Uma antiga moradora retorna com remédios de seu refúgio, assim como outros antes o fizeram, de carona no caminhão pipa que faz parte da luta local contra poderosos algozes pela sobrevivência básica. As marcas profundas de uma violência viva recente são visíveis sobretudo no peso permanentemente incômodo que as individualidades transportam, mas não como corolário ainda distópico de um falso refúgio individualista. O quebra-cabeça de memórias mais sentidas do que abstratamente vistas e compreendidas resiste, pelo apoio mútuo numa comunidade violentada, à tendência sempre presente de ressentir, como em Domingas e tantos que mal aguentam o que está sempre à flor da pele pronto para explodir. Na coletividade fraturada pela distopia resiste o utópico pronome perigoso que ainda somos: nós! Retorno épico a uma Bacurau que não mais existe mas ainda é pássaro arisco lutando para re-existir, passarinho não sendo não, dirá um personagem.
Pode ter morrido a ciranda utópica da mãe simbólica Lia de Itamaracá, aonde todos seguram ludicamente a mão de todos num todo atemporalmente feliz. Mas ninguém larga não a mão de ninguém! Os laços se recriam como no cortejo do enterro embalado pelo mestre da música política e cineasta do cinema novo, Sérgio Ricardo, recordando com os Bichos da Noite que se são muitas horas da noite e do medo, também são horas, de Bacurau! Na Noite de Bichos ariscos e cheio de mandingas antigas, o filho Plínio lembra que Carmelita, mãe simbólica de Bacurau gerou de engenheiro a michê e puta, mas não ladrão; como aqueles que violentam o povo em nomes de seus ganhos. No mundo distópico aonde a tecnologia é mais acessível que a água, os moradores reapresentam suas raízes às suas crianças em mapas subjetivos como os dos séculos antigos após constatarem estranhamente não estarem nos mapas digitais; há desenvoltura no uso da tecnologia mas a arisca Bacurau sabe que não será por ela que saíra da miséria e do ciclo de exploração que a gera, e sim pelos laços presentes refeitos para com todos e para com a tradição, a da memória de luta dos oprimidos. Bacurau sabe do caráter oportunista das doações do prefeito em busca de votos; e de fato, da comida vencida apenas uma parte se presta ao consumo, assim como apenas uma parte das toneladas de livros despejados como lixo nessa época distópica não muito distante, a qual permite, inclusive, a distribuição de remédios tarja preta amplamente consumidos em todo lugar com a promessa ideológica do controle de uma depressão endêmica que só entrega, contudo, o seu reforço para os fins de dominação de sempre.
Na Terra em Transe de uma outra ditadura mais recente, Mendonça e Dornelles se inscrevem na grande tradição de Glauber, de Sérgio Ricardo e da música de Vandré que também pontua com precisão o lugar de tensão da resistência, assim como toda a precisa trilha sonora composta para o filme. Assim como Eisenstein com Griffith, Glauber desinverte o cinemão épico dos westerns de Ford que ideologiza as virtudes de um povo na construção de uma nação. Na Terra do Sol, Deus e o Diabo são mergulhos nas raízes inconscientes de uma consciência que luta contra a aparente sina de sua infelicidade, como já havia ensinado a Glauber as lições fílmicas de Buñuel. Mendonça e Dornelles também buscam desenraizar do fundo da miséria a negação que nos faz nação negando as aparências de nação, que mal se sustentando desaparecem com a entrada em cena dos gringos (os mesmos para quem sintomaticamente Bolsonaro bate continência, os novos donos da colônia).
Dialogando com a melhor tradição épica brechtiniana filtrada nos anos 60 e 70 pela experiência periférica de um cinema novo brasileiro, o cinema de Mendonça e de Dornelles se torna ainda mais incômodo, pois mostra a ilusão da quebra da quarta parede entre quatro paredes. Diferente da sempre expectadora classe média, as classes populares precisam viver a violência no seu transe periférico cotidiano ou como fim em si, tendência possível num sistema assentado na violência aguda, ou como Bacurau contratendência de um coletivo arisco que na Terra do Sol sempre pelejou contra Deus e o Diabo.
