O Bip Bip, que nasceu no mesmo dia da criação do malfadado AI 5 para provar que nem tudo mundo é atrocidade, é aqui retratado por um frequentador assíduo no dia em que completa meio centenário.
Por Marcelo Moutinho, no Facebook
Na primeira vez em que fui ao Bip Bip, movido pela fama da boa música, detestei o lugar. Estava lotado. Não havia nada para comer nem espaço para quem quisesse ouvir a roda de samba, já que os instrumentistas ocupavam praticamente toda a minúscula área física do bar. E o dono parecia nervoso. Ordenava, aos berros, que os frequentadores fizessem silêncio. Quando pediu a palavra e bradou “Somos todos uns filhos da puta”, me mandei.
Mas eu voltaria. E ouviria outras tantas vezes o auto-xingamento que, afinal, se justificava: ele se referia à nossa incapacidade de olhar para o outro, de estender a mão. Quem nunca? Foi assim que conheci Alfredo Jacintho Melo, o Alfredinho.
Não demorou e me tornei assíduo no Bip. Aos domingos, então, era garantido bater ponto lá. Depois, saía com Alfredinho e a saudosa Regina para forrar o estômago e tomar a saideira num dos restaurantes habituais do casal: Alcazar, Lamas, Sindicato do Chope, Sat’s. Nosso papos sempre valeram a ressaca do dia seguinte.
Como escrevi certa vez, Alfredinho é a personificação do poema de Maiakovski: “Todo coração”. Apaixonado pelo Botafogo e pela Mangueira, socialista e cristão daqueles que vão mesmo à missa, atua como elemento aglutinador daqueles que se reúnem no Bip ao crepúsculo de cada dia, bafejados pela maresia de Copacabana.
O Bip é seu espelho, alma refletida. Impossível distinguir a borda entre um e outro. Se hoje o miúdo bar é tido como signo da mais tradicional boemia carioca e reduto do melhor da música brasileira, com rodas de choro, samba, bossa nova, deve-se a esse pequeno grande homem capaz de gritar toda a miríade de palavrões do dicionário e, na sequência, cumprimentar o interlocutor com um beijo afetuoso no rosto.
Foi ele quem deu o tom politizado que o Bip tem. Foi ele quem atraiu para seu boteco, como um ímã do bem, tanta gente que lá encontrou seus amigos, seus pares – ou a si mesmo. Alfredinho criou uma confraria sem bolas pretas, as portas sempre abertas a quem quiser se chegar.
No Bip, não há garçom. Os próprios fregueses é que pegam sua cerveja na geladeira e em seguida avisam ao dono. Sentado na entrada do bar, com a indefectível combinação de camisa de mangas curtas e bermuda jeans – só o vi de calça uma vez -, ele anota a conta de cada um no seu caderno, em confiança. Os já conhecidos são registrados pelo nome. A turma novata ganha alcunha na hora: “Tricolor”, se está com a camisa do Fluminense; “Loirinha”, se tem cabelos claros; “Barba”, se o rosto é hirsuto.
Hoje sou frequentador menos habitual, mas no domingo passado estive lá. Para chamar encantamento – como dizia Vinicius de Moraes quando queria tomar uns copos – e ouvir o tradicional discurso do Alfredinho. Dessa vez o tema era a Ceia de Natal para os Pobres, um dos tantos projetos sociais de seu, nosso, bar.
O Bip é uma utopia, costuma repetir meu camarada Hugo Sukman. Já não acredito em utopias, mas é bom saber que existe uma ali, tão próxima.