Por Ademir Assunção, jornalista e escritor
Os dois nasceram pretos, pobres e tiveram a polícia sempre por perto — não exatamente para protegê-los. Jamais foram expulsos de uma universidade por mau comportamento — porque sequer conseguiram chegar ao ginásio. Durante anos a fio comeram o pão que Deus jogou no lixo e o Diabo amassou. Vieram ao mundo em épocas diferentes. Um caiu no samba, outro no rap. Mas ambos expressam um Brasil que o Brasil não gosta de encarar de frente. “Me atire uma pedra e eu lhe atiro uma granada” — ameaça um. “Vou apertar mas não vou acender agora” — debocha o outro. Bezerra da Silva, partideiro dos morros cariocas, e Thaíde, rapper paulistano de Vila Missionária, falam linguagens diferentes mas liberam o mesmo veneno: a ótica enfezada dos marginalizados, da escória cujo cartão de crédito é realmente uma navalha.
Bezerra, 64 anos, sambista pernambucano criado no morro do Cantagalo (zona sul do Rio), não freqüenta a sala VIP das emissoras de FM, embora seus quase 20 LPs gravados já tenham vendido mais de três milhões de cópias — segundo dados oficiais. Thaíde, 24 anos, ex-favelado, apenas dois registros em vinil, transita no território tumultuado das gangues periféricas que chacoalham o esqueleto na cadência do break e forram os muros da cidade com agressivos grafites. Quilômetros de distância entre essas duas periferias? Menos de um metro.
Thaíde chegou antes, um Notícias Populares debaixo do braço, boné na cabeça e uma aliança no anular esquerdo. O velho Bezerra saiu do elevador bufando, injuriado: o malandro descolado acabara de levar um chapéu de um empresário trambiqueiro. Fez alguns shows no interior de São Paulo e não viu nem a sombra do dinheiro. “Malandro é malandro, mané é mané. Esse safado pisou na bola”.
Desabafo feito, o rap e o partido-alto sentaram-se à mesma mesa, numa tarde ensolarada, em uma sala da gravadora BMG, no bairro de Santa Cecília.
Trecho da reportagem “Samba e rap na ótica enfezada dos sem nada”, publicada no Jornal da Tarde em 19 de junho de 1991. Há mais de 30 anos promovi um encontro entre os dois compositores, com a ajuda da saudosa Miroca (a assessora de imprensa mais gente fina que conheci), exclusivamente para a reportagem. Foi um encontro fechado, sem público. O texto agora está incluído no livro “Deus Salve a Rainha e Evite Engarrafamentos” (Editora da UnB) – disponível na Amazon (link aqui):