Posts se valem de desinformação e greenwashing para promover agenda política do setor, dizem pesquisadores da UFRJ
Por Giovana Girardi, Rafael Oliveira, compartilhado de A Pública
A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), mais conhecida como a bancada ruralista do Congresso, publicou anúncios nas redes sociais ao longo de todo o ano passado com conteúdo desinformativo, descontextualizado, distorcido e/ou que minimizavam os impactos negativos do setor, de modo a promover sua agenda política no legislativo. É o que aponta uma análise elaborada pelo Netlab, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
O relatório, repassado com exclusividade para a Agência Pública, avalia que a comunicação digital da FPA, por meio de posts patrocinados nas redes da Meta (como Facebook e Instagram), adota o que foi classificado como “discurso tóxico”. O laboratório de pesquisa da UFRJ, que há mais de uma década estuda as redes sociais e o fenômeno de desinformação no Brasil, considera como “tóxicos” anúncios que recorrem a algum nível de desinformação e/ou ao chamado greenwashing (uma espécie de maquiagem verde).
Foram analisados 207 posts patrocinados nas redes sociais da FPA publicados entre janeiro e novembro de 2023. Quase metade (94 anúncios, 45%) tinha conteúdo que foi classificado como tóxico pela equipe do Netlab.
POR QUE ISSO IMPORTA?
- Estudo do Netlab, da UFRJ, revela que Frente Parlamentar da Agropecuária impulsiona anúncios nas redes sociais com conteúdo desinformativo, descontextualizado, distorcido e que minimiza os impactos negativos do setor
- O objetivo do lobby digital, dizem os pesquisadores, é influenciar a opinião pública sobre temas como o marco temporal, o projeto de lei sobre agrotóxicos, planos de infraestrutura e a CPI do MST
“A desinformação consiste no uso intencional de informações falsas, descontextualizadas ou distorcidas para manipular a opinião pública, descredibilizar inimigos e/ou introduzir vieses sensacionalistas”, explicam os pesquisadores. Já o greenwashing, dizem, “se caracteriza pelo uso de estratégias narrativas que ocultam práticas antiecológicas ou minimizam/negam seus impactos negativos”.
Segundo o grupo, liderado pelas pesquisadoras Marie Santini e Débora Salles, também se encaixa como greenwashing a divulgação de “atividades ecologicamente corretas em campanhas de publicidade para desviar a atenção daquelas ambientalmente hostis”.
Entre os temas destas publicações estavam assuntos caros à bancada ruralista bem no momento em que eles estavam sendo debatidos no Congresso, como a adoção de um marco temporal para a demarcação de terras indígenas, a CPI do MST e o projeto de lei sobre agrotóxicos.
As 207 publicações analisadas no estudo são anúncios patrocinados, impulsionados para alcançar um público maior. Eles são pagos pelo Instituto Pensar Agropecuária (IPA), organização bancada por associações do setor, que tem “o objetivo de defender os interesses da agricultura e prestar assessoria à Frente Parlamentar da Agropecuária por meio de acordo de cooperação técnica”, como eles mesmos se definem.
Foram gastos pelo menos R$ 77,7 mil nos anúncios, que somaram 19,8 milhões de impressões. Considerando apenas aqueles com conteúdo considerado tóxico, o investimento foi de R$ 31,4 mil, e eles alcançaram 8,2 milhões de impressões.
Destes, a maior parte (39 anúncios, 41%) teve como objetivo criminalizar movimentos sociais, com motes como “quem se organiza é criminoso” e “invasão é crime”. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) foi um dos principais alvos, com boa parte das publicações patrocinadas em abril do ano passado, como já havia revelado reportagem da Pública. Na época, o movimento social promoveu uma série de ocupações ao redor do país no âmbito do “Abril Vermelho”, campanha que lembra o massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido em 1996.
Segundo os pesquisadores, o conteúdo chegava a estimular discurso de ódio. “A narrativa se baseia no risco de que ‘famílias de agricultores’ tenham suas terras ‘invadidas’, sem fazer distinção entre pequenos produtores e grandes latifundiários”, avaliam no relatório.
A segunda temática mais comum foi a de “negacionismo dos impactos ambientais do agronegócio” (17 dos anúncios considerados “tóxicos”). O foco desses anúncios foi a promoção de projetos de lei que flexibilizam a legislação ambiental, como o de agrotóxicos, e de projetos de infraestrutura como a Ferrogrão, ferrovia que pretende ligar o Mato Grosso ao Pará e é criticada por ambientalistas.
Nessa linha, uma das estratégias de comunicação usadas pela FPA no ano passado foi vender a ideia de que eles estão amparados na ciência e são eles os alvos de negacionismo e desinformação, como no post acima, sobre o projeto dos agrotóxicos.
A análise do Netlab foi focada nas redes da Meta, que fornece alguma transparência sobre quem paga os anúncios, assim como seu alcance e público alvo, o que facilita a investigação. Mas a estratégia da FPA se espalhou por várias outras plataformas, como o Twitter/X, em uma estética moderna, com a utilização de fundos virtuais dinâmicos, de memes e humor.
Nesse esforço, entra também o que os pesquisadores classificaram como “disputa semântica”, com o uso de tons didáticos e explicativos. Um exemplo frequente, dizem, é o reforço ao uso do termo “pesticidas” em vez de “agrotóxicos”. “O intuito é minimizar a percepção de que são produtos tóxicos à vida humana e à natureza”, aponta o Netlab.