Mas a distopia prepara sempre maiores terrores distópicos. Um surreal disco voador, irônico drone de inusitados alienígenas gringos, anuncia uma ataque com alta tecnologia e poder de fogo para matar a todos e transformar aquelas terras sertanejas numa espécie de nova Flórida, cinicamente sem sertanejos, entenda-se bem, diferente das promessas hipócritas de outros tempos. E claro, com a devida cumplicidade de autoridades locais da nova colônia que outrora chamávamos país. Mais uma vez se faz desconcertante no filme a ficção científica absurda com que se parece cada vez mais o mundo real. Subjetividades gringas exponencialmente infantilizadas se mostram cruelmente animalizadas na excitação banal e nervosa com que desumanizam sistematicamente o outro e a si próprios. Inicialmente tomamos contato com sulistas brasileiros que desfilam sua tradicional arrogância e violência contra nordestinos; trabalhando para os gringos que só falam inglês, mataram sem ordens, o que tiraria um bônus por morte dos demais, e por isso são humilhados; quando dizem, velho complexo sulista, que são mais parecidos com os bizarros gringos do que com os nativos, velha ferida que reabre na ilusória ideia de nação, não são sequer reconhecidos como brancos por gringos com um fenótipo menos branco, mas que possuem o genótipo da raça eleita. Uma vez desumanizados no jogo que jogaram momentos antes com os locais, são mortos como sub-raça. Nesse abominável mundo novo, o chefe, beirando a infantilidade, reduz com violência recalcada a caracterização de si como nazista, de resto adequada, a um mero clichê por ter origem alemã; uma outra descreve a tara com sua metralhadora; um outro quereria fuzilar sua mulher por ter se divorciado dele e não encontrando-a foi até um shopping, mas sem ter coragem na época, está convicto de que Deus agora a dará; um outro mata uma criança que brincava de não ter medo de monstros com outras, indo mais longe no escuro da noite, até descobrir que monstros realmente existem…
Esse seres bizarros estão excitados com a super-violência e com a relativização de valores que oscila entre o absurdo e o ridículo, gerando uma comicidade absurdamente reconhecível no centro das relações sociais atuais como uma possibilidade para um futuro distópico não muito distante. Mas Bacurau é arisco! Marginais/marginalizados perseguidos pelas autoridades locais violentas, e que mal conseguem sobreviver escondidos, voltam para ajudar na resistência; um habitante já idoso diz querer reabrir a velha capela que vemos entulhada de cadeiras pelo lado de fora, enquanto Plinio atenta para que ela nunca se fechou. Dois velhos nus no meio do sertão morando numa casa de pau a pique ao lado de uma pequena estufa mais moderna são só aparentemente alvos fáceis com seus velhos trabucos; uma das gringas, morrendo, é levada a Bacurau após uma conversa surreal beirando o cômico através de um tradutor portátil que mal consegue traduzir uma situação daquelas, e que quando consegue, evidencia que nada tem a ser dito. Por um localizador que todos os gringos carregam, os demais compreendem que está na hora de aniquilar Bacurau.
