Bira, médico, contaminado pelo Covid-19,  militante da saúde, 68 anos: “O trabalho deve ser servo da vida e não o contrário”

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Por Aparecido Lima Araújo(Cidoli)  e Washington  Luiz de Araújo, jornalista, Bem Blogado

Depoimento do médico Ubiratan de Paula Santos, uma das maiores referências na luta pelo SUS no Estado de São Paulo, que foi diagnosticado com  Covid-19 no início de maio. Militante da saúde, há mais de 40 anos, Bira, como é conhecido no geral, tem 68 anos e conta aqui todo o seu processo com a doença.




“Não tenho a impressão de ter ficado com traumas do processo, que quase me levou embora. Creio que reforçou minhas convicções que não devemos ser escravos do consumo, que devemos ter uma vida com amigos, valorizar a sociabilidade, a vida. Ninguém, nem médico, deve se limitar ao trabalho. O trabalho deve ser servo da vida e não o contrário”, afirma o médico.

Bira critica  o tratamento do Covid-19 no Brasil: “Em razão da inépcia do Ministério da Saúde, secretarias estaduais e municipais, ainda hoje são tomadas muitas condutas inadequadas ou, simplesmente, não são tomadas, o que explica diferenças de mortalidades  entre hospitais, cidades e estados.”

 

Vamos ao relato:

Trabalho e infecção pelo Covid-19

Trabalho como médico assistente na Divisão de Pneumologia no Instituto do Coração (InCor), desde 1997, onde só atendo pacientes do SUS. Lá sou responsável pelos ambulatórios para atender pessoas acometidos ou com risco de serem por doenças respiratórias ocupacionais, ambientais e para ajudar no tratamento de fumantes, para que cessem o tabagismo.

Não sei onde me contaminei, creio que deve ter sido no InCor, apesar de que a partir de abril todos os médicos com mais de 60 aos foram retirados dos atendimentos presenciais. Ficamos dando aulas e discutindo casos online.

Não estava ligado diretamente no atendimento de pacientes com Covid-19. Havia internado no Incor um conhecido, no qual fiz o diagnóstico, mas não o acompanhei na internação. Tudo virtual.

 

Processo de Internação, da enfermaria à UTI

Comecei com sintomas de mal estar no final do  primeiro de maio. Nos dias seguintes, passei a ter febre, no inicio baixa e depois alta, anorexia e muitas dores no corpo. Apesar da idade, 68 anos, associada a maior risco de casos sérios, pensei que meu caso não iria ficar tão grave, até dia 10 de maio, quando percebi que as coisas não estavam indo bem.

Neste dia, pela manhã, decidi ir para o Pronto Socorro do InCor fazer uma avaliação, devido a queda na saturação de oxigênio (medida em casa) e um pouco de cansaço. Fui internado na enfermaria do Instituto Central do HC (ICHC) ao final do dia 10. Nos dias 11 e 12, o cansaço e falta de ar foram se acentuando, apesar de ter iniciado medicação e, na noite do dia 12, foi tomada a decisão de me transferirem para a UTI da pneumologia, onde devo ter dado entrada na madrugada do dia 13.

Fiquei de cinco a seis dias com medicações e suporte de oxigênio, mas devido à piora do quadro, da insuficiência respiratória, fui entubado e submetido à ventilação mecânica, do dia 18 ao dia 23, quando melhorei e fui extubado.

Felizmente apaguei completamente a memória do período que fiquei na UTI até a intubação, apesar de estar acordado e conversando até o momento da intubação (informado pelos médicos). Só lembro a partir do dia da extubação, quando fiquei com suporte de oxigênio com cateter nasal.

Ainda meio sem saber direito se minha evolução seria favorável e progressiva, só fui me comunicar por WhatsApp com minhas duas filhas dois dias depois.

Tive alta da UTI para a enfermaria no dia 27 de maio, mas com fraqueza intensa, falta de ar para sentar na cama, sem conseguir, sem ajuda, caminhar e nem engolir alimentos pastosos (tipo papinha de crianças, yogurt).

