“Bolsonaro é um criminoso político que desafia o impeachment”

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Compartilhado de DW – 

Presidente cometeu diversos crimes de responsabilidade, mas é protegido por “escudo político” que inclui até Lula, que prefere tentar vencê-lo nas urnas em 2022, avalia Rafael Mafei, autor de livro sobre impeachment.

Jair Bolsonaro discursa segurando uma canetaBolsonaro é alvo de mais de 110 pedidos de impeachment protocolados na Câmara

O impeachment é um remédio amargo que deve ser reservado como último recurso para proteger o país de um presidente tirano ou criminoso que tenha conseguido vencer as eleições. Apesar de traumático, vacilar na sua aplicação quando ele for indispensável pode ter efeitos trágicos para a democracia.




A análise é do professor de direito da Universidade de São Paulo (USP) Rafael Mafei, que lançou nesta sexta-feira (11/06) o livro “Como remover um presidente – Teoria, história e prática do impeachment no Brasil”, pela editora Zahar. Em entrevista à DW Brasil, ele afirma que uma das hipóteses emergenciais nas quais o uso desse instrumento seria necessário é o exercício da Presidência por Jair Bolsonaro.

A obra explica a evolução do impeachment desde o primeiro uso do verbo “impeach” em um parlamento, em 1376 – quando lordes ingleses condenaram Lord Latimer à perda do cargo e à prisão por fazer empréstimos escorchantes em nome da Coroa e desviar parte dos recursos –, à inscrição do termo na Constituição dos Estados Unidos em 1787 e sua adaptação ao Brasil, aqui acompanhado de um deslocado viés parlamentarista.

Mafei diz não existir “nenhuma dúvida jurídica” de que Bolsonaro tenha cometido crimes de responsabilidade, e destaca dois. O primeiro seria violar o direito à saúde no contexto da pandemia de covid-19, que teria ficado “ainda mais claro” com os trabalhos da CPI da Pandemia. O segundo seria proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo, ao usar o poder comunicacional de sua posição para “agredir instituições, incitar comportamentos contrários à lei, estimular indisciplina de instituições militares e a hostilidade entre instituições militares e civis”.

“Se o comportamento de Bolsonaro não viola a dignidade, a honra ou o decoro do cargo, esse crime tem que ser riscado da lei, porque não existe, é impossível ele ser cometido”, afirma.

Professor Rafael Mafei
Mafei: “Se o comportamento de Bolsonaro não viola a dignidade, a honra ou o decoro do cargo, esse crime tem que ser riscado da lei”

Apesar de haver mais de 110 pedidos de impeachment contra Bolsonaro apresentados à Câmara dos Deputados, nenhum andará enquanto o presidente mantiver seu “escudo político”, que compreende seus apoiadores, como o presidente da Casa, Arthur Lira, mas também adversários que preferem tentar derrotá-lo nas urnas em 2022, como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, avalia Mafei.

“O impeachment é difícil porque exige que todo mundo contra o presidente não somente seja um grupo grande, mas que tenha o mesmo plano A do impeachment”, diz. Ele considera problemática a preferência de setores da oposição em tentar derrotar Bolsonaro nas urnas em vez de buscar tirá-lo via impeachment. Esse cenário considera que o pleito de 2022 seria apenas uma questão de “fazer campanha e contar voto”, enquanto Mafei projeta eleições “caóticas” e “perigosas” se o presidente perceber que será derrotado.

“Bolsonaro não tem nenhum estímulo para jogar limpo nas eleições. (…) A gente vê um presidente e um conjunto de apoiadores que não têm o menor respeito pelo Supremo Tribunal Federal. Qual é o respeito que eles terão pelo TSE [Tribunal Superior Eleitoral], quando o TSE estiver conduzindo as eleições?”, questiona.

No livro, ele faz também uma análise detalhada dos impeachments de Fernando Collor, em 1992, e de Dilma Rousseff, em 2016. O primeiro, diz, serviu para o país estabelecer as regras do procedimento, mas teve um ar de “micareta cívica” que não deveria acompanhar a remoção de presidentes dessa forma. “Não é um evento festivo. O impeachment é um grande trauma, tem um custo político enorme”, diz.

Quanto ao impeachment de Dilma, ele diz que o termo “golpe”, como usado pelos apoiadores da petista, é inadequado para analisar o processo, mas avalia que as ilegalidades cometidas pela ex-presidente poderiam ter sido enfrentadas por meios “menos traumáticos” e mais efetivos. E vê duas “máculas” em sua legitimidade: a articulação de políticos que queriam se salvar da Lava Jato e uma atuação “desigual” do sistema de Justiça.