Mas no museu da cidade, armas que são verdadeiras relíquias cangaceiras recuperam raízes de resistências ainda mais antigas, vivificadas por uma viagem psicotrópica coletiva que recupera a força e a violência exacerbada do cangaço. A Terra posta em Transe pela tradição dos oprimidos inverte o atual estado de exceção permanente, e o expectador é também aqui desconfortavelmente arrebatado nesse transe coletivo que toma ares de absurda realidade quando vemos de relance, na eminência da peleja, imagens televisivas sobre a retomada de execuções públicas no Vale do Anhangabaú, em São Paulo. Não há mais dúvida, o transe é real, a distopia está mais próxima do que podemos nos iludir e a violência está aí para massacrar. O que fazer? A recusa de ser massacrado forjada no massacre diário geração após geração, contrapondo recusa após recusa. A loucura do cangaço que reagiu à da barbárie pseudo-civilizatória reluz mais uma vez como contraponto à distopia que ameaça se consumar no Brasil atual. Cabeças gringas cortadas são enfileiradas em frente à Igreja, talvez um exagero de violência, pergunta um personagem, acho que não, pura e simplesmente responde outro. O transe que traz à tona a necessária violência lá do fundo de outras batalhas contra o estado de violência permanente que ameaça aniquilar o excluído, traz também dessas raízes profundas performances que não podiam ser pura e simplesmente bem resolvidas, como preferiria o gosto um tanto comercialmente sensível de expectadores de classe média emparedados vivos junto com seus valores abstratos no conforto de quatro paredes. Uma personagem que teve um dos gringos morto à facão em sua casa diz para os demais que só lavem o chão mas não as paredes onde há, inclusive, uma marca de mão do morto, e justamente para lembrar do que não deveria ter acontecido; como, aliás, as paredes cravejadas de bala de outros tempos não tão distantes. Quanto ao líder dos gringos, este se entrega ao seu espírito niilista e depois de matar por matar um de seus camaradas, pois até então só conseguira matar frustradamente um cachorro, tenta o suicídio; mas a visão de Carmelita/Lia de Itamaracá, guia protetora de Bacurau, o paralisa. Chega então o prefeito perguntando dos turistas estrangeiros para em seguida desviar de uma água ensanguentada varrida de uma casa e olhar de relance cabeças cortadas em frente à igreja. Dessa vez os locais foram longe demais, diz ele, eles vão morrer, ele mesmo vai morrer. Parece inocente, ninguém acredita, e então aparece o líder gringo amarrado chamando-o pelo nome e gritando em inglês que ele havia prometido coisas não cumpridas. Estamos sobre efeito de forte psicotrópico e você vai morrer, diz Plínio calmamente ao prefeito, que semidesnudo é levado amarrado em cima de um burro por um homem armado.
Ao final, na cena com certeza mais polêmica, o líder gringo, que já deve ter sido bom, pois já foi criança, diz alguém, ao que Domingas responde que já deve ter tido mãe, é enterrado vivo numa cela escondida no subsolo bem no meio da praça, provável fruto de outras resistências. Um exagero que coloca a perder um grande filme? Acho que não, diria eu se fosse um personagem de Bacurau. Não se trata de idealizar os de Bacurau, eles mesmos não se idealizam, a vida é mais dura e mais mal resolvida para quem não vive emparedado entre quatro paredes, mas sim pela violência sistêmica. Trata-se de compreender a espiral de violência, e antes do salto na realidade, uma última vez ser arrebatado pelo mal-estar, inclusive por ser também arrebatado pela excitação por uma cruel vingança que não é exatamente sua. Mas nesse derradeiro incômodo que nos tira da defesa fácil de uma posição ao invés de vivenciá-la em toda sua contradição, não deixamos, e esse o ponto, de tomar a posição a favor da violência necessária por parte do oprimido. É de ti que fala a história, e não como mero expectador, hipócrita irmão. A distopia da barbárie aí está às nossas portas, e Bolsonaro é apenas o aspecto mais visível de um projeto abominável que é do próprio Capital transnacional, gringo inclusive em sua própria terra. Trata-se de saber o que fazer contra a violência sistêmica que aí está concretamente operando e ameaçando nos precipitar num patamar distópico cruel. O fazer iludido com a espera da resposta completa e sem contradições é o outro lado do fazer pelo fazer, que também não dimensiona o que se perde na noite da distopia em que estamos mergulhados. Como toda grande arte, Bacurau, filme-bicho da noite, propõe a resolução dessa tensão no salto de cada um da tela para a vida. Tudo se resolve nesse voo arisco de um filme-bicho perigosamente vivo que valoriza a mobilização da tradição de revolta dos oprimidos. Voo longo… à Bacurau!
Márcio Alves de Oliveira, Professor do Instituto Federal de São Paulo