 Retorno à ativa

Na enfermaria, para tomar banho, no início, precisei ir de cadeira de rodas e cateter de oxigênio e técnicos de enfermagem me dando banho, porque não tinha forças e piorava a falta de ar se eu fizesse qualquer movimento. Fui melhorando aos poucos,

Nos dias seguintes, fazendo um pouco de fisioterapia e comendo melhor, a falta de ar e cansaço foram um pouco menos intensos, sendo que nos 31 de maio e primeiro de junho consegui tomar banho sentado sem ajuda, mas não me vestir.

No dia dois de junho tive alta do hospital. Desde então, faço exercícios orientados por fisioterapeuta todos os dias, tenho dieta reforçada, e estou conseguindo me recuperar, embora lentamente. Já posso me virar em casa, sozinho. Há uma semana, voltei a dirigir e trabalhar meio período por dia.

Percepção sobre o tratamento

Doença nova, sem um tratamento que combata diretamente o vírus, mas apenas seus efeitos inflamatórios, principalmente nos pulmões, mas também pode acometer os rins, fígado, coração, nos músculos, cérebro, além de provocar fenômenos tromboembólicos, alterações do olfato e no gosto.

Pela inépcia do Ministério da Saúde, em grau maior, e também das secretarias de saúde de estados e de município, muitos profissionais que atuam em UBS – Unidade Básica de Saúde, OS–Organização Social, UPAS – Unidade de Pronto Atendimento de Saúde, não recebem orientações e monitoramento sobre as melhores condutas à luz das evidências e experiências que vão sendo adquiridas desde o início da pandemia em dezembro de 2019.

Assim, ainda hoje são tomadas muitas condutas inadequadas ou, simplesmente, não são tomadas, o que explica diferenças de mortalidades  entre hospitais, cidades e estados.

Trajetória de vida – Nasci em São Paulo, na região da Praça da Árvore, mas aos seis meses de idade mudei com meus pais para um sítio de 12 alqueires, localizado na cidade de Dobrada, cerca de dois mil habitantes, onde vivi até dezembro de 1969. Fiz curso técnico de química industrial em Araraquara (1967-69) e de dezembro de 1969 trabalhei como técnico químico em fábricas de óleo (Cestol- nas cidades de Monte Alto e Oswaldo Cruz; SANBRA, São Paulo), na Ultrafértil e por fim na Ciba-Geigy de 71 a 72, ambas em SP.

Em 1973 entrei na Faculdade de Medicina da USP, parei de trabalhar como químico e fui trabalhar como bancário (banco Itaú) a noite, de janeiro a  dezembro de 1973. A partir de janeiro de 74, consegui bolsa de estudo da FAPESP, em valor semelhante ao que ganhava no Itaú, trabalhando com pesquisa com cromossomas de larvas de moscas. Fiquei até 1975.

 Trajetória política
Fui militante do PCB de 1973 a 1984. Sou militante do PT desde 1985. Fui vice-presidente e presidente do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz (CAOC) em 1975/76 e 1976/77, respectivamente. Período de luta contra a ditadura, pelas liberdades democráticas. Fui preso em 1975, permanecendo algumas semanas no DOI_CODI, depois no DOPS e de depois numa cadeia no Cambuci, num total de três meses e meio, fui processado e absolvido.

Fui preso em 1977, quando Erasmo Dias e Romeu Tuma cercaram o CAOC, onde estávamos organizando encontro nacional para reorganização da UNE; outros 175 estudantes foram também presos, me soltaram no dia seguinte. Fui preso em 1982 pela policia federal em evento que tentava realizar o VII Congresso do PCB, em São Paulo e solto no mesmo dia, como os demais.

 Processo de criação do SUS

Meu envolvimento com o SUS ocorreu na área de saúde do trabalhador, de 1984 a 1989, onde coordenei na cidade de Salto e na região da Zona Norte de São Paulo a implantação de programas para atender trabalhadores em unidades básicas de saúde, com foco para as doenças decorrentes do trabalho. Posteriormente, de 1991 a 1992, trabalhei na Secretaria de Saúde em Santos, coordenando os serviços de pronto socorro e de resgate (atual SAMU).

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