Boate Kiss: a crise de saúde mental em Santa Maria após incêndio

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Nove anos depois do incêndio da Boate Kiss, a cidade de Santa Maria, no interior do Rio Grande do Sul, enfrenta um dos efeitos mais duradouros da tragédia: o impacto na saúde mental.

Por Luiz Antônio Araujo, compartilhado de BBC Brasil




Ato pelos sete anos do incêndio da boate Kiss em Santa Maria em 2020
Legenda da foto,Ato pelos sete anos do incêndio da boate Kiss em Santa Maria em 2020

Criados para prestar assistência a sobreviventes, familiares e envolvidos semanas depois do episódio, dois serviços especializados – um de atenção psicossocial, e outro, multiprofissional – são hoje referência nacional em atenção pós-traumática.

No dia 10 de dezembro do ano passado, a condenação dos quatro réus no processo relacionado ao incêndio – Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, sócios da boate, e Marcelo dos Santos e Luciano Bonilha, respectivamente vocalista e ex-produtor da banda que se apresentava no local – tornou-se um momento de consternação e reconhecimento para vítimas e familiares.

O julgamento, que se estendeu por 10 dias no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, distante 330 quilômetros do município, mobilizou a parcela da população que via na responsabilização criminal uma etapa necessária da dor e da perda. Grupos de voluntários envolveram-se na organização de caravanas à capital e na acolhida dos que retornaram após acompanhar o julgamento.

O psicanalista Volnei Dassoler, integrante do Santa Maria Acolhe, serviço psicossocial implantado pela prefeitura após a tragédia, foi um dos que viajou a Porto Alegre. Para o doutor em Psicologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o julgamento teve um importante papel simbólico.

“Não serviu para curar todas as feridas, porque existe a sensação de que faltavam pessoas no banco dos réus. Mas funcionou como marcador simbólico para que se fizesse a passagem de um momento para outro na elaboração do que ocorreu”, diz Dassoler, que coordenou o Santa Maria Acolhe até dezembro.

Para o psicanalista, o serviço de acolhimento psicossocial, implantado no mês seguinte à tragédia, é um marco não apenas para a população local, mas também para a área de saúde mental no Brasil. “Iniciativas como essa emergem em resposta a eventos disruptivos, mas com o tempo e a diminuição da demanda, tendem a desaparecer. Percebemos, porém, que havia uma parcela da população desassistida em relação a situações traumáticas de outras naturezas, como violência, perdas familiares, homicídios e suicídios”, afirma.

Entre os 285 mil habitantes, é comum encontrar quem se recorda do dia e do momento em que soube do incêndio, na manhã do dia 27 de janeiro de 2013, um domingo abafado de verão.

O radialista e escritor Márcio Gringgs estava apresentando um programa no estúdio de uma rádio local e mergulhou em uma jornada de cobertura ininterrupta, sem intervalos comerciais. “Uma colega repórter estava em frente à boate e começou a informar o número de mortos confirmados: 20, 30. No final da manhã, já eram centenas”, recorda-se Gringgs, casado com uma psicóloga que trabalhou no atendimento de emergência.

O jornalista Márcio Gringgs
Legenda da foto,O jornalista Márcio Gringgs apresentava um programa de rádio quando surgiram as primeiras notícias da tragédia

O professor Vitor Crestani Calegaro, do Departamento de Neuropsiquiatria do Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM), vinculado à Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), viu nascer naquele dia o embrião do que viria a ser o Centro Integrado de Atenção às Vítimas de Acidentes (Ciava).

Na noite do incêndio, ele concluía o período de residência na instituição e engajou-se nas operações de socorro. “O atendimento de emergência durou uma semana. Depois, voltamo-nos para as pessoas internadas. Num terceiro momento, foi organizado o serviço ambulatorial. Psiquiatras voluntários, ex-professores, ex-alunos dispuseram-se a ajudar”, relembra.

O Ciava, segundo Calegaro, surgiu por iniciativa de professores da UFSM e servidores de diversas áreas do HUSM. “Desde o início, pensamos que deveria haver atendimento de longo prazo e de caráter multiprofissional, com especialidades médicas e não-médicas, como Fisioterapia, Fonoaudiologia e Enfermagem. Esse é um grande diferencial do nosso serviço: atendemos em conjunto, com diversos especialistas. Não existe um lugar no hospital chamado Ciava. Somos uma equipe muito unida, fazemos reuniões e trabalhamos de forma coordenada”, explica.

O aprendizado de Santa Maria na resposta a situações de dor e trauma é reconhecido nacionalmente e foi empregado em outras emergências. Dassoler, do Santa Maria Acolhe, esteve em Mariana, Minas Gerais, depois do rompimento da barragem do Fundão, e em Chapecó, Santa Catarina, após a queda do avião com jogadores da Chapecoense, em 2016.

“Há muitas semelhanças entre os episódios, mas também diferenças. São cidades menores, e no caso de Mariana o fator desencadeador foi uma grande empresa (a Vale S.A., proprietária da barragem) e não um pequeno negócio. Em todas, porém, há o impacto da urgência, porque esses acontecimentos rompem a rotina não apenas das pessoas, mas da cidade”, afirma.

Uma medalha de agradecimento foi conferida pela Chapecoense a uma equipe de cinco profissionais do Santa Maria Acolhe, entre os quais estava Dassoler, que doou à Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AAVTSM).

O secretário de Saúde de Santa Maria, Guilherme Ribas, diz que a concepção de atendimento em rede, fundamental no estágio atual do Santa Maria Acolhe, é a principal lição em termos de atendimento à saúde mental após o incêndio da Kiss.

Detalhe do julgamento dos réus da Kiss: a sobrevivente Jéssica Montardo Rosado (de costas) presta depoimento
Legenda da foto,Detalhe do julgamento dos réus da Kiss: a sobrevivente Jéssica Montardo Rosado (de costas) presta depoimento

“Sabemos que pacientes atendidos nessas situações chegarão, em algum momento, à alta. Nesse momento, precisarão ser acompanhados por meio de unidades e profissionais próximos de seus locais de residência, sejam postos de saúde, ambulatórios, serviços mantidos por instituições de ensino”, argumenta. No caso de Santa Maria, a prefeitura já trabalha com a possibilidade de acionar essa rede para atender a uma eventual demanda reprimida na área de saúde mental depois de dois anos de pandemia de covid-19.

No julgamento de dezembro, duas equipes de filmagem da TV Ovo, oficina audiovisual comunitária sem fins lucrativos criada há 25 anos, gravaram o deslocamento de ônibus e as reações de sobreviventes e familiares ao andamento das sessões. Um dos fundadores da produtora, o jornalista e cineclubista Marcos Borba participou das gravações.

“Temos uma relação muito próxima com os familiares, especialmente nos últimos cinco ou seis anos, e nos sentimos na obrigação de mostrar como reviveriam o trauma. Depois da perda dos filhos e parentes, o julgamento talvez tenha sido a maior dor enfrentada por essas pessoas”, diz Borba. “A gente conseguiu captar momentos de muita raiva, angústia, explosão emocional, sentimentos à flor da pele.” No momento, a TV Ovo negocia com uma plataforma de streaming o lançamento do documentário em formato de série ainda este ano.

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