Nove anos depois do incêndio da Boate Kiss, a cidade de Santa Maria, no interior do Rio Grande do Sul, enfrenta um dos efeitos mais duradouros da tragédia: o impacto na saúde mental.
Por Luiz Antônio Araujo, compartilhado de BBC Brasil
Criados para prestar assistência a sobreviventes, familiares e envolvidos semanas depois do episódio, dois serviços especializados – um de atenção psicossocial, e outro, multiprofissional – são hoje referência nacional em atenção pós-traumática.
No dia 10 de dezembro do ano passado, a condenação dos quatro réus no processo relacionado ao incêndio – Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, sócios da boate, e Marcelo dos Santos e Luciano Bonilha, respectivamente vocalista e ex-produtor da banda que se apresentava no local – tornou-se um momento de consternação e reconhecimento para vítimas e familiares.
O julgamento, que se estendeu por 10 dias no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, distante 330 quilômetros do município, mobilizou a parcela da população que via na responsabilização criminal uma etapa necessária da dor e da perda. Grupos de voluntários envolveram-se na organização de caravanas à capital e na acolhida dos que retornaram após acompanhar o julgamento.
O psicanalista Volnei Dassoler, integrante do Santa Maria Acolhe, serviço psicossocial implantado pela prefeitura após a tragédia, foi um dos que viajou a Porto Alegre. Para o doutor em Psicologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o julgamento teve um importante papel simbólico.
“Não serviu para curar todas as feridas, porque existe a sensação de que faltavam pessoas no banco dos réus. Mas funcionou como marcador simbólico para que se fizesse a passagem de um momento para outro na elaboração do que ocorreu”, diz Dassoler, que coordenou o Santa Maria Acolhe até dezembro.
Para o psicanalista, o serviço de acolhimento psicossocial, implantado no mês seguinte à tragédia, é um marco não apenas para a população local, mas também para a área de saúde mental no Brasil. “Iniciativas como essa emergem em resposta a eventos disruptivos, mas com o tempo e a diminuição da demanda, tendem a desaparecer. Percebemos, porém, que havia uma parcela da população desassistida em relação a situações traumáticas de outras naturezas, como violência, perdas familiares, homicídios e suicídios”, afirma.
Entre os 285 mil habitantes, é comum encontrar quem se recorda do dia e do momento em que soube do incêndio, na manhã do dia 27 de janeiro de 2013, um domingo abafado de verão.
O radialista e escritor Márcio Gringgs estava apresentando um programa no estúdio de uma rádio local e mergulhou em uma jornada de cobertura ininterrupta, sem intervalos comerciais. “Uma colega repórter estava em frente à boate e começou a informar o número de mortos confirmados: 20, 30. No final da manhã, já eram centenas”, recorda-se Gringgs, casado com uma psicóloga que trabalhou no atendimento de emergência.
O professor Vitor Crestani Calegaro, do Departamento de Neuropsiquiatria do Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM), vinculado à Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), viu nascer naquele dia o embrião do que viria a ser o Centro Integrado de Atenção às Vítimas de Acidentes (Ciava).
Na noite do incêndio, ele concluía o período de residência na instituição e engajou-se nas operações de socorro. “O atendimento de emergência durou uma semana. Depois, voltamo-nos para as pessoas internadas. Num terceiro momento, foi organizado o serviço ambulatorial. Psiquiatras voluntários, ex-professores, ex-alunos dispuseram-se a ajudar”, relembra.
O Ciava, segundo Calegaro, surgiu por iniciativa de professores da UFSM e servidores de diversas áreas do HUSM. “Desde o início, pensamos que deveria haver atendimento de longo prazo e de caráter multiprofissional, com especialidades médicas e não-médicas, como Fisioterapia, Fonoaudiologia e Enfermagem. Esse é um grande diferencial do nosso serviço: atendemos em conjunto, com diversos especialistas. Não existe um lugar no hospital chamado Ciava. Somos uma equipe muito unida, fazemos reuniões e trabalhamos de forma coordenada”, explica.
O aprendizado de Santa Maria na resposta a situações de dor e trauma é reconhecido nacionalmente e foi empregado em outras emergências. Dassoler, do Santa Maria Acolhe, esteve em Mariana, Minas Gerais, depois do rompimento da barragem do Fundão, e em Chapecó, Santa Catarina, após a queda do avião com jogadores da Chapecoense, em 2016.
“Há muitas semelhanças entre os episódios, mas também diferenças. São cidades menores, e no caso de Mariana o fator desencadeador foi uma grande empresa (a Vale S.A., proprietária da barragem) e não um pequeno negócio. Em todas, porém, há o impacto da urgência, porque esses acontecimentos rompem a rotina não apenas das pessoas, mas da cidade”, afirma.
Uma medalha de agradecimento foi conferida pela Chapecoense a uma equipe de cinco profissionais do Santa Maria Acolhe, entre os quais estava Dassoler, que doou à Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AAVTSM).
O secretário de Saúde de Santa Maria, Guilherme Ribas, diz que a concepção de atendimento em rede, fundamental no estágio atual do Santa Maria Acolhe, é a principal lição em termos de atendimento à saúde mental após o incêndio da Kiss.
“Sabemos que pacientes atendidos nessas situações chegarão, em algum momento, à alta. Nesse momento, precisarão ser acompanhados por meio de unidades e profissionais próximos de seus locais de residência, sejam postos de saúde, ambulatórios, serviços mantidos por instituições de ensino”, argumenta. No caso de Santa Maria, a prefeitura já trabalha com a possibilidade de acionar essa rede para atender a uma eventual demanda reprimida na área de saúde mental depois de dois anos de pandemia de covid-19.
No julgamento de dezembro, duas equipes de filmagem da TV Ovo, oficina audiovisual comunitária sem fins lucrativos criada há 25 anos, gravaram o deslocamento de ônibus e as reações de sobreviventes e familiares ao andamento das sessões. Um dos fundadores da produtora, o jornalista e cineclubista Marcos Borba participou das gravações.
“Temos uma relação muito próxima com os familiares, especialmente nos últimos cinco ou seis anos, e nos sentimos na obrigação de mostrar como reviveriam o trauma. Depois da perda dos filhos e parentes, o julgamento talvez tenha sido a maior dor enfrentada por essas pessoas”, diz Borba. “A gente conseguiu captar momentos de muita raiva, angústia, explosão emocional, sentimentos à flor da pele.” No momento, a TV Ovo negocia com uma plataforma de streaming o lançamento do documentário em formato de série ainda este ano.