DW Brasil: Qual é o objetivo do instrumento do impeachment?

Rafael Mafei: Remover do cargo um presidente descomprometido com as instituições, perigoso para a sobrevivência e para a integridade delas e que não possa ser contido de outra maneira. É não permitir, em caráter emergencial, que o destino da democracia de um país fique rendido nas mãos de um tirano ou de um criminoso que tenha conseguido vencer as eleições.

Impeachments têm ocorrido com frequência na América Latina desde a década de 1990. Esse remédio está se tornando fonte de instabilidade?

A América Latina sempre foi um continente politicamente instável. Antes isso se manifestava de outras maneiras, como os velhos golpes de Estado. Na década de 1950, tivemos no Brasil dois presidentes afastados por um recurso inventado, chamado impedimento, parecido com o que foi usado contra o presidente do Paraguai [Fernando Lugo] em 2012 , uma votação sumária do Congresso para a remoção de um presidente. Não diria que o impeachment é causa da instabilidade. A América Latina é um continente politicamente instável, e hoje tem o impeachment como uma das manifestações disso.

Dito isso, o impeachment continua sendo uma peça importante e, muitas vezes, funcional. É enganoso imaginar que um país que precise recorrer ao impeachment se tornará mais estável se um impeachment necessário for ignorado pelas autoridades com competência para levá-lo adiante.

Já no começo da República brasileira, o impeachment atormentou o primeiro presidente, Deodoro da Fonseca. O que aconteceu?

Era um período de enorme agitação política. Deodoro já vinha em rota de colisão com o Legislativo, e a Constituição ordenava que o Legislativo, na sua primeira legislatura, aprovasse a lei do impeachment. Deodoro cismou que a lei do impeachment estava sendo trabalhada pelos seus adversários para derrubá-lo, e falou: “Não aceito essa lei”. Quando o Congresso insistiu em passar por cima do veto dele, ele decretou a dissolução do Legislativo, como se a gente ainda estivesse no Império e ele fosse imperador. Aquilo gerou uma revolta do Legislativo, e ele acabou renunciando. Nosso primeiro presidente teve o mandato abreviado pelo desgaste que sofreu ao se contrapor ao Congresso no debate sobre a lei do impeachment.

A atual lei do impeachment foi aprovada em 1950, logo após uma movimentação derrotada de políticos que tentaram implementar o parlamentarismo no Brasil. O uso de crimes amplos nessa lei foi uma tentativa de fazer uma parlamentarização pela porta dos fundos?

Anos atrás publiquei um texto sobre o uso do impeachment como plano B para o parlamentarismo, algumas pessoas foram estudar essa hipótese e apontaram um problema. Muitos dos crimes da lei de 1950 eram parecidos com os da lei do começo da Primeira República, quando também havia influência forte da cultura parlamentarista. Os intérpretes do impeachment da Primeira República costumavam interpretar o instituto a partir de uma leitura de solução de crise política, que não é muito bem o que é o impeachment. Os debates dos constitucionalistas americanos deixam isso muito claro. O impeachment não é um mecanismo para você sacrificar um presidente para resolver um impasse político. Mas essa cultura do impeachment, como instrumento de resolução de conflitos políticos, precede o final da década de 1940. A cultura jurídica de interpretação dos crimes de responsabilidade no Brasil sempre enxergou o instituto com certo olhar parlamentarista.

Após a redemocratização, o primeiro impeachment foi o de Fernando Collor. Como ele moldou a percepção da sociedade e dos operadores jurídicos e políticos sobre esse instrumento?

Vale notar, no caso do Collor, que quando a sua situação começou a ficar complicada, o primeiro plano que surgiu foi o parlamentarismo. Havia [na Constituição] a previsão para a realização do plebiscito, e a primeira solução foi “olha, vamos antecipar esse negócio, e quem sabe a gente consegue resolver isso mudando o regime desde logo e tirando o Collor do comando de governo”. Existe essa idealização do parlamentarismo no Brasil, como se fosse um regime menos suscetível a crises. Mas parlamentarismo também tem crise, às vezes você tem impasses de governos que não conseguem formar maiorias e aquilo gera paralisia. Essa panaceia apareceu no caso do Collor, mas não deu certo porque ele botou seu time em campo para jogar pesado no Senado e derrotou a emenda parlamentarista.

