Barracão de usina

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Por Marco Albertim para o Portal Vermelho – 

O costume dos homens do arruado era olhar para o céu, só para confirmar o calor, a temperatura alta. Na manhã daquela segunda-feira, tinham os olhos tão somente para o chão cinzento, seco, da rua comprida entre as casas enfileiradas sobre calçadas altas, e o riacho paralelo na margem do canavial. Por ali passava todos os dias, e a hora todos sabiam, Silvino Aureliano, o chefe da capatazia da Usina Maravilha.

Corpulento, com um chapéu de feltro na cabeçorra e um par de botas de solado grosso, deixando o rastro por onde andasse; o relho de couro, tinha-o atado à mão direita; a impressão era de que iria subir na montaria; de fato, Silvino Aureliano percorria os caminhos do canavial todas as tardes, depois de montar no cavalo, mantido numa das baias nos fundos do barracão da usina.




O capataz morava no fim do arruado, numa casa isolada, com terraços na frente e nos lados; antiga, com a coberta dos terraços apoiada em troncos de madeira. Não se podia negar que houvesse certa fartura na casa senhorial de Silvino Aureliano, a começar pela semelhança com o vistoso sobrado de Antônio Dourado, gestor da usina e genro do proprietário.

Os homens desceram para a rua. Mirando o chão crestado pelo sol, inda que fosse o começo do dia, distinguiram as marcas deixadas pelas botas do capataz. As mulheres não quiseram ficar para trás, tampouco os filhos. A razão do ajuntamento estava em seus rostos magros, vincados pela severidade tão em uso para não dar rédeas ao desespero. Os filhos, todos já desmamados, com o instinto forçando-os a seguir a barra dos vestidos desbotados das mães.

Fosse numa guerra declarada, mulheres e crianças ficariam para trás. Os moradores, no entanto, tinham a fisionomia tão em conformidade com a aridez do chão, com a crosta sebenta das paredes das casas, que impossível seria proibir a sombra do mais mutilado de todos.

Logo as marcas das botas do capataz foram desfeitas pelos pés calçados em alpercatas de couro dos homens. As mulheres usavam sandálias de tiras finas, pouco se importando que, antes mesmo de atingirem o fim da marcha, ficariam estropiadas. Os filhos, com os cambitos finos e expostos, estavam sem nada nos pés; não se queixavam, porquanto a rotina seca dos dias crestara-lhes a sola dos pés. No riacho, tomando banho, as bocas dos curumins cuspiam jorros da água gelatinosa; assim, nutriam-se da crença balofa de que a água propiciava fartura.

As casas foram fechadas com chaves de pouca serventia, visto que bastaria um esforço pouco de mãos, para a lingueta curta da fechadura deixar a porta aberta. Mas, rouybar o quê?

O ajuntamento se pôs a caminho. Logo seriam sete horas. Os operários do turno da madrugada cederiam os postos para os rendeiros. Os operadores de máquinas, nenhum deles se juntara à marcha dos famintos; tinham salário certo e moravam em vilas de casas de alvenaria, distantes do centro de Goiana, mas sem rachaduras ou manchas de gordura como as dos cambiteiros. Os rendeiros já tinham atravessado a esplanada em frente ao enorme salão de moagem da cana. Os que iam para casa, depois de cruzar o balanceiro, o vigilante, depararam com os homens que, todos sabiam, roçavam o eito e cortavam as canas na época da safra. Quando não havia safra, não havia o que comer; agora, mesmo com safra, a usina se recusava a pagar-lhes o salário conforme a tabela de tarefas acordada pelo sindicato.

Primeiro pararam no meio da esplanada. Do lado de fora, numa casa com terraço na frente, meia dúzia de funcionários alforriados, sentados em bancos do gênero pela-porco, jogavam conversa fora. Era o barracão da usina. O gordo proprietário do lado de dentro do balcão, com apenas um empregado, administrava a venda de pães, bolachas, utensílios de cozinha, cachaças, cereais e o charque gorduroso tão ao gosto do estômago vazio de cada cambiteiro.

Silvino Aureliano, com o relho na mão, enxergou o súbito ajuntamento, prevendo um bulício já cogitado em seus urdimentos de capataz. Também tinha lugar fixo no pela-porco.

Homens e mulheres subiram no terraço do barracão. O capataz se pôs em pé.

– O que é isso?! – quis saber.

– Isso mesmo que o senhor tá vendo. Nós tamos com fome e sem medo de morrer. Se é que a morte não já chegou, mesmo a gente sentindo o cheiro do charque no barracão.

O camponês que respondeu era um negro de queixo pontudo, olhos miúdos exprimindo convicção em que tudo que dizia.

O gordo dono do barracão foi aos fundos, trouxe do depósito um rifle de cano grosso; segurou-o com as duas mãos, a boca do cano para cima. Ele e o empregado, perplexos, estacaram sem nada dizer. Pareceu-lhes que as paredes borradas, a comedoria de uma cor só, no negrume do balcão sem luz, se abriam para um festim incomum, nunca incluído nos urdumes de lucro.

Não sobrou charque para o dono vender aos fregueses com salário certo, e nome limpo na caderneta de fiados.

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