O sionismo, que por dezesseis anos foi considerado racismo pela ONU, nada tem a ver com judaísmo, ou semitismo
Por Coletivo Transforma MP, compartilhado de Jornal GGN
por Plínio Gentil
Em Gaza e seus arredores milhões de pessoas vivem a incerteza do dia seguinte. São habitantes da região – os palestinos -, descendentes dos que há dois mil anos ali foram se estabelecendo. Têm casas, filhos, trabalho e, mesmo em tempo de paz, submetem-se a um verdadeiro apartheid étnico, que lhes impõe incontáveis restrições. Se nunca foram propriamente senhores desse território, que se estende para muito além dali e há tempos é sujeito a domínio estrangeiro, nele viviam em absoluta maioria até 1948. Nesse ano uma resolução da ONU formalizou o que já vinha sendo posto em prática: a ocupação da área por colonos identificados com a tradição judaica, vindos principalmente do leste europeu. Terras eram compradas com financiamento de judeus bilionários e distribuídas aos interessados em ir para a “terra prometida”. A ocupação começava primeiro pela povoação, depois pela implantação de instituições exclusivas, depois por meio de ação militar e paramilitar, como a explosão do Hotel King David, em Jerusalém, que deixou mais de noventa mortos, dirigida por um futuro primeiro-ministro do futuro Estado de Israel.
Para legitimar a ocupação, planejada desde o fim do século XIX, desenvolveu-se uma doutrina política, o sionismo, inicialmente laica, mas que viu na aliança com o judaísmo e suas instâncias religiosas o elemento ideal para um amálgama capaz de unir toda uma etnia. Os judeus, desde o ano 70 DC, se integraram a vários estados e nações mundo afora e sua reunião num único território não era uma demanda expressiva, menos ainda consensual, entre eles. O holocausto nazista contra os judeus, graças ao justo repúdio que causou em todo o mundo, forneceu ao sionismo, sem querer, o ingrediente que faltava para a criação do estado judaico, o que obteve aprovação até mesmo da União Soviética.
Então o sionismo ganhou ares de doutrina libertária e o mundo parece não ter percebido que, aos poucos, ela se materializava num movimento em busca da colonização de um território habitado por outros povos e a implantação de um estado teocrático, já que estabelecido em bases religiosas, destinado a uma etnia específica.
Isto não poderia, é claro, ser obtido pacificamente, mas aí entra o interesse geopolítico das grandes economias ocidentais, pois a região visada era um importante entreposto entre o Ocidente e o Oriente e, mais relevante que isso, numa área próxima a enormes reservas de petróleo. Era preciso manter ali um regime amigo e politicamente alinhado aos interesses das petroleiras ocidentais, daí o apoio político, econômico e militar desde sempre dado ao estado de Israel.
Só que, no ponto a que as coisas chegaram, Israel começa a ser um amigo incômodo. A matança da população palestina, cujos dados hoje apontam para cerca de vinte mil vítimas, a metade crianças e mulheres – civis portanto –, vem provocando protestos significativos em todo o mundo. Essa oposição à violência israelense, embora minimizada pela mídia empresarial, parte muitas vezes da própria comunidade judaica, que faz questão de se dizer não representada pela ação militar contra a Palestina. Enfim, o governo israelense vai ficando isolado e seu principal aliado, do outro lado do Atlântico, por conta desse apoio já não tem certeza de reeleger seu presidente.
O sionismo, que por dezesseis anos foi considerado racismo pela ONU, nada tem a ver com judaísmo, ou semitismo, termo usado para generalizar o conjunto de cultura, história e religião dos judeus. Mas a equiparação enganosa dos dois conceitos é conveniente ao sionismo e a triste ironia do destino é que ninguém como ele está fazendo tanto pelo anti-semitismo, o que é uma consequência previsível da onda mundial de condenação à violência militar israelense e da crescente perda de apoio político de Israel.
É hora de governos, movimentos, partidos, intelectuais, artistas, a academia, associações, sindicatos, coletivos e todas as pessoas de boa vontade, humanistas e amantes da paz, de quaisquer matizes ideológicos, dizerem um basta – não apenas retórico – ao que se converteu num genocídio, transmitido em tempo real e que, por isso mesmo, não pode ser ignorado por ninguém. É cínico falar em boas festas enquanto as coisas continuarem assim.
O artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP.
Plínio Gentil é Procurador de Justiça do Ministério Público de São Paulo, professor universitário e integrante do Coletivo Transforma MP.