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A segundo coisa importante é que, quando o impeachment de Collor começou a ser cogitado, a gente tinha essa lei de 1950, mas nunca tinha vivenciado um impeachment, nem mesmo de governador. Era uma mata completamente virgem a ser desbravada. Houve muita dúvida procedimental, e isso levou o Supremo a ter uma atuação muito técnica e cirúrgica para deixar claras as regras do jogo. Quando o impeachment de Collor foi aprovado na Câmara, o Senado não tinha ideia de como conduzir o processo, estava uma confusão, e quem resolveu o problema foi o Supremo. O ministro Sydney Sanches, então presidente do Supremo, apareceu no Senado para almoçar com Mauro Benevides, que presidia o Senado, e levou duas folhas com o rito do impeachment, escrito principalmente pelo ministro Celso de Mello. E falou: “Se vocês seguirem isso aqui, o Supremo não vai intervir em nada. É isso que tem que fazer”. O caso do Collor foi importante para definir o procedimento.

A última coisa marcante é que o caso do Collor deu ares para o impeachment de uma certa micareta cívica. Eu lembro, era adolescente. O clima era de festa. Mas o impeachment, embora seja importante e indispensável quando é o caso de ser aplicado, não é um evento festivo. O impeachment é um grande trauma, tem um custo político enorme. Na década de 1970, quando o [então presidente dos EUA Richard] Nixon renunciou para não sofrer a acusação na Câmara, um dos primeiros atos do seu sucessor foi perdoá-lo para colocar uma pá de cal naquele assunto. Isso em uma democracia super estável, com um presidente acusado de uma vilania política exemplar. É da essência do impeachment ser politicamente traumático, e essa percepção é importante para que a gente não o use quando não precise, e possa guardá-lo para as circunstâncias em que ele é indispensável. Porque, quando ele é indispensável, vacilar na sua aplicação pode ter efeitos trágicos para o país.

O impeachment de Dilma foi golpe, como dizem seus apoiadores, ou não?

Não gosto do termo golpe para responder a essa pergunta. Esse termo adquiriu, no contexto brasileiro, a característica de palavra de ordem para comunicar a aprovação ou reprovação ao impeachment da Dilma. Para um trabalho analítico como o meu, o que importa mais é saber quais eram as razões que os defensores e os adversários do impeachment invocavam, que eram várias. O livro elenca e discute cada uma das posições.

Na minha visão, houve, do ponto de vista jurídico, uma leitura equivocada de que uma violação à Lei de Responsabilidade Fiscal, apenas por ser uma violação, configura crime de responsabilidade. Uma das regras que devemos utilizar é se a conduta ilegal é de tal ordem que não pode ser evitada ou combatida a não ser por meio da remoção do presidente. As ilegalidades cometidas pela Dilma eram combatíveis por meios menos traumáticos que o impeachment. E o governo tomou medidas que ajudavam a impedir que aquelas condutas voltassem a ocorrer. Então, mesmo reconhecendo que Dilma cometeu ilegalidades, o remédio do impeachment parecia excessivo.

O que é decisivo no impeachment da Dilma é o fato de que uma ala importante do Congresso, principalmente os caciques do PMDB, sem os quais o impeachment não teria acontecido, estava convencida de que o governo Temer teria mais condição de reagir às ameaças da Lava Jato do que Dilma tinha condição ou disposição de fazer. Que o governo Temer representaria uma ponte para o futuro fora da prisão. O áudio do Romero Jucá deixa isso cristalino. Isso é uma mácula, sem dúvida, na legitimidade do impeachment da Dilma.

Finalmente, a atuação do sistema de Justiça foi muito desigual, principalmente em relação ao tempo dos atos processuais, praticados em circunstâncias temporais sempre desfavoráveis à Dilma. E é muito importante que as instituições do sistema de Justiça observem um comportamento imparcial.

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E Jair Bolsonaro, cometeu crimes de responsabilidade?

Cometeu, e não acho que exista nenhuma dúvida jurídica hoje sobre isso, principalmente no contexto da pandemia. Dois crimes estão claramente configurados. O primeiro é o artigo sétimo da lei [do impeachment], que diz o seguinte: é crime de responsabilidade violar, patentemente, qualquer direito social assegurado na Constituição. A Constituição assegura um direito social que é o direito social à saúde. O comportamento de Jair Bolsonaro no contexto da pandemia, e com a CPI está ainda mais claro, foi orientado a sacrificar a saúde dos brasileiros e inviabilizar políticas indispensáveis ao combate da pandemia. Tanto no nível federal, como aquisição de vacinas, quanto no nível estadual, adotando uma linha de guerra contra prefeitos e governadores que dificultou, politicamente, a adoção de medidas sanitárias preventivas consensuais.