Se ambientalistas chamam o projeto de lei de “PL do Veneno”, o léxico da FPA fala em “modernização” da legislação em busca de um aumento da produção de alimentos “seguros e de qualidade” para o Brasil e o mundo.
De acordo com os pesquisadores, tudo isso acaba funcionando como uma tentativa de inverter uma das acusações mais comuns contra o setor. Há anos, cientistas vêm alertando que a bancada ruralista se vale de “falsas controvérsias” e de estudos encomendados para embasar seus projetos de lei.
Além disso, deputados ruralistas se destacaram nos últimos anos por se alinharem a negacionistas do clima e dos impactos ambientais. Reportagem da Pública revelou no ano passado como o setor impulsiona uma máquina de fake news sobre o aquecimento global.
Fato ou fake às avessas
“É a estratégia de acusar o outro daquilo que, na verdade, é você que faz. Eles se valem de afirmações científicas, mas que são falsas, ou pelo menos enviesadas. Acusam os outros de negacionismo, mas negacionismo é selecionar evidências ao seu bel-prazer”, disse Débora Salles, uma das coordenadoras da análise, à reportagem. “Da mesma forma que é greenwashing dizer que o agro não tem impacto socioambiental, negar os riscos que uma obra como a Ferrogrão pode ter, por exemplo”, diz.
“Práticas de greenwashing combinadas com desinformação mostram o agro brasileiro como um exemplo mundial de sustentabilidade e de avanço tecnológico para a preservação ambiental, o que seria motivado por uma das legislações ambientais mais rígidas do mundo”, escrevem os pesquisadores do Netlab.
Dentro dessa estratégia, muitos dos anúncios se valeram da estética “fato ou fake”, comum nos sites de checagem de informação. Assim, fatos bem embasados sobre o setor – como a relação histórica e ainda atual com o desmatamento da Amazônia e do Cerrado e as emissões nacionais de gases de efeito estufa – são taxados de mentira, dando lugar a uma narrativa de que o setor não só é um exemplo, como vítima.
“O agronegócio é apresentado como exemplo mundial de preservação ambiental, e os agrotóxicos, como provedores de alimentos de qualidade. A noção de um ‘agro de verdade’ é associada à sustentabilidade, sugerindo que se dissemina uma ‘ideia mentirosa’ sobre um agro que não preserva o meio ambiente”, relatam os pesquisadores.
Segundo Débora, isso é muito eficiente, porque gera dúvida nos usuários das redes. “Tem um poder de convencimento muito grande. Ninguém vai achar que uma instituição que se imagina séria, uma frente parlamentar, está fazendo uma checagem falsa. Mas no fim das contas é isso: uma checagem negacionista”, afirma Débora.
Narrativa emocional: “Trabalhadores vão perder suas casas”
Outra característica que chamou a atenção dos pesquisadores foi o uso de conteúdo considerado alarmista, com apelo emocional, remetendo ao medo sobre o que pode ocorrer se a agenda do agro não prevalecer.
Um dos exemplos mais marcantes foi a campanha em prol da adoção do marco temporal, como detalhamos em coluna da Pública. Para a bancada ruralista, essa era uma das prioridades no ano passado, sob a alegação de que o estabelecimento de uma prazo para demarcação seria necessário para garantir a “segurança jurídica” do país.
Um dos posts em que a FPA mais investiu dinheiro em 2023 foi justamente sobre isso. Veiculado na última semana de maio, às vésperas da votação do PL 490 na Câmara, um vídeo narra a história da fictícia Ana, uma jovem mulher negra, urbana, que conseguiu, depois de anos de estudo e trabalho, conquistar “o sonho da casa própria” para ser notificada que perderia tudo porque o bairro onde ela mora, no meio de uma cidade grande, tinha virado terra indígena. Foram destinados entre R$ 700 e R$ 799 nesse anúncio, que angariou ao menos 100 mil impressões.
Considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o marco temporal estabelece a data da promulgação da Constituição de 1988 como data em que os indígenas deveriam estar ocupando suas terras para que elas sejam demarcadas. Para indígenas e organizações de defesa de direitos dos povos tradicionais, o marco pode afetar a garantia constitucional de áreas de ocupação tradicional das quais povos indígenas foram expulsos, além de poder contribuir para um aumento do desmatamento.
A despeito da decisão do STF, o Congresso aprovou um projeto de lei (PL) instituindo o marco temporal, entre outras medidas, em setembro do ano passado. O PL foi parcialmente vetado por Lula (PT), mas o Congresso derrubou a maior parte dos vetos, retomando a tese. A constitucionalidade da lei está sendo questionada no STF.
Segundo a análise, o público preferencial dos anúncios da FPA foram homens acima de 35 anos que vivem nas regiões Sul e Sudeste do país, especialmente em Paraná, São Paulo, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Santa Catarina.
Os porta-vozes mais frequentes nas publicações foram o deputado federal Pedro Lupion (PP/PR), que preside a FPA, e os senadores Zequinha Marinho (Podemos/PA) e Tereza Cristina (PP/MS). “Os anúncios são, prioritariamente, direcionados a seus estados de origem, o que pode indicar a instrumentalização da FPA para influenciar a política local”, apontam os pesquisadores.
A FPA foi procurada pela Pública para se manifestar sobre a análise do Netlab, mas não respondeu até a publicação da reportagem. Se houver resposta, o texto será atualizado.
Edição: Bruno Fonseca