Ele fez, no início da pandemia, uma aposta de que se a economia for mal, “o prejudicado serei eu”, e se a saúde for mal e centenas de milhares de pessoas morrerem, essa culpa é mais fácil de ser transferida a prefeitos e governadores. Ele também criou um conflito permanente com prefeitos e governadores, e qualquer um que adotasse política de isolamento teria de lidar com uma insurreição potencial de apoiadores do presidente, que usa a visibilidade e o poder comunicacional como presidente da República. Isso fez com que medidas consensuais e adotadas no resto do mundo fossem muito mais difíceis de serem adotadas aqui.

Ele pensou: se eu disser para as pessoas que vacina é importante, e vacina só vai ter daqui a um ano, darei força para quem quer que as pessoas passem um ano com controle de circulação. Isso vai ser ruim para a economia. Então, não vou dar a ordem para comprar vacina e vou ignorar oferta de vacina. Estou me omitindo no uso de um poder do meu cargo, porque o Plano Nacional de Vacinação é nacional. Esse é o grande papel do governo federal na pandemia. Prefeito tem que ter cova e posto de saúde e disciplinar o transporte municipal para minimizar o contágio. Governador tem que ampliar leitos de UTI. O que o presidente tem que fazer? Coordenar um plano nacional de vacinação. Não vejo como um presidente poderia usar os seus poderes de modo mais ostensivamente ofensivo à saúde das pessoas.

O segundo crime que Bolsonaro comete é a violação ao artigo nono, número sete: proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo. Isso pede que o presidente tenha um comportamento comedido, porque o poder que a palavra presidencial tem é absolutamente único e incomparável. Bolsonaro falou muita bobagem quando deputado, mas as bobagens que saem da boca do deputado Bolsonaro têm um impacto insignificante perto daquelas que saem da boca do Bolsonaro presidente. Esse crime de responsabilidade quer impedir justamente que o presidente use esse seu poder retórico e verbal para agredir instituições, incitar comportamentos contrários à lei, estimular indisciplina de instituições militares e hostilidade entre instituições militares e instituições civis. Se o comportamento de Bolsonaro não viola a dignidade, a honra ou o decoro do cargo, esse crime tem que ser riscado da lei, porque não existe, é impossível ele ser cometido.

Por que então não há um processo de impeachment contra ele?

Bolsonaro é um criminoso político que desafia o impeachment. Acho que nem Bolsonaro ignora que ele pratica crimes de responsabilidade, ele só confia que conseguiu botar de pé um escudo político. E esse escudo envolve tanto apoiadores quanto adversários que não têm o impeachment como primeira alternativa. Porque há adversários que falam: “O meu plano A é bater Bolsonaro nas urnas”, o ex-presidente Lula tem claramente esse plano. Uma outra fração dos adversários, como por exemplo o Psol, insiste mais na tese do impeachment. E há gente que já esteve no círculo de proximidade do Bolsonaro que hoje se bate pelo impeachment, como Alexandre Frota, Kim Kataguiri, Joice Hasselmann. O impeachment é difícil porque exige que todo mundo contra o presidente não somente seja um grupo grande, mas que tenha o mesmo plano A do impeachment.

Considerando a pesquisa que você fez sobre a história desse instrumento no Brasil, é pouco ou muito provável que Bolsonaro sofra impeachment?

Não dá para dizer. O que dá para dizer, neste momento, é que para que ele sofra impeachment isso tem que ser o plano A de todos seus adversários. Existe um cálculo, que pode ser errado, de que bater Bolsonaro nas urnas vai se limitar a uma questão de fazer campanha e contar voto. Bolsonaro não tem nenhum estímulo para jogar limpo nas eleições. Se ele estiver com um cenário de uma derrota possível, tem todos os estímulos para jogar tão sujo quanto for possível. A gente viu motim de Polícia Militar no Ceará, a Polícia Civil do Rio de Janeiro ignorando flagrantemente decisões do Supremo e insistindo em uma política de morticínio em comunidades, a Polícia Militar pernambucana barbarizando contra manifestantes que saíram às ruas para protestar contra o governo.

E a gente vê um presidente e um conjunto de apoiadores que não têm o menor respeito pelo Supremo Tribunal Federal. Qual é o respeito que eles terão pelo TSE, quando o TSE estiver conduzindo as eleições? O cenário com a possibilidade de Bolsonaro perder é de eleições absolutamente caóticas, perigosas. A parcela dos adversários de Bolsonaro que aposta nas eleições precisa levar isso em consideração, porque a janela de oportunidade do impeachment está se fechando. Impeachment perto de eleição é sempre muito difícil. E aí teremos um cenário de eleições com um governo que não faz nem questão de fingir que vai respeitar uma eleição na qual ele se veja na iminência de ser derrotado.

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